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Capítulo 1. Afrocentricidade e Educação

1.4. Eurocentrismo

1.4.2. David Hume, eurocentrismo e racismo

David Hume é reconhecido pela tradição ocidental como um dos importantes representantes do iluminismo inglês e como um inimigo intelectual do preconceito e da intolerância. Em seu texto Investigações acerca do entendimento Humano, faz as seguintes observações sobre a natureza humana:

É universalmente reconhecido que existe uma grande uniformidade entre as ações dos homens, em todas as nações e épocas e que a natureza humana ainda permanece a mesma, em seus princípios e operações. Os mesmos motivos sempre produzem as mesmas ações: os mesmos eventos seguem-se das mesmas causas. Ambição, avareza, amizade, generosidade, espírito público: estas paixões, misturadas em vários graus, e distribuídas através da sociedade, têm sido desde o começo do mundo, e ainda são a fonte de todas as ações e empreendimentos, a qual podem ser observadas entre a humanidade. Gostaria de conhecer o sentimento dos gregos e dos romanos? Estude bem o temperamento e as ações dos franceses e ingleses; não se enganarão muito em transferir para os primeiros a maior parte das observações que se fizeram relativamente aos últimos. A humanidade é tal maneira a mesma em todos os tempos e lugares que a história nada de novo nos ensina neste particular (HUME, 1973 p.163).

O excerto acima parece tratar do que há de comum na natureza de todos os seres humanos. No entanto, o filósofo escocês defensor do empirismo, em seu texto de 175360 Do Caráter Nacional que está contido na obra Ensaios Morais Políticos e

Literários, fez as seguintes asserções sobre os não brancos:

Eu me inclino a suspeitar de serem os negros e todas as outras espécies de homens naturalmente inferiores aos brancos (Deve haver quatro ou cinco tipos diferentes). Praticamente nunca existiu uma nação civilizada de outra compleição que não a branca, nem mesmo qualquer indivíduo eminente, seja em ações seja na especulação. Não existem manufaturas engenhosas entre eles, nem artes, nem ciências. Em contrapartida, mesmo os mais rudes e bárbaros dos brancos, como os antigos alemães, ou os tártaros no presente, apresentam algo de eminente entre eles em sua coragem, forma de governo, ou qualquer outro aspecto particular. Semelhante diferença uniforme e constante não poderia ocorrer, em tantos países e épocas, se a natureza não tivesse feito uma distinção original entre essas raças de homens. Sem mencionar nossas colônias, há escravos negros dispersos por toda a Europa, e nunca se descobriu em qualquer um deles nenhum traço de engenhosidade; enquanto membros brancos de classe baixa, sem educação são capazes de progredir e se destacar em qualquer profissão. Na Jamaica, de fato, falam de um negro de mérito e cultura, mas provavelmente ele é admirado por pequenas conquistas, como um

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A primeira edição dos Ensaios Morais Políticos e Literários é de 1748 e não contém esta nota de rodapé. Ela foi inserida na edição de 1753.

papagaio, que é capaz de pronunciar algumas palavras claramente (HUME, 2004, p. 344).

Nesta obra, Hume pretendia explicar o caráter das nações a partir de causas morais, entendidas como aquelas circunstâncias que se ajustam para o trabalho da mente como motivos ou razões que nos conferem um conjunto peculiar de hábitos e modos (p. 332) e causas físicas – entendidas pelo autor como a qualidade do ar, o clima que supostamente alteram nosso temperamento, pela mudança do tom e do hábito do corpo, nos dá uma compleição particular embora através da reflexão e da razão possam ser superadas (p. 332). Como John Locke, o pensador nunca esteve no continente africano e nem estudou com os descendentes dos criadores da civilização. No entanto, este fato não o impediu de afirmar que não houve nações

civilizadas e nem indivíduos de destaque entre os não europeus. Deixemos de lado,

por enquanto, o fato de que a civilização Egípcia, Núbia, o Império Songhai e Mali refutam as asserções de Hume. James Beatie (1735-1803), contemporâneo do filósofo, escreveu em 1770 um livro chamado An Essay on the Nature and

Immutability of Truth in Opposition to Sophistry and Scepticism61 no qual criticava o

argumento aristotélico em favor da escravidão e o argumento de Hume de que não brancos não eram capazes de produzir civilização. Beatie escreveu:

Os impérios do Peru e México não podem ter sido governados, nem a metrópole construída depois de maneira singular, no meio do lago, sem eminentes homens de ação e especulação. Todo mundo ouviu a magnificência, bom governo, e ingenuidade, dos antigos peruanos. Africanos e indígenas são conhecidos por ter muitos artesãos engenhosos e artes entre eles, as quais mesmo os europeus acham difícil de imitar (BEATIE, apud EZE, 1997a p. 35).

A primeira resposta que Hume ofereceu a seu interlocutor foi chamá-lo de amigo

idiota e preconceituoso62. Num segundo momento o filósofo empirista, reconhecendo a crítica de James Beatie de que existiram civilizações desenvolvidas por peruanos e mexicanos, modificou as duas primeiras afirmações da nota de rodapé concentrando

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Neste trabalho utilizamos o excerto da obra de James Beatie, na qual o autor críticas as teses de Hume, contido no livro de Emmanuel Eze, Race and Enlightenment A Reader, Blackwell Publishing, 1997.

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A expressão em inglês é that bigotted silly Fellow. Um bom texto sobre este debate é o de Emmanuel Eze, Race and Enlightenment A Reader, Blackwell Publishing, 1997 e o de John Immerwhar citado na nota anterior. Sobre o racismo de Hume, ver também Hume’s Racism de Richard H. Popkin contido no livro The Highroad to Pyrronism, Hackett Publishing Company, 1993 e o texto de Emmanuel Eze Hume, Race and Human Nature in Journal Of History of Ideas, vol. 61 n.4, 2000.

sua suspeição somente em relação aos negros. A versão final de seu texto ficou com a seguinte redação: “Eu me inclino a suspeitar que os negros são naturalmente inferiores aos brancos. Praticamente nunca existiu uma nação civilizada de outra compleição que não a branca, nem mesmo qualquer indivíduo eminente, seja em ações seja na especulação. [...]”. O restante do texto permaneceu inalterado. (EZE, 1997a, p. 37). Hume, como bom empirista, reconheceu – depois das críticas de James Beatie – que alguns povos não europeus podem desenvolver civilização, porém não estendeu esta mesma consideração aos negros, pois Beatie também pensava que estes não desenvolveram civilização por sua própria conta (sic).

Voltando às civilizações africanas, Eric Morton em seu texto Race and Racism in

the Works of David Hume, ilustra bem o empirismo seletivo do pensador e a

ignorância do filósofo em relação à África e aos africanos:

Se, como Hume sustentava, ele era completamente obediente à metodologia empírica, então certamente um empirista tão respeitado, experiente e erudito como Hume deveria saber ou poderia ter descoberto, que do Nilo ao Niger, do Ártico ao Caribe, dos tempos antigos através das descobertas europeias, poderosas culturas floresceram, na África, na América do norte e do Sul deixando para trás legados óbvios de civilização que deixaria maravilhado qualquer observador não preconceituoso (MORTON, 2002, p. 7).

E mais adiante Morton afirma:

A ignorância de Hume do mundo fora da Europa era típica de como a relação entre europeus e não europeus era representada [...] Ideias e conceitos da Europa como “Ocidente” permitiam aos europeus caracterizar e classificar sociedades em “ocidentais” e não “ocidentais” o que sugeria um certo ranking estrutural de poder e conhecimento, desenvolvido, próximo e distante, superior e inferior. Este ranking produz um tipo de conhecimento que condiciona a visão de mundo europeia e o resto do mundo e as atitudes sobre os povos dentro e fora da Europa. Esta visão de mundo funcionava efetivamente como uma ideologia (MORTON, 2002, p. 8).

Sobre a segunda parte da afirmação de Hume de que não houve indivíduos de destaque de compleição negra o próprio autor ofereceu o contraexemplo para a sua tese. O jamaicano a que Hume se refere é Francis Williams (1700-1771). Williams se graduou em matemática na Universidade de Cambridge foi professor desta mesma disciplina, de latim além de publicar poesias nesta mesma língua (Popkin, 1992, p. 71). De acordo com Richard Popkin (1923-2005), Williams mostrou-se profundamente ofendido com o texto de Hume e demonstrou esta

insatisfação publicamente.63 A resposta de Williams era conhecida nos meios intelectuais ingleses. Hume, no entanto, ignorou o professor e poeta. Eis o argumento decisivo do filósofo empirista para evitar a refutação de sua ”teoria” da inferioridade do negro: “ele é admirado por realização muito limitada como um

papagaio que fala umas poucas palavras claramente”.

Hume parece não ter seguido sua própria recomendação. O autor abre o texto Do

caráter nacional com as seguintes observações:

O homem comum tende a exacerbar ao extremo todos os caracteres nacionais; e uma vez estabelecido este princípio, de que um povo é desonesto, ou covarde, ou ignorante, não admitirá qualquer exceção, aplicando a todos a mesma censura. Homens sensatos condenam esses julgamentos indiscriminados […]. (HUME, 2004, p. 331).

A despeito do que foi afirmado, Hume ainda nos brindou no final do texto – ao refletir sobre a influencia do clima sobre o consumo de bebida alcoólica entre os gregos antigos64, que embora vivessem em clima quente e gostassem de uma garrafa não eram tão beberrões como os persas, habitantes do clima do sul (HUME, 2004, p. 351) – com a seguinte máxima: “pode-se obter qualquer coisa dos negros oferecendo-lhes bebida forte; e é fácil convencê-los a vender não somente seus filhos, mas também suas esposas e amantes por um barril de brandy”65

. (Hume, 2004, p. 352). Talvez o filósofo seja um bom exemplo do vulgo.