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TRAJETÓRIAS, CATEGORIAS, IMAGENS E EXPERIÊNCIAS: O CORPO REVELADOR

E XPERIÊNCIAS CORPORAIS

De volta ao filme Amores Brutos. Um policial e um empresário conversam em um carro. O empresário quer contratar El Chivo, o mendigo, para assassinar seu sócio. O policial, colega do morador de rua e mediador da negociação, é quem narra a história de El Chivo ao empresário:

“Ele era professor universitário, resolveu aderir à revolução. Largou mulher e filha e foi lutar. Acabou preso; eu o prendi. Saiu da prisão e virou isso que ele é agora. Encontrei com ele e acabei arranjando-lhe esse lugar onde mora. Daí começou a fazer uns servicinhos pra mim. Vive nessa vida”.

Essa mesma trajetória pode ser lida em outra cena do filme. Na casa velha onde mora, El Chivo abre um álbum de fotografias em cima da mesa. Começa a folheá-lo sorrindo. Vê suas fotos ainda jovem, com a esposa, a filha, ainda bebê no colo. Folheia vagarosamente aquele álbum. Ao final, toma uma foto 3x4, que havia tirado recentemente, e a coloca ao lado de uma outra foto sua, mais jovem, quando em sua “outra vida”. O contraste entre as fotos é evidente e forte. Sua barba grisalha e longa assim como os cabelos longos, o rosto cansado, o olhar duro e amargurado nada têm a ver com a disposição jovem e olhar seguro de outrora. O que poderia ser uma comparação banal que fazemos em nossas retrospectivas de vida parece naquele momento do filme dramática, porque reveladora, através da imagem da passagem, em sua história, para esse limiar.

Mais ao final do filme, El Chivo muda de vida. A transformação é performatizada em um conjunto de atitudes. Em uma noite, o mendigo aparece tomando banho, lavando-se. Em seguida,

ele se posta em frente ao espelho. Começa a cortar a barba. Após cortá-la, já quase rente ao queixo e face, ele se olha; pára o movimento e se contempla longamente. A diferença já começa a se ver. El Chivo termina de se barbear, mostrando um rosto mais arredondado. Corta os cabelos. Já está muito diferente. Corta as unhas dos pés, que estavam grandes. Depois, corta as unhas das mãos. Coloca os óculos de grau quebrados, abolidos havia tempos, dando-lhe um ar intelectual. Coloca camisa e calça, amarra os sapatos, gastos, mas limpos. Carrega uma bolsa preta a tiracolo. A imagem pronta é de outra pessoa.

A trajetória do morador de rua é eminentemente corporal. Não apenas porque o corpo traz visibilidade aos processos que marcam a formação desta categoria. Mas também porque, sendo o único suporte que lhe resta e que lhe é irredutível, atualiza sua possibilidade de existência e as condições atuais nas quais ela se faz. Seu corpo aparece como último território, sobre o que e por meio do qual singularizam-se as manifestações de sua experiência na cidade. Desprovidos de bens materiais, sem casa, absolutamente fora das práticas de consumo, envelhecendo na rua, corpo sujo e fétido que os mimetiza no asfalto, o morador de rua aparece como uma ameaça às definições normativas do espaço urbano e às projeções corporais idealizadas.

Os habitantes da rua estão situados como um contraponto às projeções idealizadas121 sobre o corpo nas experiências urbanas contemporâneas122. Estão longe de concretizar as projeções da aparência, da saúde e da sexualidade constituintes do projeto do self que permeia a construção dos corpos contemporâneos123. Passam ao largo dos discursos e tecnologias em torno da corporalidade que invadiram as práticas urbanas cotidianas, as falas da mídia, os projetos

121 A reflexividade é a tônica nas projeções corporais contemporâneas. Para Giddens, os discursos sobre aspectos da vida social vão sendo introduzidos, materializados no corpo e transformados por indivíduos ou grupos que partilham da dinâmica da modernidade, proporcionando uma incorporação reflexiva do conhecimento (Giddens, 1992, p. 39). A auto-identidade (construção do eu) na vida social moderna torna-se mais complexa, não apenas imposta por um conhecimento e poder institucionalizado, mas concebida por uma contínua reformulação do conhecimento espraiado pela mobilidade geográfica, pelos meios de comunicação etc. Assim, as narrativas sobre a vida social não chegam aos grupos ou indivíduos em um processo mecânico, mas são assimiladas nas formas de ação adotadas pelos mesmos.

122 Para entender melhor essa relação entre corpo e cidade nas experiências contemporâneas, sugiro a leitura de um artigo que redigi e que é parte do livro Cidade e política: novas perspectivas, organizado por Antonio Augusto Arantes. (no prelo).

123 Na sociedade contemporânea, caracterizada pela alta reflexividade, a construção do self torna-se o projeto do corpo (Giddens, op. cit; Featherstone & Turner, 1995). Este é o portador visível da construção reflexiva e complexa da auto-identidade, estando cada vez mais integrado nas decisões individuais do estilo de vida do mundo moderno (Giddens, op.cit, p. 42). A constituição dos corpos contemporâneos é permeada por dois processos interligados que se projetam no cotidiano das pessoas: a cultura de consumo e o projeto de rejuvenescimento do curso de vida (Featherstone & Turner, op. cit.).

arquitetônicos comerciais e as concepções de autoconservação do corpo. Fazem um contraste gritante com os imperativos de aperfeiçoamento e rejuvenescimento corporal espalhados pelas imagens visuais na cidade. Vivenciam um processo de envelhecimento e morte que é negado nos discursos que se somam ao projeto corporal em questão.

O corpo é a base de sua identidade política e social, porém, isso não ocorre como um fenômeno de reflexividade124, como os movimentos sociais emergentes nas cidades há três ou quatro décadas, que propiciaram a criação de novos padrões de comportamentos e identidades individuais e coletivas, a transformação da esfera da intimidade, a emergência da sexualidade e do erótico para o olhar público. O debate daquele período propiciou o aparecimento de novas possibilidades e necessidades do corpo e permitiu que este se transformasse em sujeito e objeto de reivindicação política. À margem desse processo de reflexividade, o corpo do morador de rua se molda por meio de sua circulação, criando-se com ele um agente de uma nova subjetividade, como uma nova identidade política que se faz na contramão dos fluxos urbanos normativos.

Mesmo os habitantes urbanos que compartilham o espaço da rua e têm o corpo como codificador central de suas práticas de sobrevivência e de suas relações sociais marcam uma diferença com os moradores de rua. No caso de prostitutas, travestis, michês, por exemplo, o projeto do self é, materializado no e através do corpo (embodied)125, localizado, concretizado e transformado heterogeneamente nos vários espaços da cidade126. Sobre-exposição corporal e sedução convivem com o estabelecimento necessário de relações sumárias e impessoais com os clientes conquistados, em uma combinação de voluptuosidade, tensão e pressa, pautada sempre

124 Ainda dentro do movimento de reflexividade, e em meio aos intensos processos de destradicionalização de fenômenos sociais e culturais – portadores de referências tradicionais de autoridade legítima – da sociedade contemporânea, adiciona-se ao corpo outra projeção além de sua exposição e preservação: o de base para a construção de identidades sociais e políticas. (Giddens, op. cit).

125 Há divergências na tradução do termo embodiment para o português. O neologismo encorporação é utilizado por Viveiros de Castro para traduzir embodiment, e foi assumido por alguns autores brasileiros que tratam do tema (Vargas, 2000; Jayme, 2001). A adesão ao termo por parte desses autores se dá pelo fato de que ele parece expressar de forma mais adequada a idéia do embodiment. Viveiros de Castro opta por traduzir “a forma inglesa to embody e

seus derivados (...) pelo neologismo ‘encorporar’, visto que nem ‘encarnar’ nem ‘incorporar’ são realmente adequados” (Viveiros de Castro, 1996, p. 138). Refletindo sobre essa inadequação a partir da significação de cada

vocábulo, Vargas sugere que, “em sentido próprio, ‘incorporar’ se refere a algo que, existindo anterior e exteriormente

ao corpo considerado, nele entra ou a ele se junta (quando não o nega), enquanto ‘encorporar’ diz respeito a dar ou tomar corpo, corporalizar, materializar, vale dizer, a acepções que não supõem o dualismo mente/corpo implícito nos vocábulos ‘encarnar’ e ‘incorporar’”. (Vargas, op. cit, p. 3). Mas, outros autores, como Vale de Almeida, preferem a

tradução de embodiment como incorporação. No presente trabalho fiz a opção de manter o termo em inglês.

126 Embora estas categorias aqui estejam sendo pensadas em conjunto, é necessário dizer que há relevantes diferenciações culturais, de valores e perspectivas de gênero entre elas que não puderam ser aqui contempladas. Erotismo, interações e conflitos de gênero, raça, status social estão presentes nas práticas de prostituição de rua, atravessadas pela dinâmica fragmentada e circulante da mesma.

pela negociação monetária.127 A prática da prostituição, embora realizada de forma diferenciada entre os personagens aqui descritos, tensiona papéis e performances sexuais.

As práticas corporais ligadas à prostituição se fazem nos trajetos codificadores de territórios pertinentes para o trottoir, nas classificações sociais que ocorrem pelo olhar, pelos gestos, pelas recusas e ofertas corporais revelados na dinâmica contingencial própria das ruas e praças.128 O momento do trottoir é o momento em que esse corpo se expõe, embelezado, implantado, fantasiado, supererotizado, transformado. Faz parte também dessa prática o aguçar vigilante dos sentidos, uma sensibilidade física, sensorial e psicológica para discriminar as paisagens urbanas e os personagens que circulam em torno desses corpos erotizados. O morador de rua vai no caminho oposto da superexposição corporal e da fruição desse circuito desejante; está no lado oposto desse imaginário de produção do corpo.

Neste sentido, esse segmento assinala um processo de embodiment129 que se faz no revés

desse projeto corporal contemporâneo. E é por meio dessa outra corporalidade que ele cria seus caminhos, sua subjetividade, suas práticas e sua própria resistência no espaço urbano. Seu corpo, uma entidade física, material, social e política, se define, na situação de rua, em torno da abjeção e da subtração material e simbólica. O gradual vínculo da pessoa com a rua pressupõe um aprendizado de mecanismos de sobrevivência, ao mesmo tempo em que marcas corporais que vão denunciando o prolongamento do contato com o espaço urbano: a sujeira que gradualmente vai lhe encardindo, as feições inchadas pelo álcool, a vestimenta rasgada, a postura corporal específica, o olhar introspectivo.130

A reação a seu movimento itinerante é a exclusão, a subtração. Por um lado, tem-se a tecnologia de vigilância – grades, cadeados –, que nega incessantemente ao sem-teto um lugar na rua, reforçando contraditoriamente a sua circulação, a violência física e simbólica de policiais, de grupos de extermínio e a de transeuntes131. Há mecanismos e materiais que tornam e mantêm o

127 Pirani, 1997. 128 Perlongher, op. cit.

129 As abordagens recentes, como as fenomenológicas de Merleau-Ponty, abriram espaço para o conceito de

embodiment. O corpo deixa de ser um objeto analítico ou empírico dado, essencializado e passa a ser situado na

história, simultaneamente como agente e objeto. A ênfase é na idéia do embodiment como base existencial da cultura e do self (Csordas, 1991). O corpo é visto para além de uma entidade na qual se inscrevem mecanismos de poder e dominação e transcende a dualidade mente x corpo, sujeito x objeto. A partir dessa perspectiva, aqui bastante sintetizada, o debate dos últimos vinte anos procura suplantar, em abordagens diversificadas, a separação entre conhecimento e prática, cognitivismo e fenomenologia.

130 S.M. Frangella, op. cit; Idem, 2000.

131 São constantes as denúncias de maus-tratos, espancamentos e práticas de extermínio para com os habitantes de rua. Os casos mais amplamente divulgados na década passada foram o assassinato do índio pataxó Galdino dos

corpo do morador de rua limitado e despossuído132, como é o caso da eliminação crescente de banheiros públicos gratuitos e da comida escassa que lhe é distribuída. Por outro lado, forma-se uma rede assistencial permanente que busca reintegrá-lo ao circuito sedentário e apagar do espaço urbano os sinais de sua visibilidade e materialidade.133

Apoiado, sobretudo, na sua condição contingencial, o corpo do morador de rua desorganiza a concepção de uso público do espaço urbano, tornando-se uma ameaça simultaneamente ideológica – porque sua presença desafia a própria definição de público – e física – esse corpo materializa tal ameaça.134 O corpo do morador de rua é então marcado como um corpo abjeto contra o qual o “público”135 luta a fim de reafirmar o sentido aparentemente

unívoco do corpo saudável e bonito. Nesse sentido, o morador de rua fica aprisionado nos espaços amplos da cidade, fadado a circular pela cidade olhando para esta como se estivesse fora dela e a apreender a grande escala de seus projetos arquitetônicos a partir das grades que o obstruem.

Mas se é verdade que o homeless fica às margens dos discursos e projeções corporais de certos procedimentos hegemônicos urbanos, tornando-o vulnerável, por outro lado, também é verdade que não se vê uma cidade sem seus moradores de rua: eles fazem parte da paisagem urbana. Sua condição nômade inscreve uma singularidade de resistência e de reformulação de signos no espaço urbano. Morando em “qualquer, todo ou nenhum lugar”,136 o habitante de rua reforça uma circulação instigada pelos seus interesses próprios – recursos de sobrevivência, briga de grupo, espírito de aventura – ou pela repressão de agentes policiais. Em suas andanças, toma como moradia lugares de passagem ou esvaziados (como casas abandonadas), dorme e come em praças.

Por meio da manipulação do corpo nômade, de sua imagem e condição material, os moradores de rua possibilitam sua permanência na cidade, assim como estabelecem as interações e os confrontos sociais pelos quais obtêm comida, abrigo, ajuda, amizades, trabalhos Santos em Brasília, em 1997, e o extermínio de menores na frente da Igreja da Candelária no Rio de Janeiro, em 1992.

132 Kawash, op. cit, p. 331. 133 Idem, p. 321.

134 Idem.

135 Kawash usa o termo “público” ao tentar definir um espaço e um universo de códigos que moldam a cidade e se contrapõem à possibilidade de existência do homeless. Pareceu-me que a utilização do termo foi uma resolução que a autora encontrou para a definição de “algo” que tem a qualidade de público e que estaria entrelaçando o espaço público e a esfera pública.

temporários.137 Trazem o mundo da intimidade para os lugares abertos e expostos, exercendo publicamente sua privacidade e violentando uma moral corporal e higiênica normativa, que reforça continuamente um limite entre o que seria considerado público e privado; vivem muitas vezes dos dejetos do consumo sedentário. O aprendizado de sobrevivência nas ruas circunscreve seus limites corporais e torna o seu corpo o suporte material “que concentra e identifica sua

existência passageira” pelo contexto urbano.138

Em suas perambulações, desenham um possível mapa dos centros urbanos, os espaços possíveis de circulação, a abrangência de seu território. Desenvolvem um aguçamento dos sentidos – como no caso das prostitutas, dos travestis e dos michês – codificando, pelo olhar, ouvido e por outras percepções sensoriais, os atores sociais que compartilham suas trajetórias cotidianas. Nessas movimentações, são capazes de circular por muito tempo do dia nas mesmas ruas, sem olhar para frente, mas, simultaneamente, sem esbarrar em ninguém. A percepção do espaço urbano se faz no seu incessante percorrer.

Por outro lado, sua presença é percebida pelos sentidos. O forte cheiro de sujeira que exala de seu corpo é, ao mesmo tempo, motivador de vergonha e forma de isolamento, proteção do corpo do morador, ou mesmo possibilidade de “abrir passagem”. Sua movimentação no espaço urbano gera reações ambíguas, da repulsa imediata à curiosidade de tipos de rua que aparecem como exóticos, recicladores do universo material do lixo do sedentário.139 A existência corporal do morador de rua é usualmente forte para que deixemos de percebê-la, tanto pela peculiaridade da construção de sua aparência, quanto pela sensação da possibilidade de fracasso social a que estamos arriscados.

O cruzamento entre atributos de idade e modos de uso do espaço urbano torna diferenciadas as representações e práticas corporais na experiência de estar nas ruas. No universo da criança e do adolescente de rua das cidades brasileiras, por exemplo, a pouca idade e a circulação ininterrupta por instituições ou pelas casas de seus parentes tornam as marcas e práticas corporais, ainda que similares às dos adultos, menos enraizadas (ou dependentes) das ruas da cidade. O tempo maior na rua, somado à ausência de trabalho (em uma faixa etária

137 S.M. Frangella, 1996, op. cit.; Magni, 1995, op. cit. 138 Magni, 1995, op. cit.

economicamente produtiva) reificam uma imagem (também uma auto-imagem) do fracasso social.140

Do ponto de vista de gênero, as experiências também podem se diferenciar. Meninas e mulheres que permanecem nas ruas enfrentam continuamente o caráter masculino que reveste o mundo da itinerância na cidade. Os discursos de masculinidade e o imaginário da mulher idealizada feminina, limpa, que mora em casa, se projetam sobre o universo feminino das ruas. São também obrigadas a escolher um parceiro que zele por elas e ajude na sua sobrevivência. Por outro lado, homens e mulheres compartilham na prática as mesmas atividades, os mesmos divertimentos com drogas ou álcool, o mesmo espaço.141

A cor da pele pode ser igualmente uma marca corporal que adquire particularidades políticas e sociais em determinados contextos empíricos de situação de rua, como sugere Passaro ao trata de Nova Iorque, onde o peso da imagem de perigosos, violentos, agressivos, “hipermasculinizados”, construída sobre os moradores de rua homens se reforça com relação aos

“non-white homeless”142. Do mesmo modo que os atributos de idade e gênero, as marcas da cor e da raça operam diversidades nas formas de estar nas ruas dos contextos igualmente heterogêneos das metrópoles, assim podem ser encorporadas no estigma que envolve esse segmento social143.

Considero importante ressaltar o morador de rua como o personagem, sem domicílio, que, sujeito a um permanente deslocamento – superdimensionado se pensarmos na circulação que se faz usualmente –, desprovido de acesso aos patamares de consumo e cuidado corporal, bem como a reivindicações de cidadania, possui uma posição singular no espaço urbano. Está

140 S.M. Frangella, 2000, op.cit. 141 Idem.

142 J. Pássaro, 1996.

143 No cruzamento de variáveis a partir das quais sedimentei minha análise sobre a construção corporal dos habitantes da rua de São Paulo não incluí a questão da cor e da raça. Não porque não sejam relevantes. Questões sobre as dinâmicas corporais na rua e a cor faziam parte de meu repertório de perguntas no trabalho de campo. Porém, no decorrer da pesquisa, tais questões tiveram pouca ressonância. Em outras palavras, no contexto empírico paulistano e por meio do enfoque metodológico que dei, não foi possível captar limites identitários que operassem com a cor de forma relevante ou minimamente sistemática. As fronteiras não se tornavam visíveis nem entre eles – que fizeram raras referências ou tomaram poucas atitudes com relação à cor nesse contexto –, nem entre os habitantes de rua e os segmentos sociais com quem se relacionavam. Para os últimos, os atributos que marcavam o estigma dos moradores de rua eram, sobretudo, a abjeção corporal e o modo de sobrevivência.

A homossexualidade, por exemplo, emergiu como um fator muito mais forte de conflitos e adequações. A questão da faixa etária e de gênero passou a ser, juntamente com a observação das formas de se estar nas ruas, a vertente mais significativa no plano da configuração corporal dos sujeitos estudados, o que não implica dizer que a questão deva ser ignorada. Investigações mais precisas e demoradas sobre a questão da cor necessitam ser feitas; se feitas em comparação com outros contextos empíricos das metrópoles, a discussão pode se enriquecer sensivelmente.

permanentemente resistindo material e simbolicamente à sua extinção na cidade, por meio de seus próprios passos. Experiência a geografia urbana de forma particular e acaba, por seu caminhar, por construir uma retórica que está, de uma forma ou de outra, em relação com a ordenação oficial do espaço.144 Por outro lado, parece impelido continuamente a permanecer recluso em seus limites de sujeira, de marginalidade, de não posse, presos e imobilizados na geografia urbana.145

Uma vez mantido às margens do projeto corporal da vida urbana, seria possível afirmar que o corpo abjeto do morador de rua, na sua circulação e resistência, nos lembre continuamente das fragilidades do self contemporâneo? O corpo abjeto interpela simbólica e materialmente o corpo desejado, idealizado nas práticas que envolvem a cidade e a corporalidade na cidade. Tal interpelação se faz não em um movimento de reflexividade, mas como uma resposta