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TRAJETÓRIAS, CATEGORIAS, IMAGENS E EXPERIÊNCIAS: O CORPO REVELADOR

O MOVIMENTO ERRANTE E OS PERFIS NA RUA

A errância que caracteriza a situação de rua, ou homelessness, sempre esteve presente nas cidades, do mundo antigo até as metrópoles contemporâneas48, provocada pela combinação de diversos acontecimentos econômicos, políticos, sociais. Tomando como referência apenas o contexto histórico a partir da Idade Média – principalmente o contexto europeu –, nota-se que, para cada período, houve uma leitura do movimento itinerante, de acordo com a organização social e política em vigor, e foram criadas visões diferentes a respeito dos sujeitos que vivenciavam a condição de homeless: vagabundos, mendigos, migrantes, incapacitados, sem domicílio fixo. Eram classificados diversamente como perigosos, maus-caracters, merecedores de caridade, os que trabalham etc.

Cada categoria possuía uma forma diferenciada de circular e de estar nas ruas. Com o passar dos séculos, esses personagens diversos foram se somando nos espaços das cidades, constituindo um conjunto dinâmico a cada experiência urbana. Comum a esses períodos é que os errantes constituem sempre um segmento à parte, à margem das ordenações sociais e urbanísticas. O ato de vagar, também traduzido ao longo dos séculos como o de vadiar, foi sendo reconfigurado, e o errante – ou vagabundo49 – teve seu estatuto sociopolítico modificado. Mas as representações sobre sua movimentação, elaboradas por autoridades políticas, estudiosos, pela literatura, entre outros, sempre lhe imputaram o caráter de outsider:

“Desafiliado por excelência, modelo da dessocialização última, ele [o vagabundo] simboliza na análise do conhecimento, assim como na

48 Stoffels descreve a presença de mendigos e indigentes já na Grécia antiga, fruto de expropriações de terras comunitárias e movimentação dos indivíduos para cidades em formação (Stoffels, op.cit, pp. 60-61). A dimensão histórica desse fator social não será aqui desenvolvida, mas apenas tomarei alguns elementos como fonte de reflexão para o movimento itinerante na cidade. É necessário enfatizar também que minha preocupação é a análise da itinerância na cidade, o que não significa que esta não possa ser enfocada nas dimensões extra-urbanas.

49 O termo vagabond vem sendo utilizado na língua francesa e inglesa e em textos escritos em língua portuguesa ao longo dos séculos para indicar o ato de vagar. A conotação moral negativa que o termo suscita atualmente está presente nas descrições históricas e literárias sobre esse universo, uma vez que essa movimentação sofreu continuamente condenações. Porém, servia, de maneira geral: designava vagabundos, os que vagavam “sem eira nem beira”. Atualmente, porém, outros termos marcam as distinções dentro do universo da errância, e o termo vagabundo está mais restrito a seu sentido estigmatizante.

literatura, o eterno excluído. Cientistas e experts vêem em suas formas sucessivas e dentro de suas diferentes figuras (...) um universal atemporal (...) Sem emprego, sem recursos e também sem ligações territoriais, familiares, institucionais, é assim atemporal. A análise das configurações da vadiagem e do estatuto sociopolítico dos vagabundos demonstra, ao contrário, que as populações que compõem essa categoria, bem como a identidade de seus membros, longe de serem imóveis, mudaram continuamente durante os séculos. Sem jamais estar totalmente integrado – ou mais precisamente assimilado e assim invisível – na ordem social, o vagabundo vê seu estatuto se modificar totalmente em relação (e com) a organização social anterior; longe de desaparecer, ele permanece sempre inserido, ainda que colocado à parte”.50

O movimento itinerante, incerto, entra em atrito com a ordem estabelecida, sedentária. Cria-se então uma relação de poder entre as duas ordens, interdependentes, com as tensões inerentes a essas relações51 projetadas sobre os que se deslocam permanentemente na contramão dos modelos dominantes de organização econômica e social. Nessa fricção, são a própria errância e as características a ela associadas – sem emprego ou casa fixa, o deslocamento contínuo, a dificuldade de obter renda – que se transformam em anomia, a qual gera estranheza e confere estigma a essa população, provocando reações amedrontadas e posturas hostis. Na relação dinâmica que se faz entre os que estão estabelecidos e os outsiders, as leituras do movimento errante movem-se temporalmente, ainda que mantendo a mesma posição social, em cujo limiar estão os errantes.

Sobre esse percurso histórico na Inglaterra, Brandon escreveu:

“Quero descrever o elefante do homelessness. É um estranho animal chamado de diferentes nomes em diferentes épocas. Através dos séculos tem sido visto como definitivamente ameaçador e, mais recentemente, mais como patético, confuso e merecedor de simpatia (...) Séculos atrás, os errantes eram tratados como escravos fugitivos; depois eles foram vistos como criminosos potenciais ou reais. A legislação impôs duras punições, em padrões modernos, embora essas fossem práticas normais para o período. Os itinerantes eram vistos geralmente como fonte de todos os problemas e doenças sociais. No século XIX sua presença atacou as virtudes principais da Ética Protestante de indústria e economia. Agora, adotamos uma visão mais iluminada (sábia), mas

50 H. Thomas, 1997, p. 200. (Tradução minha), grifo meu.

51 Para N. Elias (1994), a relação entre os estabelecidos – grupos ou indivíduos que ocupam posição de prestígio e poder – e os outsiders – pessoas que estariam fora dessa “boa sociedade” dos estabelecidos pauta-se por uma interpendência entre os termos. A manutenção dessa relação seria garantida por um equilíbrio instável de poder, assegurado pelos estabelecidos por uma auto-imagem que legitimaria sua sensação de superioridade e projetado sobre os outsiders, que, por sua vez, introjetariam o estigma que lhes fosse imposto em sua auto-imagem.

ainda desconcertante, que se deve muito mais aos motivos de controle social que do altruísmo”.52

Como observa Geremek a respeito dos vagabundos no fim da Idade Média – o que me parece válido até os dias atuais –, a mobilidade era justificada para a ordem social quando se traduzia em um caráter migratório dentro da estrutura e da rede que a controlava53; Magni reafirma: “o migrante (...) é de fato acolhido no seio dos contratos coletivos tradicionais sem que

a migração desfaça o tecido social”.54 Assim, a errância era aceitável como uma condição passageira e não como um modo de vida. Dessa forma, quando a perambulação era – e é ainda – justificada dentro da moralidade da busca de trabalho, mais amplamente legitimada, essa relação de estranhamento se atenuava. Mesmo assim, o imaginário em torno dos errantes os marca como agentes poluidores, perigosos; mais contemporaneamente, como fracassados.

O movimento errante nas cidades é fruto de inúmeros acontecimentos históricos: expropriação de camponeses e escassez de emprego devido a mudanças econômicas profundas, crises monetárias (provocando a mobilidade por sobrevivência econômica e trabalho); deslocamentos conseqüentes dos efeitos de grandes desgraças sociais, como guerras e epidemias, catástrofes naturais, mudanças políticas. Vários fatores conjugados podem explicar a situação da itinerância, e mais propriamente a situação de rua, mas não cabe aqui tratar deles com maiores detalhes. Os deslocamentos tinham e têm um motor inicial, na maioria das vezes.

No entanto, tais deslocamentos não necessariamente propiciam o encaixe nas ordens sociais estabelecidas, ainda que se encontrem em contínuo diálogo com estas. Muitas vezes, a itinerância, ou a situação liminar, permitiu e permite o estabelecimento de recursos e formas de se situar no espaço social que dotam essa população de recursos de sobrevivência e de sentidos identitários, sejam eles sentidos temporários ou permanentes. Porém, em qualquer das condições – voluntária ou involuntária – ser um errante implica estar condenado a uma permanente situação liminar, sujeito a um número infinito de desaprovações e sanções, concretizadas, na maioria das vezes, em leis de repressão à sua circulação.

Classificações elaboradas em alguns desses momentos históricos são relevantes para pensar no fenômeno do homelessness nas experiências urbanas contemporâneas, pois os traços básicos desses perfis são encontrados nos diversos tipos que habitam as metrópoles atualmente.

52 D. Brandon, 1973, pp. 1-4. (Tradução minha). 53 Geremek, op.cit.

Podemos começar pelo mendigo, o vagante, categoria que se destaca nas ruas das cidades de arquitetura sinuosa da Idade Média, cujas fronteiras com o campo eram bastante tênues, com uma intensa circulação de pessoas, animais, carroças; uma cidade feita para pedestres, e na qual ricos e pobres necessariamente se esbarravam, lugares de “amontoamento”.55 Os pobres e miseráveis eram, em geral, camponeses desafortunados não vinculados a senhores feudais ou a corporações que monopolizavam os serviços nas aldeias, ou então doentes incapacitados para o trabalho.56

A mendicância e a peregrinação eram os recursos dessa população. Mas esta incluía também delinqüentes, criminosos e desocupados, que usavam estratégias artificiais para forjar o caráter de indigência57. Assim, nesse universo, particularmente na Idade Média, os mendigos

passaram a ser diferenciados entre o mendigo verdadeiro, honesto, bom, como os aleijados, os doentes, os loucos, os velhos, as viúvas e os órfãos; e os mendigos falsos, pecadores, vagabundos, que eram os camponeses e artesãos empobrecidos, assalariados sem emprego58.

Até hoje, o mundo dos mendigos, de sua aparência degradada e vulnerável, aparece nas paisagens urbanas. Da sua itinerância, que incluía as pequenas distâncias entre um burgo e outro, até a circulação contínua dentro dos limites extensos das metrópoles contemporâneas, o mundo da mendicância continua produzindo performances da indigência autênticas e falsas, misturando categorias diversas cujas distinções ficam nubladas na propriedade do anonimato das ruas. De qualquer modo, os mendigos, os “incapazes” e os “vagabundos” passaram a ser a imagem eternizada do fenômeno da errância nas cidades.

A piedade e a caridade em torno dos errantes eram favorecidas por um primeiro incentivo da Igreja ao atribuir um status positivo à pobreza que os caracterizava, estimulando a caridade. Porém, como descreve Magni, ao final da Idade Média, após crises econômicas e sociais que agravaram a miséria e instilaram o medo desta, a própria Igreja passou a condenar a errância59. Da caridade ao ato disciplinador, as entidades assistenciais religiosas passam a fazer parte desse universo. É ainda nesse período que se fundamenta a “política dos pobres” para os necessitados.

55 J. C. Rodrigues, 1999. 56 Magni, 1994, op. cit. 57 Idem.

58 De acordo com Geremek, as classificações literárias em torno dos vagabundos e miseráveis na Europa desde a Idade Média eram feitas freqüentemente muito mais em função dos temores que esse imaginário causava do que pela efetiva observação dessa população. O mais comum estereótipo com relação aos vagabundos e miseráveis era o da sua organização corporativa e hermética. A mendicância era tratada como profissão, e a fraude era uma arte. Havia a crença de que grupos marginais possuíam alta organização interna. (Geremek, op. cit, p. 307).

Nos séculos seguintes, as medidas repressivas foram se tornando mais duras para essa população. Entre o século XVI e o final do século XIX, houve uma seqüência de reviravoltas econômicas e políticas, incêndios, epidemias, gerando levas de pauperizados. Acrescente-se a isso que as cidades cresciam, sem melhorar, no entanto, sua infra-estrutura a fim de acomodar o fluxo de pessoas que a ela chegavam. As leis de repressão à vadiagem e a errância foram se sucedendo, incapazes, porém, de eliminar essa forma de movimentação. Mesmo assim, as cidades foram gradualmente se modificando, separando corpos, funções, aumentando seus limites com o campo e se distanciando das atividades relacionadas a este; e, por fim, determinando lugares mais restritos de circulação da vadiagem60.

A racionalidade urbana que se concretiza nos séculos XVII e XVIII (particularmente no XVIII), cuja organização urbana se pauta pelas noções de progresso e de uma funcionalidade espacial análoga à funcionalidade orgânica – e, portanto, por uma distribuição mais equilibrada e complementar dos espaços urbanos61 –, somada à intensificação da exploração da força de trabalho trazem uma outra leitura da indigência. A errância passa de crime moral a ser considerada crime econômico. A ordenação urbana e a preocupação com a saúde da população, gerando modelos sanitários excludentes que se tornaram exponenciais no final do século XIX62, reforçam a projeção dos desempregados e miseráveis como poluidores e perigosos, criminosos.

Entre o século XIX e as primeiras décadas do século seguinte, um outro perfil de movimento itinerante foi adicionado às paisagens sociais – da Europa, dos Estados Unidos e

60 D. Brandon, op.cit; R. Sennet, 1997, op. cit.

61 Sennett se detém na analogia existente entre a anatomia corporal e os novos fluxos urbanos constituídos. A teoria médica sobre a circulação – que ganhou força no século XVI – garantiu um novo sentido à idéia de locomoção. “O

sentido formal de deslocamento em direção a um objetivo [monumento] cedeu lugar à jornada como um fim em si mesmo” (R. Sennet, op.cit, p. 220). A rua é, na concepção iluminista, um espaço urbano importante que cruzava o

centro da cidade ou as áreas residenciais. Os projetistas urbanos fizeram um modelo de tráfego tendo como analogia as artérias e veias humanas, e contínuo deslocamento de sangue e sua irrigação para os órgãos. Os pulmões também foram outra grande referência analógica. Os jardins e as praças passaram a ser concebidos, especialmente na Paris do século XVIII, como pulmões urbanos, densamente arborizados, prontos a garantir aos habitantes da cidade a idéia de respiração saudável, de amplitude, de livre circulação.

“As origens médicas da metáfora sugeriam que um corpo circulante propicia a seus membros e órgãos mais vida, transmitindo à mínima parcela de cada tecido uma força vital, mormente ao coração e ao cérebro. Embora os pulmões urbanos excluíssem o comércio, o modelo da liberdade corporal em que se baseavam convidava justamente a isso” (Idem, p. 224).

62 No Brasil, o fim da escravidão em 1888 revelou-se como um fato político a desencadear um processo de despejo de ex-escravos sem recursos e raríssima oportunidade de mudança de posição social nas ruas e cidades grandes como Salvador e São Paulo. Esse processo se somou à situação de indigência já recorrente nas cidades brasileiras da época, em função da situação de penúria econômica, seca e ausência de planejamento para assimilação da população que migrava para a cidade. Para mais descrições sobre esse período, ver W. F. Filho, 1995. Há algumas referências sobre São Paulo em R. Rolnik, 1999.

também do Brasil – o trabalhador migrante. Com o início da Revolução Industrial, surgiu a necessidade de uma força migratória que circulasse pelas cidades e além delas, circunscrevendo territórios nacionais. O grande fluxo de migrantes gerou conseqüentemente uma inflação do pauperismo nos centros urbanos, redimensionando, por sua vez, os instrumentos de repressão à vadiagem. Nesse período também surgiram as formas arquitetônicas que ampliaram as circulações de pessoas no espaço urbano, ao mesmo tempo em que permitiam o controle da movimentação urbana com maior afinco, mantendo a classe trabalhadora em domínios geograficamente restritos63. Tais fatores não conseguiram conter, no entanto, os fluxos da circulação errante que constituía uma parte do universo do migrante.

Concomitantemente aos movimentos repressivos, expandiu-se a filantropia voltada a essa população. No período da Revolução Industrial, a estrutura da assistência social foi redimensionada. O tratamento dado aos errantes e indigentes passou do caritativo ao educativo e orientador. Eram as entidades de caridade as responsáveis por garantir a provisão de alojamentos, por exemplo. Apenas com as providências estatutárias tomadas por várias nações, como França e Inglaterra, após as devastações sociais e econômicas promovidas pela guerra, que provisões do governo central e de autoridades locais de cada cidade pareceram sobrepujar o trabalho filantrópico64. Mesmo assim, até os contextos contemporâneos, as entidades filantrópicas ainda são instituições que constituem uma essencial fonte de serviços oferecidos aos homeless65.

Esse momento econômico e social em países que sofriam o processo da modernização industrial gerou uma diversidade de trajetos migratórios. Destes, porém, é importante destacar os dos trabalhadores – caracterizados na sua maioria por homens – que, por meio do trabalho, reforçam o circuito da contínua mobilidade, sem ponto fixo de residência. Em países como França, Inglaterra e Estados Unidos, esse perfil está presente em descrições literárias e estudos acadêmicos. Entre os estudos americanos, por exemplo, a caracterização sociológica dos hobos indica a peculiaridade desse fluxo migratório66.

63 Até esse momento, particularmente na Europa, as poucas medidas para acondicionar a população que chegava às cidades eram, na maioria das vezes, o remanejamento de vagas em hospitais (Magni, 1994, op. cit.). A partir do final do século XIX, nos vários contextos de intensificação do trabalho operário, tornou-se necessária a criação de alojamentos (Lodgings houses) próximos aos locais de trabalho (Brandon, op.cit, p. 2). As vilas operárias surgiram no início do século XX, nas cidades grandes, em meio ao saneamento urbano que provocava um afastamento das “classes perigosas” (Magni, 1994, op.cit).

64 Brandon, op.cit, p. 3; Thomas, op.cit. 65 Brandon, op.cit., p. 3.

De acordo com o trabalho de Nels Anderson, o hobo foi trabalhador migrante que surgiu com a expansão das fronteiras do Oeste norte-americano em meados do século XIX e deixou de existir na década de 192067, quando aquela região já havia sido tomada. Os hobos se diferenciavam dos trabalhadores sazonais da época, que possuíam ocupações definidas em diferentes épocas do ano; assim, seu deslocamento pelos Estados do país seguia um trajeto relativamente fixo e habitual. Também se distinguiam dos tramps, ou “vagabundos”, indivíduos fisicamente capazes para o trabalho, mas que adotaram a paixão romântica de ver o país e ganhar experiência sem trabalhar, vagueando, pedindo68.

Os hobos tinham o trabalho como referência central de seu modo de vida, mas as ocupações não eram definidas. Trabalhavam em qualquer atividade, em qualquer época do ano. A variação de atividades se dava em escala nacional69. Mendigavam ocasionalmente, na entressafra de alguns serviços, mas viviam primeiramente do trabalho70. E, acima de tudo, seguiam o caminho da ferrovia:

“Enquanto o hobo refletia a tradição da mobilidade, sua ocupação fez da mobilidade uma virtude. (...) indo de lugar a lugar, ele seguiu as linhas de trem. A viagem pela estrada era bem prosaico. Se ele tinha que andar, era ao longo da linha de trem, e apenas até o próximo tanque de água onde ele esperava por um trem de carga. Seu tipo de mobilidade pertenceu a uma era que lhe era própria”. 71

67 De acordo com Anderson, a expansão da fronteira ocorria em dois movimentos. Havia o movimento de assentamento de terra do Leste para o Oeste, apropriando-se dos recursos naturais. Uma segunda fronteira vinha com a construção da linha de trem, gerando a fundação de cidades e vilas e o estabelecimento de indústrias para explorar os tais recursos naturais. Esta segunda fronteira trouxe ondas de pessoas, levas de imigrantes que não se assentaram na terra, mas procuravam empregos em indústrias. Os primeiros hobos surgiram para constituir as primeiras movimentações, vivendo uma situação de desafio, aventura, fundando lugares e passando para o Oeste. Mas eles funcionavam, sobretudo como um in-between worker, querendo ir a qualquer lugar para arranjar um emprego e igualmente querendo mudar depois. O papel in-between tinha a ver com as duas fronteiras (Anderson, 1998, op. cit.). 68 Os tramps são definidos nesse contexto como pessoas sem emprego, que viajam a pé e, geralmente, vivem da mendicância. Na descrição de Anderson, é um especialista no getting by (arranjar-se). A distinção entre essas categorias não é imediata nem rígida: “O trabalhador sazonal pode descender dos hanks dos hobos, e um hobo pode cair ao nível do tramp” (Idem. p. 67). No universo das categorizações políticas do indivíduo errante nesse contexto norte-americano, o trabalho e a mobilidade são dois fatores fundamentais de distinção entre eles.

Mas todos os tipos citados fazem parte da massa desempregada criada após crise econômica americana do final do século XIX (1873-74): “Tramps e hobos são, portanto, produtos ou subprodutos da imigração estrangeira e da mobilidade interna, da pobreza, do desemprego e da dinâmica social da fronteira. (...) um hobo é assim parte e parcela da mobilidade específica de uma fase histórica na qual os princípios do governo eram comunicação e mobilidade” (R. Rauty, 1998, Tradução minha).

69 Alguns hobos faziam sua atividade em escala internacional (N. Anderson, 1998, op.cit).

70 Anderson descreve os hobos como dotados de um significativo capital cultural. Não eram analfabetos, liam jornais diariamente, “possuíam um grau mais alto de curiosidade mental e interesse cosmopolita que a maior parte dos

trabalhadores” (Idem, p. 27, tradução minha).

Esse segmento possui um lugar romântico na história americana, por traduzir, por meio de sua errância, o movimento desbravador do território nacional. No entanto, seu modo de existência independente, pouco interativo com demais segmentos sociais, a compulsão internalizada para