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O DESENTENDIMENTO E A DINÂMICA IDENTITÁRIA – FRONTEIRAS

TRAJETÓRIAS, CATEGORIAS, IMAGENS E EXPERIÊNCIAS: O CORPO REVELADOR

O DESENTENDIMENTO E A DINÂMICA IDENTITÁRIA – FRONTEIRAS

Há vários méritos nesta gradual construção da rede política que projeta o morador de rua como sujeito de direito: ela reduziu a violência institucional, abriu caminho para ocupações de trabalho – que creio estarão mais bem sistematizadas com o decorrer do tempo –, tem proporcionado a pessoas que há muito estão mergulhadas na dinâmica desnorteante e excludente das ruas da cidade de São Paulo uma referência mínima de cidadania e a sensação de ter a quem recorrer.

Nos três últimos anos analisados – 2001 a 2003 – o adensamento das interações e funções sociais entre os vários atores que integraram essa rede, e o esforço por fazer valer a lei pareceram concretizar as lutas de movimentos, de organizações políticas e políticos envolvidos com a problemática e dos próprios moradores de rua iniciados nas décadas anteriores. A mobilização econômica e política - incorporada por uma política pública municipal que tomou o problema da situação de rua como central na estratégia política de visibilidade de ações da assistência social - abriu espaço para um adensamento gradual dos vínculos entre parceiros intersetoriais e não governamentais, assim como para as reivindicações elaboradas pelos habitantes das ruas em suas manifestações diversas.

Nesse sentido, é possível afirmar que, de forma ainda lenta, mas persistente, o relacionamento entre esses atores e essas instituições vem se delineando de fato uma rede de serviços de caráter público, no sentido em que percebemos diálogos, conflituosos ou não e a formação efetiva de parcerias. Embora, como veremos em seguida, a movimentação dessa rede abra espaço para rupturas de interação entre parceiros e não possa necessariamente abranger todas as experiências de estar nas ruas, tem havido um fluxo de ações que movem esses vários atores em torno das demandas da população de rua.

Se pensarmos com relação à trama institucional que envolve os meninos de rua de São Paulo, cuja tessitura, segundo Gregori, é dotada de conflitos entre os atores envolvidos de tal

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forma que se impede a formação de uma rede efetiva em torno do problema97, a rede de atendimento da população de rua parece ter adquirido mais consistência. Podemos detectar tanto nesta rede quanto na trama descrita por Gregori a ausência de comunicação entre muitas instituições98. No entanto, a presença de antigos parceiros em cena – como a OAF, os Sofredores

de Rua, a Fraternidade Povo da Rua, albergues mais antigos, a Rede Rua, entre outros – e a

participação bem mais efetiva dos habitantes de rua adultos em suas reivindicações do que as crianças e adolescentes99 garante um fluxo mais delineado na comunicação dentro desse universo.

O habitante das ruas, ou as pessoas que se encontram em uma situação de rua, em geral, a ver pela minha pesquisa, tomam a identificação “cidadão de direitos” como ponto de referência.

Somos sofredores da rua, povo da rua, ou somos trecheiros da rua, somos albergados. Os

qualificativos que fazem de si mesmos revelam, nas reportagens de jornal, nas manifestações de protesto e no uso de serviços como o do refeitório, a manipulação do discurso sobre direitos e mecanismos de opressão. As reivindicações – que sempre foram presentes neste universo – são respaldadas pelo conhecimento da lei e do decreto. A circulação dos habitantes das ruas pelos meios institucionais já se tornou uma realidade constante.

Ainda assim, eles têm que encarar os estereótipos negativos diários a respeito de sua imagem. O tratamento como mendigos que recebem por parte de agentes institucionais os revolta: “Eu não sou mendigo, não, sou um trecheiro”, dizia um homem respondendo a uma argüição de um membro de uma entidade filantrópica no refeitório. Embora postulados como estes não sejam novos entre os moradores de rua, parecem ser hoje mais sistematicamente combatidos. Uma das metas da administração municipal atual é banir o termo, que consideram

97 Gregori, op.cit, p. 165.

98 Que, no caso dos meninos de rua impeça a solução dos problemas relativos as experiências dos meninos de rua. (Idem, ibidem). A noção de trama institucional utilizada pela autora lhe pareceu mais conveniente exatamente por traduzir melhor a dinâmica de conflitos e o paralelismo de ações entre as instituições. Conclui Gregori: “A trama

institucional da infância, tecida por disputas e conflitos alimentados pela existência de um sujeito de direitos que necessitam de proteção, e de uma lei abrangente e polêmica, foi capaz de dar visibilidade ao problema da infância brasileira e de estabelecer novos direitos. Contudo, esse circuito institucional mostra-se perverso, porque se revela incapaz de converter essa atenção em estratégias e coalisões que permitam redesenhar o trançado desse emaranhado, trazendo soluções” (Idem, p. 213).

99 Essa é uma questão relevante: tidos até o Estatuto da Criança e do Adolescente como objetos de tutela, a consideração de crianças e adolescentes como sujeito de direitos enfrentou e ainda enfrenta resistências e desconhecimento dos seu real significado. Uma nova adequação de princípios e práticas teve que ser adotada, gerando conflitos.

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discriminatório100. As medidas institucionais têm tentado reformular o sentido pejorativo da atividade da mendicância, um mecanismo de sobrevivência fundamental no universo da rua. A população de rua tem também incorporado tal discurso.

A capacidade de organização de uns, como é o caso de quem acabou de chegar recém- desempregado à rua leva mais facilmente a cooptação pelos albergues e pelos movimentos sociais que se articulam na cidade, como é o caso do MTST e do MST. São também estes moradores de rua os que se encaixam de forma mais adequado ao que é proposto pelos albergues e centros de serviços. São os que se encontram mais predispostos a sair da situação de rua, ou que pouco estiveram nela. É fundamental perceber que a construção desta rede política permitiu a emergência de uma identificação comum que compreende a diversidade de categorias por meio do critério não do trabalho, mas principalmente da ausência de moradia, do pernoite nas ruas da cidade, do tratamento preconceituoso dado pela população e da relação conflituosa com os projetos urbanísticos.

O reconhecimento de um “lugar político”, ainda que não absorva toda a população de rua, mudou sua maneira de estar na cidade. Não alterou suas técnicas de mendicância, por exemplo, mas garantiu uma identidade política usada por uns mais sistematicamente, por outros, ocasionalmente. Assim, o morador de rua pode ser o morador de debaixo do viaduto, o mendigo ou o albergado. Isto é, são atores sociais que estão em uma situação de rua, seja circunstancial ou permanentemente.

O uso da identidade comum fornece uma visibilidade social a partir da exposição e do compartilhamento de códigos socialmente hegemônicos de classificação. Nas últimas décadas, portanto, garantiu-se o reconhecimento de sua situação como um problema político e social e permitindo, de fato, a construção de um espaço de representação, de negociação e interlocução pública, reiterando o perfil das arenas públicas brasileiras que começaram a se formar desde a década de 80101.

No entanto, é necessário ressaltar que a heterogeneidade dos atores da rede, as imagens estereotipadas, os conflitos entre poder público e instituições de atendimento em torno da organização política e administrativa dos espaços utilizados revela as inconstâncias que

100 Secretaria Municipal de Assistência Social, 2002, op. cit. 101 Telles e Paoli, op. cit.

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permeiam a rede. Assim como no caso dos meninos de rua, “os antigos corporativismos, o

assistencialismo e o modelo autoritário para tratar de questões sociais ainda estão longe de ser erradicados”.102

Há uma fragilidade que permeia a interlocução entre os atores sociais que movem tal rede, criando em muitos momentos uma espécie de vazio comunicativo entre as visões díspares e não- intercambiáveis e dificultando a univocidade de práticas e interlocuções elaboradas a partir desta identidade “população de rua”. Essa fragilidade revela, na verdade, dois conflitos importantes que serão analisados a seguir.

Fissuras na Arena Pública

O primeiro dos conflitos diz respeito à abrangência dos atores dessa rede e os impasses que isso gera. As realizações da rede demonstram a projeção gradual dos direitos conquistados junto aos movimentos sociais, sedimentados pela lei e assimilados pela população de rua. Mas esse processo pressupõe também que a adequação não seja tranqüila, exprime a dinâmica dos sistemas de parceria e as dissonâncias de expectativas e tempos entre agentes institucionais esta população. A má comunicação entre a Prefeitura e as entidades de atendimento reforçam o fato de que a predisposição das instituições para com as mudanças nesta esfera pública a respeito do morador de rua não ocorre de maneira imediata.

Há muita resistência em modificar as formas de organização e de valores já sedimentadas por uma lógica com enfoque assistencial. Isto se reflete igualmente na grande dificuldade que a coordenadora Adelina Baroni tem para negociar parcerias com as demais organizações. Conforme seu depoimento, nos albergues e nas casas de convivência, muitos funcionários têm valores arraigados associados às práticas assistenciais. Esta questão indica que, apesar de o trabalho transformar a imagem do habitante de rua, que passa a ser visto como vítima das mazelas do sistema econômico, o “mendigo vagabundo”, que passa seu tempo ocioso, permanece como uma sombra diante do olhar institucional.

Essas imagens nubladas incitam o funcionário da entidade a tratar o morador de rua com atitudes disciplinadoras, muitas vezes autoritárias, reforçando a humilhação cotidiana que sofrem. Presenciei, em minhas visitas às instituições, vários momentos nos quais o exercício de

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autoridade sobre essa população se fazia pelo grito, pela ordem para que a pessoa se mantivesse em seu lugar, por broncas dadas com vigor em frente a outras pessoas. Atitudes adotadas em tom claramente disciplinador. Neste contexto refaz-se a relação de assimetria, exercida inclusive corporalmente.

No Refeitório Penaforte Mendes, um dos locais que priorizei para a observação participante, várias cenas ilustraram esses conflitos. O refeitório é o primeiro restaurante gratuito especificamente voltado para a população de rua e possui a seguinte organização: a Prefeitura é proprietária do local, a Rede Rua o administra, enquanto entidades filantrópicas oferecem a alimentação. Se os funcionários contratados pela Rede Rua seguem um procedimento de tentar manter a calma com os usuários, sem perder a firmeza, de não gritar e não ser autoritário, alguns membros das entidades que fornecem comida tratam os mesmos – do tom da pregação à organização da comida – com uma postura disciplinadora evidente. O contraste entre as duas atitudes evidencia a diferença de classificação que ocorre nos embates cotidianos entre os atores sociais que compõem este universo.

Outro teste da parceria tem sido o conflito em torno da pregação religiosa no refeitório. A coordenadoria propõe que a pregação não esteja condicionada à oferta da comida, mas que seja uma oferta à parte, feita em outro momento. Este é um ponto tenso da negociação, que a Rede Rua tem tentado levar com diplomacia. As entidades têm diminuído seu tempo de fala, mas não abrem mão dela como prerrogativa para o trabalho de doação; muitas vezes, os sermões que antecedem a comida duram mais de quinze minutos, tempo negociado após discussões. Se elas, insatisfeitas, retirarem sua oferta de comida, o refeitório torna-se inativo.

A habilidade requerida para lidar com o termo revela no que diz respeito à questão das necessidades básicas da população de rua, a resistência em transformar uma atitude estritamente caritativa – o que já acontecia em distribuições de sopa na rua – em um serviço de atendimento. O trânsito para o espaço fechado e regrado do refeitório não parece garantir tal mudança, pelo menos em curto prazo.

Um outro problema sinalizado é de que a estrutura de certas instâncias públicas pode estar, no momento, aquém das possibilidades de controlar um problema social de tamanho significativo e, sobretudo, que tem como elemento característico a circulação contínua pelas ruas. Esta questão alude diretamente à impossibilidade dessa rede institucional em controlar o espaço

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urbano. O Projeto Sempre Vivo foi atuante, em 2002, nos bairros do centro de São Paulo. Após esse período, o projeto foi absorvido pelo Projeto Acolher. O objetivo era constituir equipes de trabalho social – doze equipes, com quatro educadores em cada –, para atuar, em horários variados do dia e da noite, como uma espécie de “educador de rua”, durante a época do inverno103.

Na necessidade emergencial de deslocamento de algum morador, os educadores se habilitariam a acionar a CAP (Central de Atendimento Permanente), um serviço centralizador de informações diárias sobre vagas em albergues e em abrigos. Outro objetivo é o mapeamento dos locais ocupados por esta população104. Caberia aos educadores identificar os possíveis motivos

que levam o habitante a estar naquele local, assim como a existência de redes informais de apoio105.

Nas conversas com as coordenadoras, os problemas de infra-estrutura – que deveria ser garantida pela prefeitura – começaram a obstruir uma tarefa delegada aos monitores. A CAP não assegurava as informações, o que levava o morador de rua, ao ter o cartão e a referência nas mãos, a andar pela cidade, enfrentando sucessivas negações por parte das entidades que lhe foram recomendadas, gerando descrédito. Com relação aos albergues e abrigos referenciados na lista a ser entregue para o morador, nem todos haviam sido notificados de que necessitariam ter vagas garantidas para os moradores cadastrados, como parecia assegurado nas secretarias.

Outro problema do Projeto foi o uso do colete de identificação. Associados à imagem do poder público por meio dele, por um tempo os educadores deixaram de utilizá-lo. A insistência da Prefeitura em manter os coletes criou uma inquietação nos educadores que tateavam a melhor forma de abordagem. Além disso, as administrações regionais do centro da cidade, incumbidas de receber e fornecer informações, davam pouco retorno a perguntas sobre o procedimento, ao passo

103 A diferença entre esta atividade e as que faziam parte das Operações Inverno anteriores é que, em primeiro lugar, não pressupõe deslocamento forçado, mas sim a identificação de desejos dos habitantes de rua de sair dela, a entrega de um cartão de referência e endereços para atendimento em abrigos/albergues.

104 Adelina Baroni me informou que, nas regiões centrais, seriam esses educadores os responsáveis pela nova contagem dos moradores de rua, sendo que os outros pontos fora da região contemplada seriam indicados pelas respectivas administrações regionais da cidade.

105 A coordenação do trabalho coube à Rede Rua, que colocou duas coordenadoras para administrar a dinâmica do trabalho dos 48 educadores. Entre eles, há funcionários de albergues e casas de convivência, estudantes, ex- moradores de rua. As reuniões de avaliação dos programas são quinzenais e feitas no Refeitório Penaforte. (Secretaria Municipal de Assistência Social, 2002b). Os educadores cobrem 14 áreas do centro da cidade – Sé, Brás,

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que cobravam diariamente resultados diários das contagens. Esses problemas geraram tensão nas coordenadoras, pois, dependentes da estrutura pública e tendo sua autoridade na dinâmica de trabalho pouco reconhecida pelos membros das administrações, tinham pouco a fazer para atender a todos aqueles objetivos.

Quando era necessária a perua da CAP para qualquer ação emergencial, como transportar alguém impossibilitado fisicamente, não havia carros suficientes. Em minha visita à CAP na última etapa de campo, notei que seus recursos eram relativamente limitados para atender à demanda diária de ligações e cobranças de atendimento e deslocamento de moradores de rua na cidade, às negociações trabalhosas com albergues para o encaixe das pessoas recolhidas, aos conflitos com ambulância e hospitais, bem como tinham dificuldades em suprir necessidade de dar respostas à opinião pública e à Secretaria de Assistência Social.

E, para encerrar as dificuldades de ajuste dessa arena pública, há determinados mecanismos de deslocamento forçado da população de rua que permanecem paralelos à criação das novas políticas de atendimento. As expulsões de debaixo de viadutos, bastante criticadas nos governos anteriores, ainda são práticas recorrentes. Por um lado, a Secretaria de Assistência Social, em conjunto com a Secretaria da Habitação, da Saúde e as Subprefeituras, tem feito operações de transferência de grupos e famílias que habitam viadutos para alojamentos provisórios, onde aguardariam até serem inseridos nos programas habitacionais da Prefeitura.

No entanto, tais procedimentos não têm sido feitos sem conflito. Durante a pesquisa de campo, acompanhando o desenvolvimento dos projetos, notei a insatisfação de vários educadores quanto às formas de se efetivar estas transferências. Por um lado, porque os alojamentos provisórios não respondem concretamente às promessas feitas pela Prefeitura. Apenas para ilustrar, no mesmo período em que a Prefeitura anunciava em seu site a transferência de 160 pessoas para um alojamento provisório e indicava a infra-estrutura proposta, a Folha On Line veiculava uma denúncia de que os mesmos moradores teriam sido abandonados nos alojamentos, sem acesso aos recursos prometidos106. Por outro lado, este deslocamento acontece, principalmente, nos casos de resistência, por meio do uso da força física. Em algumas situações, Bom Retiro, Consolação, República, Liberdade, Santa Cecília, Pari, Bela Vista, Santo Amaro, Santana, Jardim Paulista, Mooca, Tatuapé.

106 OLIVEIRA, M., 2003. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u71344.shtml. De acordo com Oliveira, os recursos prometidos seriam alguma renda, escola para crianças e ajuda assistencial básica.

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as atitudes tomadas por autoridades ligadas à Prefeitura foram de expulsão escorada pela presença policial.

Permanecem também os deslocamentos forçados sem nenhum projeto prévio de transferência dessas pessoas, reduzindo-se à mera expulsão. Em um momento em que me encontrava circulando com os educadores do projeto Sempre Vivo pelo Brás, passamos sob um viaduto. Um dos educadores, morador do Brás, afirmou que ali havia três barracos de papelão até cinco dias antes. As marcas de uso do lugar permaneciam, mas sem os papelões. Perguntei quem teria retirado e ele me respondeu que certamente havia sido a administração municipal, por achar aquele um lugar inadequado de moradia.

A “arquitetura antimendigo” reaparece. Em setembro de 2002, o jornal O Trecheiro lançou uma reportagem sobre o investimento da Prefeitura em grades e paralelepípedos embaixo de viadutos entre as estações de metrô Brás e Pedro II, no centro da cidade107. Esse episódio revela mais um conflito interinstitucional, pois a atitude vinha das subprefeituras (antigas administrações regionais), em uma ação contrária à política até então implantada pela Secretaria de Assistência Social.

Os procedimentos de expulsão de moradores de rua de espaços públicos foram adotados por todas as administrações municipais citadas até agora, seja por razões estéticas, como no caso do governo de Jânio Quadros, seja por motivos de risco, como no caso de Luiza Erundina. Em geral, eles correspondem à pressão da população e da mídia. O problema traz à tona a ênfase dada nas intervenções urbanas e nas políticas públicas como a uma tentativa de controle sobre a dinâmica da circulação dos habitantes de rua. No caso da administração atual, tais iniciativas são justificadas pela ausência de condições dignas ao morador de rua. Porém a explicação torna-se difusa por duas razões: em primeiro lugar, porque as reivindicações pleiteadas por esse sujeito social para garantir a própria dignidade não necessariamente encontram respostas rápidas por parte do poder público.

Em segundo lugar, e o mais importante para o presente trabalho, a justificativa empregada pela Prefeitura demonstra o não-reconhecimento da rua, por parte das inúmeras instituições que constituem a arena, como uma instância fundamental no cotidiano dessa população. A Secretaria da Habitação, 2003. Disponível em: http://portal.prefeitura.sp.gov.br/noticias/sec/habitacao/2003/03/0001 107 O Trecheiro, 2003. Disponível em: http://www.rederua.org.br.

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experiência na rua é, simultaneamente, espacial, social, política e subjetiva. Mas ela se torna contraditória uma vez que a rua é concebida como lugar de passagem e do perigo. A rede de atendimento carrega consigo a premissa de que é inconcebível que alguém esteja habitando as ruas da cidade. Assim, o postulado da política de atendimento é fazer o possível para que a rua não seja uma saída diante de condições de vida precárias108.

Ocorre que a rua se constitui como um modo de operar e praticar o lugar109, sobre o qual o morador de rua simultaneamente condensa e complexifica os limites entre sua vida privada e sua