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Capítulo 1. Afrocentricidade e Educação

1.4. Eurocentrismo

1.4.1. John Locke e o eurocentrismo

John Locke é conhecido na tradição ocidental como o pai do liberalismo e defensor da filosofia empirista. O liberalismo do autor postula o valor da liberdade dos indivíduos e em decorrência desse princípio um repúdio à escravidão. Em seu

Primeiro Tratado Sobre o Governo Civil, Locke expressou esta repulsa: “a

escravidão é uma condição tão vil e miserável para o homem, e tão oposta ao temperamento generoso e coragem de nossa nação, que dificilmente podemos conceber um inglês, muito menos um fidalgo – ‘gentleman’ – , defendendo-a” (LOCKE, 2005 p. 203). No entanto, este mesmo “gentleman” era investidor da Royal

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Esta característica pode ser observada entre os gregos que consideram bárbaros todos aqueles que não pertencem à sua cultura.

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Ver o capítulo 1 do livro de Elisa Larkin Nascimento, O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil, São Paulo, Selo Negro, 2003.

African Company que era uma das principais companhias responsável pelo comércio de africanos.56

O filósofo defensor da liberdade também foi responsável por um interessante artigo da constituição da Carolina. Nela encontramos o seguinte princípio defendido por Locke: “todo homem livre da Carolina terá poder absoluto e autoridade sobre seu escravo negro, sua opinião, sua religião ou o que quer que seja”.57

Na análise realizada por Robert Bernasconi (1950-) esta aparente contradição não está apenas refletindo preconceitos de seu tempo, pois havia um debate sobre o tratamento que deveria ser dado aos africanos escravizados. O pensador liberal se colocou entre os defensores de um tratamento cruel que negava a condição de humanidade dos africanos. O processo de desumanização estava expresso na tentativa de vetar qualquer manifestação cultural e de identidade dos povos escravizados. Como foi possível para John Locke conciliar seu liberalismo político com a defesa da escravização de africanos? Esta contradição somente pode ser resolvida, como bem coloca Bernasconi, se aceitarmos a evidência do racismo – e do eurocentrismo – de Locke. A contradição se desfaz automaticamente, pois se autor considerava brancos superiores aos negros compreendemos que liberalismo de Locke era aplicável somente aos europeus. Existem evidências para esta alegação? O filósofo liberal, que era defensor da metodologia empirista para obtenção de conhecimento e nunca esteve no continente africano, escreveu sobre as máximas, ou seja, proposições evidentes por si mesmas no livro VII do quarto capítulo, de sua obra Ensaio sobre o

entendimento humano e mostrou como utilizamos axiomas com a seguinte

demonstração:

Se tomarmos um homem como objeto de demonstração a partir de princípios primeiros veremos que a demonstração é apenas verbal e não dá nem uma proposição universal verdadeira, nem o conhecimento de um ser fora de nós. Em primeiro lugar, é provável que a ideia de homem58 moldada por uma criança seja muito parecida com o quadro criado pelo pintor que põe juntas aparências visíveis; essa compilação de ideias; juntas em seu entendimento, perfaz a ideia complexa única que ela chama de homem. Na Inglaterra uma das ideias simples é pele branca; e uma criança poderia

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Ver, por exemplo, o artigo de Anika Maaza Mann e Robert Bernasconi, The contraditions of racism: Locke, slavery and the two treatises in: Race and Racism in Modern Philosophy, 2005, John Immerwhar, Hume's Revised Racism in Jorunal of History of Ideas, vol.53 n. 3 julho setembro, 1992, pp. 481-486, Franz Hinkelammert, La Inversion de los Derechos Humanos: El caso John Locke, Revista Pasos n. 85 e a nota 140 do livro de Crawford B. Macpherson, A teoria do individualismo possessivo de Hobbes a Locke.

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Ver também o artigo de Robert Bernasconi Will The real Kant please stand up: The challenge of Enlightenment racism to study of history of philosophy, Radical Philosophy 117, Jan/ Fev. 2003, p.14.

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demonstrar, a partir deste princípio, que o negro não é homem, sendo a cor branca uma das ideias simples e constantes na ideia complexa que ela chama de homem. Essa demonstração concorda com o princípio que é impossível que uma mesma coisa seja e não seja, que um negro não é um homem (LOCKE, 2012, p. 667).59

Leon Poliakov (1910-1997) em seu texto O mito ariano fez referência a esta passagem e sugeriu a existência de um preconceito já enraizado na sociedade inglesa. Locke nos ensina que uma criança pode demonstrar que o negro não é um homem a partir da ideia simples de pele branca. Não é preciso conhecer o negro, sua origem, seus costumes, seus valores, suas tradições. Para “avaliar a humanidade do negro” é suficiente saber o que os europeus pensam sobre ele. No caso de Locke, basta a ideia simples de pele branca que, essencializada, torna-se referência do ser humano. Essa essencialização da brancura também é percebida na seguinte passagem na qual o autor investigou as relações entre as ideias:

Se considero Caio como um homem, tenho em mente apenas uma ideia complexa da espécie de homem, e se digo que Caio é um homem branco, considero apenas um homem com essa cor. Mas se digo que Caio é marido, implico uma outra pessoa; […] (LOCKE, 2012 p.332).

Para Locke se dizemos que Caio é marido este termo implica a relação com a esposa, ou seja, o termo é relativo. Já ao dizer homem branco não há implicação do outro da relação, o homem negro. O termo foi absolutizado por Locke. O homem branco, para o filósofo, representa o modelo de ser humano. Esta absolutização também é reveladora, pois no parágrafo 7 da mesma seção na qual investiga as relações entre as ideias Locke mostra a relatividade dos termos. Dizia o filósofo:

Em primeiro lugar, não há ideia substância, substância, modo, relação e nome que não seja capaz de uma consideração quase infinita por referência a outras coisas [...] Por exemplo: um mesmo homem pode estar envolvido e manter, ao mesmo tempo, um número quase infinito de diferentes relações [...] Pois, como eu já disse, relação é uma via que se comparam duas coisas [...] (LOCKE, 2012, p. 335).

Podemos claramente, a partir da análise realizada acima, perceber que tanto o empirismo quanto o liberalismo do autor estão embebidos de eurocentrismo.

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A expressão final da citação “que um negro não é um homem” não se encontra no texto que utilizamos. Porém ela pode ser verificada na versão inglesa da obra de Locke disponível em: