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T ATEANDO A RUA : ITINERÂNCIA , MARGEM E RE SIGNIFICAÇÃO

CORPOS EM EVIDÊNCIA NO COTIDIANO DA RUA

T ATEANDO A RUA : ITINERÂNCIA , MARGEM E RE SIGNIFICAÇÃO

Os pés no asfalto

Ao pensarmos na construção corporal dos moradores de rua na cidade, os pés aparecem como um aspecto fundamental. Sendo um fragmento do corpo que constitui a base da sobrevivência e que afirma a situação itinerante desse segmento, os pés comunicam e realizam as práticas e as significações sociais produzidas nessas apropriações do espaço urbano, assim como evidenciam os conflitos e as distinções sociais que ocorrem neste universo. Nas observações sobre essa parte do corpo ecoam questões que se estendem à corporalidade como um todo: a aparência e o asseio corporais, os efeitos da dureza material e simbólica do asfalto, os vários modos de circular. Os pés são igualmente a marca mais evidente de sua situação de rua, de exposição corporal e da subtração material e social que caracteriza suas vidas.

Na rua, os pés chamam a atenção: vestidos em geral apenas com chinelos havaianas, quando não descalços, tornam-se encardidos pelo contato constante com a poeira da rua, com os materiais que carregam, com o suor, com a ausência de proteção, com o contato direto ou indireto com o asfalto, com os restos de comida. A rachadura dos calcanhares, presente normalmente em quem caminha descalço ou de sandálias, acentua-se visivelmente, criando vincos profundos. As unhas ficam compridas e retêm sujeira. Cortes e arranhões infeccionam com a sujeira. Há diagnósticos constantes de micoses e frieiras1. Os efeitos da circulação diária para obter recursos de sobrevivência se fazem sentir: inchaço, bolhas, dores do cansaço – dos quais a maioria reclama –, machucados feitos por cacos de vidro, pregos e batidas no chão duro.

As feridas expostas criam sofrimento e empecilhos no andar; há uma grande exposição ao frio implacável e às condições insalubres da rua. Sr. Pedro, um senhor alto, negro, sereno, que

1 Há uma recorrência de problemas de saúde que me foram informados pelos funcionários de albergues e do refeitório. O diagnóstico do panorama de doenças é feito, sobretudo, em função da observação, uma vez que não há dados quantitativos sistemáticos sobre essa população. Em primeiro lugar, porque poucos são os habitantes de rua que vão a hospitais e postos médicos, dificultando assim um levantamento mais específico. Em segundo lugar, a circulação intensa dos moradores de rua dificulta acompanhamentos e confirmações de diagnóstico médico.

No entanto, localizei uma entidade religiosa (Entidade Razin) que presta um serviço de pré-atendimento médico para moradores de rua no Parque D. Pedro II uma vez por mês. A equipe inclui um médico e um dentista, que avaliam as pessoas, encaminham para atendimento em hospitais e postos médicos, e fornecem receitas para os que necessitam. Através das conversas com membros da equipe e a avaliação das fichas de diagnóstico, pude finalizar um mapeamento mínimo de doenças que se repete neste universo. As anotações que farei sobre as doenças no percurso da tese são resultado das conversas com esta equipe, com os agentes institucionais que lidam no dia-a-dia com os moradores de rua, e com os próprios moradores.

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trabalhava como voluntário no Refeitório Penaforte, morou muito tempo na Praça XIV Bis. Costumava, após o trabalho, levar comida para seu canto. Os ratos, ele nos contava, comiam os restos, a vasilha, tudo. Depois, comiam seus pés, que ficaram marcados pelas mordidas. No refeitório, ganhou um sapato para que se protegesse2.

De outro lado, as formas pelas quais os pés se apresentam moldam se à heterogeneidade da circulação na rua, criando uma sutil diversidade, constituída de acordo com o grau de sujeira e com a facilidade ou dificuldade de acesso a sapatos. Quanto mais distante das instituições que oferecem banho, maior sua aparência encardida. Pés assim apareciam diariamente nas calçadas, praças, na frente de abrigos e albergues nas áreas centrais de São Paulo. Eram visíveis também no Refeitório Penaforte, particularmente nos que mendigavam e dormiam nas ruas. A vulnerabilidade das partes corporais aparece de forma exponencial nos pés.

Os pés revelam mecanismos de distinção social neste universo da rua. Há, de início, a afirmação mais evidente: os pés sujos e expostos dos moradores de rua marcam sua condição no espaço urbano contemporâneo. Mas isto não implica uma uniformidade de pés nus e sujos. Há condições diferenciadas dos mesmos, que acompanham, naturalmente, a diversidade da prática de asseio e cuidado corporal e bem como a posse de sapatos. Na dinâmica da rua, poderíamos colocar uma distinção entre ter pés limpos e pés sujos, e outra entre usar sapatos fechados e usar chinelos ou estar descalço.

As fronteiras entre essas circulações são diluídas e é difícil estabelecer tais distinções sociais como estanques, fechadas ou fixas no movimento espacial. Como nos demais fenômenos sociais nos quais aparecem os mecanismos de diferenciação entre as categorias que partilham o universo da rua, essas fronteiras estão em contínuo movimento e obedecem às respostas conjunturais desse cotidiano. Nestas interfaces difusas, as marcas e práticas corporais não são símbolos de identidades fixas, mas antes manifestações de contigenciais e breves situações de diferenciação social que aparecem nos cruzamentos destas diversas circulações.

Os chinelos do tipo Havaianas são uma espécie de “padrão” de sapatos de quem está nas ruas. O uso destes chinelos não é uma exclusividade deste segmento social; as havaianas se tornaram uma espécie de símbolo nacional. Porém, os chinelos são a única proteção que, geralmente os moradores de rua têm nos pés, e que lhes serve para as longas caminhadas e para

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passar dias e noites em céu aberto. Os chinelos são a fronteira entre a nudez absoluta dos pés e o asfalto e, conseqüentemente, o último elemento da exposição imperativa de sua realidade “sem-

nada”. Estar com os pés descalços evidencia a situação de subtração material e de despojamento,

do largar-se; situação esta provocada, sobretudo, após longas noitadas alcoolizados ou quando são roubados. E, conseqüentemente, assinala fortemente a condição de sofrimento nas ruas, seja esta realmente vivenciada ou manipulada na hora da obtenção de recursos.

Uma cena em minhas visitas à rua trouxe à tona a relevância simbólica desta questão. Em 2003, acompanhei a Procissão de Sexta-Feira Santa, cuja performance é desempenhada por moradores de rua que freqüentam a instituição Sofredores de Rua3. Havia um conjunto de

personagens reproduzindo a caminhada de Cristo até a cruz: o próprio Jesus, carregando uma cruz de papelão, com uma longa veste branca, uma espécie de faixa imitando a coroa de espinhos na cabeça e chinelos. Logo atrás, vinham dois homens, açoitadores de Cristo. Em seguida, vinham os soldados romanos e, por fim, as pessoas que acompanharam o calvário, entre eles, as mulheres ligadas a Jesus. Havia também pessoas da instituição e outros moradores de rua, que se dividiam entre providenciar o som e levar os cartazes de protesto pela situação de desemprego e de rua. Por fim, havia o Padre Lancelotti a conduzir a cerimônia4.

A procissão se iniciou no Largo do São Bento, de manhã. Várias pessoas participavam como espectadores, entre elas, habitantes da rua que não estavam ligados aos Sofredores de Rua. E era possível distinguir as pessoas que estavam nas ruas, embriagadas, trôpegas, pedintes. Eu observava os personagens se organizarem para dar início ao evento. Enquanto aguardavam, já a postos, uma mulher, aparentemente desconhecida para os atuantes, aproximou-se do homem vestido de Jesus. Conversou com ele, breve e seriamente; em seguida, agachou-se e lhe tirou o chinelo. Minutos depois, um membro da instituição que coordenava a procissão tomou os chinelos de volta, pediu ao homem que os recolocasse e manifestou seu desagrado à mulher que provocara a situação.

3 Idem, ibidem. Esta procissão já se tornou uma prática ritual tradicional em São Paulo. No caso que observei, partíamos do largo São Bento e terminávamos defronte da Catedral da Sé.

4 O Padre Júlio Lancelotti é um importante personagem no universo do morador de rua em São Paulo. Trabalha com a questão há várias décadas e tem uma posição bastante reconhecida junto a movimentos sociais, ao poder público e aos próprios moradores de rua da cidade.

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Esse embate, relativamente discreto em meio às movimentações da organização do evento, chamou-me a atenção. Em minhas observações, dei-me conta de que esta mulher, com seu ato, enunciara que a nudez dos pés de Cristo totalizaria seu sofrimento e reforçaria a denúncia de miséria, sofrimento e más condições de vida durante a procissão. Os pés descalços marcam de forma proeminente o estigma desse segmento, e sua exposição permite mecanismos de mão dupla: reforça a situação política simbólica do “sofredor de rua”, enfocada a partir da situação de vitimização social; e faz parte potencial e circunstancialmente das táticas dos moradores de rua para esmolar ou obter demais auxílios materiais.

Os chinelos se espalham pelo circuito da rua de forma abrangente. Embora este calçado permita uma proteção mínima aos pés, longe do calor e da dureza do asfalto, ainda os mantém sujeitos à sujeira, ao frio e ao desconforto do andar. Mais do que isso, no caso da maior parte dos moradores de rua, é ainda a única cobertura para os pés. Mas neste contexto uma distinção se faz notar ao olharmos os pés das pessoas na situação de rua. Há pés limpos e pés encardidos, como quando estão descalços. Os pés limpos indicam trajetos em que formas de asseio diário são possíveis. A diferença da limpeza nos pés assinala de forma evidente a diferença entre os moradores de rua que circulam de forma contígua por rua e entidades de atendimento e aqueles que evitam estas, estando em permanente situação de rua.

É o caso de uma significativa parte dos usuários do refeitório que freqüenta albergue, de forma regular ou ocasional. Os chinelos – menos freqüentes nesta categoria –, os pés limpos e as unhas cortadas eram condizentes com o restante de sua aparência: calça ou bermuda limpa, camiseta e uma mala pequena contendo seus objetos pessoais5. A preocupação com a boa aparência se estende ao corpo todo, é uma constante entre esse segmento, que passa o dia procurando serviços e vagas em instituições. Uma vez que os pés já estão demasiadamente expostos, há um esforço em marcar que são limpos. Esse cuidado, que parece banal no contexto social em que vivemos – em que a limpeza é uma prerrogativa – torna-se uma referência fundamental na rua, cuja realidade apresenta escassas oportunidades que permitam o cotidiano sistemático da limpeza.

5 Vale lembrar que são poucas as pessoas que permanecem no mesmo albergue com a vaga garantida. Em geral, eles têm que retirar os seus pertences dessas instituições e levá-lo consigo.

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Uma elaboração interessante dessa diferença de condição através dos pés revelou-se em uma análise de imagens que trazem visibilidade às mudanças de vida de moradores de rua. Elas foram feitas e editadas por um membro da Rede Rua, o qual enfoca a passagem de pessoas da rua para acampamentos ou assentamentos produzidos pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra6. Uma vez que a adesão ao movimento em questão é vista pelos grupos sociais que trabalham com essa população como uma alternativa de trabalho e dignidade, o propósito foi apontar a mudança como uma recuperação de um lugar social7. Entre as imagens, está a dos pés de um habitante de rua ao lado dos pés de um assentado do movimento sem-terra. Colocados de perfil, ambos de chinelo Havaianas, pés calejados. Mas a diferença residia no que marcava os pés: enquanto um estava envolto na poeira acinzentada e encardida do asfalto, com cortes e inflamações do longo trajeto no asfalto, o outro se encontrava saudável, coberto de terra, elemento da aparência positiva no contexto da monografia e desta discussão.

Os pés limpos, minimamente calçados, revelam a possibilidade de cuidado e descanso mínimo. No entanto, essa situação não está necessária e exclusivamente condicionada ao abandono – parcial ou permanente – do mundo da rua. Pés limpos apareciam também nos moradores da Praça do Metrô Brás, ainda em menor constância e intensidade. Embora não fosse uma regra geral à área, uma parte destas pessoas arranjava alguma forma de manutenção e cuidado, apesar de a água ser um recurso escasso no local. O encardido diminuía, embora mantivessem a aspereza e as marcas da rua. Tal cuidado se estendia para o resto do corpo. Isso costumava acontecer com os habitantes mais constantes da Praça, cujo lugar de dormir e passar o dia era relativamente fixo, e a circulação se restringia, sobretudo, ao bairro e a alguns de seus arredores. Como também ocorria com albergados que passavam boa parte do dia perambulando por ali ou dormindo nos retângulos de concreto.

Marcas estéticas também emergiram. Na praça, os pés das mulheres me chamaram a atenção. Carmem, Lourdes e outras moças mais jovens expunham as unhas dos pés pintadas com esmalte, alguns dedos descascados, mas explicitamente demonstrados, particularmente por Carmem, que é bastante vaidosa. Fátima, uma moça de cerca de 20 anos que foi “hóspede” de D. Carmem em um pequeno espaço de seu barraco por uns dias, abriu sua nécessaire e tirou vários

6 A. P. da Costa, op.cit.

7 Essa movimentação da rua para a terra começou a acontecer na cidade de São Paulo no final da década de 90, e está citada no Capítulo 2.

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esmaltes. Carmem disse-me: “O quê? Lógico que a gente usa o esmalte, a gente precisa se

cuidar, mesmo tando na rua”8. Lourdes, sentada na cadeira em frente à casa de Carmem, também colocava em evidência a aplicação do esmalte nos pés rachados e relativamente encardidos.

Já os sapatos são o diferencial neste universo, material e simbolicamente. O sapato (que pode ser um tênis) é um recurso dos mais difíceis de se encontrar para cobrir o corpo. É, portanto, o mais disputado. Do ponto de vista físico, o sapato fechado permite que os pés fiquem mais protegidos do atrito duro do asfalto e torna a caminhada um pouco menos árdua. Em geral, chegam já gastos e tortos, com rasgos e furos. Mas tornam os habitantes da rua menos vulneráveis em seu universo. Do ponto de vista da aparência física e da imagem, a questão dos sapatos adquire alguns contornos variados. Os freqüentadores mais assíduos de albergue que circulavam pelo refeitório, por exemplo, vinham, na sua maioria, com sapatos ou tênis. Segundo eles, sapatos eram importantes para facilitar o pedido de emprego, já que os empregadores tinham preconceito com quem usava chinelo. Nesse sentido, atenuava o estigma imposto sobre sua condição, porque os sapatos relativizavam a imagem que lhes era associada – de “vagabundos”9.

Já no circuito de quem está permanentemente na rua, e longe do movimento da procura de emprego, o sapato dá uma aparência outra: evita a exposição nua dos pés e constitui uma espécie de posse única. Uma sinalização da importância dos sapatos na rua – e de sua escassez – é a disputa em torno dele. Um dia, na plataforma do metrô, na companhia de um dos membros da Rede Rua, ao olhar para os retângulos de concretos da praça abaixo, vi um homem ali estirado, dormindo; seus sapatos estavam colocados ao lado de sua cabeça. Achei curioso e perguntei a Alderon o que aquilo significava. Ele me respondeu que muitos moradores de rua dormem com os sapatos ao lado ou embaixo da cabeça, assim como os documentos, pois são as primeiras peças a serem roubadas quando se dorme10.

8 Caderno de Campo, 23/04/2003.

9 No já citado Que Droga de Vida de Mel Brooks, uma das primeiras cenas mostra, apenas enfocando os pés dos personagens, o milionário chegar em seu escritório, juntar-se a seus funcionários e subir para sua sala. Esse trajeto é feito por pés vestidos com sapatos caríssimos e lustrosos, caminhando em passos firmes e duros, quase como em marcha militar. Esse mesmo milionário, assim que chega às ruas em sua inusitada experiência, é abordado por dois homens que lhe roubam os sapatos. Ao final do filme, quando o mesmo milionário está como mendigo e se revolta com a expulsão dos homeless do terreno onde se encontrava, ele começa a caminhar em direção a seus “algozes”, com uma multidão de mendigos atrás. De novo a cena se volta para baixo, e aí os pés são completamente outros, sapatos estropiados, pessoas com pés enfaixados, vestindo meias imundas, mas com o mesmo ritmo de marcha. (Que

droga de vida, op. cit).

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Na Praça do Metrô Brás, Sr. Joaquim e Sr. Rubens andavam quase sempre de sapatos. Sr. Joaquim, não muito alto, bem magro, negro, vivia arrumado, com calça social e camisa, usados em alguns momentos por vários dias e gastos. Raras vezes o vi de chinelo. Seu sapato chamou- me a atenção; elogiei, disse que estava elegante. Ele, bastante envaidecido, colocava a necessidade desta decência para trabalhar; no caso dele, seu serviço consistia em sair pela tarde a catar algumas latinhas e papelões para trocar pela comida e pela pinga diárias. Assim como no caso de Sr. Rubens, que se instalara logo abaixo da plataforma do metrô, ao lado de D. Lina, a obtenção dos sapatos alterava de forma significativa a aparência desses homens na praça11.

Para alguns moradores de rua, em geral os ligados à mendicância, ou os “loucos de rua”, os sapatos completam um vestuário mais formal, ainda que sujo e rasgado. São homens que localizam nas ruas peças de ternos, calças e outros acessórios que lhes conferem um ar mais sóbrio. As condições gastas e rasgadas do material denunciam a reformulação dessa sobriedade no espaço da escassez do consumo. Esta composição é uma elaboração constante e simbólica, no mais das vezes criativa, das aparências criadas a partir das peças de vestuário que lhes chegam à mão. Neste contexto, o sapato é um elemento fundamental, pois ele encerra a sobriedade do vestuário.

A evidência destes pés em relação ao restante do corpo aparece quando nos deparamos com as conseqüências da necessidade imperativa do andar e com as marcas estigmatizantes presentes nas classificações entre eles, nas imagens da mídia, nas conversas com agentes das entidades. As condições físicas e higiênicas dos pés, suas situações de insalubridade, a importância daquilo que os cobre são simultaneamente efeito e prática da dinâmica de circulação particular do universo dos moradores de rua, enunciando a diversidade de trajetos geográficos e sociais possíveis em meio à restrição de lugares que lhes é imposta.

11 No início do filme Ironweed, o mendigo Francis se levanta na manhã fria, caminha um pouco, senta-se em um pedaço de madeira e começa a arrumar seus sapatos que achara por ali. Um colega seu, Rudy, recém-saído de um hospital, aproxima-se. Havia ganhado roupas e sapatos novos. Mas foram os sapatos do colega que chamaram a atenção de Francis, enquanto olhava para seus velhos calçados (Ironweed, USA, 1987).

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O ato de caminhar

Os pés são, sobretudo, o meio de locomoção por excelência desse segmento. O acesso a ônibus, metrô, trens e carros acontece12, mas bem pouco. A rara oportunidade pode ser justificada principalmente pela ausência de recurso financeiro, embora pesem também aos que possuem um despojamento corporal mais intenso a repulsa e a hostilidade dos demais usuários desses meios de transporte. Em resposta a essa barreira surge um primeiro sentido para a circulação pedestre cotidiana, a percorrer a cidade em busca de recursos e a moldar novas territorialidades possíveis e temporárias no ambíguo esvaziamento de espaços urbanos, tais quais ruas, praças, viadutos.

Os moradores de rua caminham muito. Circulam por praticamente todo o centro da cidade de São Paulo, o que toma quase todo o seu dia e sua energia. Gastam horas deslocando-se entre instituições, à procura de albergues, de bocas de rango, catando papelões, atividades, novos itinerários ou lugares para dormir. Para se ter uma noção, ao acompanhar os educadores sociais do Projeto Sempre Vivo na demarcação de trajetos possíveis para futuras abordagens de moradores de rua no Brás, andei uma manhã por todo bairro, anotando a presença e circulação do