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Capítulo 1. Afrocentricidade e Educação

1.4. Eurocentrismo

1.4.3. O eurocentrismo de Immanuel Kant

Immanuel Kant é um dos pensadores mais respeitados da modernidade ocidental. Desde o século XVIII se converteu em um dos principais representantes do iluminismo e do pensamento ético-político dos séculos subsequentes.

Kant, em sua obra Lógica, delineia de forma explícita seu projeto filosófico:

Pois a filosofia no último sentido é, de fato, a ciência da relação de todo conhecimento e de todo uso da razão com o fim último da razão humana, ao qual, enquanto fim supremo, todos os outros fins estão subordinados, e no

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Ver Richard Popkin, Hume’s Racism Reconsidered in: The Third Force of Seventeen-Century Thought, E. J. Brill, 1992, p. 71. Popkin afirma que as informações sobre Francis Williams foram obtidas das pesquisas do professor Henri Louis Gates Jr.

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Já é possível perceber em Hume a tendência de considerar a Grécia o berço da civilização e como a antiguidade da Europa, tendência esta que, como vimos, se consolidou no século XIX.

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qual estes têm que se reunir de modo a constituir uma unidade. O domínio da Filosofia neste sentido cosmopolita deixa-se reduzir às seguintes questões: O que posso saber? O que devo fazer? O que posso esperar? O que é o homem? A primeira questão é respondida pela Metafísica, a segunda pela Moral, a terceira pela Religião, e a quarta pela Antropologia. Em realidade, porém todas estas podem ser sob a Antropologia, desde que estas três questões referem-se à última (KANT, 1992, p. 42).

O filósofo germânico, que introduziu o termo antropologia na Alemanha (EZE, 1997b p.104), evidenciou a importância desta disciplina para o seu projeto filosófico. De fato, ao contrário do que temos sido levados a pensar, Kant – em sua trajetória acadêmica – ofereceu mais cursos de Antropologia, do que de Lógica, Metafísica e Filosofia Moral (EZE, 1997b, p.104).

E o que pensador de Könisberg tem a nos dizer a partir de seus estudos antropológicos? Em seu texto Observações sobre o sentimento do belo e do sublime obtemos algumas informações sobre a sua concepção a respeito do caráter dos africanos:

Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um negro tenha demonstrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles tenham sido postos em liberdade, não se encontrou um único exemplo sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão. Já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força dos dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto a diferença de cores. A religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, o chifre de uma vaca, uma concha, ou qualquer outra coisa ordinária, tão logo seja consagrada por algumas palavras, tornam-se objetos de adoração e invocação nos esconjuros. Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que devem-se dispersá- los a pauladas (KANT,1993, p.75-6).

Como Locke e Hume, Kant nunca pisou no continente africano e nem estudou com eles. Aliás, o autor é conhecido por seu provincianismo. No entanto, dedicou grande parte de sua trajetória acadêmica ao estudo das fontes europeias sobre os povos africanos asiáticos e indígenas. As fontes utilizadas pelo pensador, entretanto, eram tão incomuns que Kant, para ministrar os seus cursos, teve de obter o reconhecimento do ministério da educação da Alemanha. Von Zedlitz, então ministro da educação, escreveu que uma fonte ruim é melhor do que nenhuma. (EZE, 1997b, p.129) Nas fontes consultadas pelo autor – que não passavam de literatura

elaborada por caçadores de fortunas, mercadores e missionários – aprendemos que as esposas dos taitianos gostam de apanhar, que no Brasil se enterram crianças vivas, que na China costuma-se abandonar as crianças, que os esquimós as estrangulam e que os peruanos são pessoas simples, pois tudo que lhes cai nas mãos eles levam à boca (p. 127-8). Podemos observar, no entanto, que o eurocentrismo kantiano se deu ao menos trabalho de tentar justificar empiricamente a inferioridade dos que não pertencem à sua cultura.

Kant tinha um projeto de civilização que envolvia um projeto colonial.66 Os europeus, para Kant, deveriam conduzir os outros povos para a civilização. Central neste projeto do filósofo alemão é o conceito de raça67. Em 1775, o autor publicou

Sobre as diferentes raças humanas.68 A obra foi expandida e republicada em 1777 e em 1783 (BERNASCONI, 2002, p.14). No texto de 1785, Deteminação do Conceito

de uma Raça Humana69, Kant teve de defender pela primeira vez seu conceito devido às críticas desferidas por Johann Herder (1744-1803). Em 1788 teve novamente de defender o conceito, desta vez por causa das críticas de Georg Forster (1754-1794). No texto On the Use of Teleological Principles of Philosophy, de 1788, que hoje se encontra incluído na Crítica da Faculdade do Juízo Teleológico e que faz parte da Crítica do Juízo (p.15), o autor escreve: Porém, não é realmente necessário que eu diga alguma coisa para dar credibilidade à minha explicação do porque existem variedades, desde que eu somente quero defender o conceito de

raça.70 (KANT apud BERNASCONI, 2001, p. 43)

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Ver Gregory D. Laun. A Theory of Just Us: Tracing Themes of Colonialism and White Supremacy in Immanuel Kant's Ethical Philosophy

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A definição científica do conceito de raça é formulada com precisão por Kant. Ver Robert Bernasconi, Who Invented The Concept of Race. In: Race Blackwell Publishers, 2001. Sobre a relação da teoria das raças de Kant com sua obras críticas ver: Emmanuel C. Eze, The Color of Reason: The Idea of Race in Kant’s Anthropology, In: Postcolonial African Philosophy a Critical Reader, Blackwell Publishers, 1997 e Gregory D. Laun A Theory of Just Us: Tracing Themes of Colonialism and White Supremacy in Immanuel Kant´s Ethical Philosophy.

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O professor de Filosofia da Universidade Federal do Ceará, Alexandre Hahn, publicou uma tradução deste texto para o português em Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 5, n. 5, p. 10 - 26, número especial, jul.- dez., 2010. O texto também se encontra disponível em:

http://www.academia.edu/3221053/DAS_DIFERENTES_RACAS_HUMANAS_-_IMMANUEL_KANT

Acesso em 09 jun. 2014.

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Alexandre Hahn publicou uma tradução deste texto para o português em Kant e-Prints. Kant e- Prints. Campinas, Série 2, v.7,n.2, p.28-45,jul.-dez.,2012. O texto também se encontra disponível em:

ftp://ftp.cle.unicamp.br/pub/kant-e-prints/Vol-7-2-2012/4%20-%20Traducao.pdf Acesso em 09/06/2014

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O itálico é do autor. O texto se encontra traduzido na íntegra na obra organizada por Robert Bernasconi. Há também uma tradução para o português, do professor Marcio Pires da Universidade Estadual de Maringa, na revista Trans/Form/Ação, Marília, v. 36, n. 1, p. 211-238, Jan./Abril, 2013. O texto também se encontra disponível em: http://www.scielo.br/pdf/trans/v36n1/12.pdf Acesso em 09 jun. 2014.

Na passagem citada, Kant afirma que há uma diferença essencial entre as raças. O pensador descreve as raças humanas71 como se segue:

Gênero fundamental: Branco de cor morena;

Primeira raça, Loiro Nobre (Europa do Norte), do frio úmido; Segunda raça, vermelho (América), do frio seco;

Terceira raça, negro (Senegâmbia), do calor úmido;

Quarta raça, Amarela (Asiáticos- Indianos), do calor seco. (KANT apud BERNASCONI & LOTT, p. 20).

Segundo o filósofo nigeriano Emmanuel Eze (1963-2007), a suposição que organiza esta é a hierarquia é que a cor branca é a ideal e as outras são superiores ou inferiores dependendo do quanto se aproximam da branquitude (p. 118). Esta análise parece correta, pois Kant em seu texto Geografia Física, afirma: “Humanidade existe em sua maior perfeição na raça dos brancos. Os índios amarelos têm escassos talentos. Os negros estão bem abaixo deles e no ponto mais baixo estão uma parte do povo americano” (KANT, apud EZE 1997a, p. 63) Eze sustentava que Kant acreditava na teoria de degeneração das raças – que provavelmente aprendeu de Johann Blumenbach (1752-1840) – o que significa que as raças não brancas são degenerações da raça branca (EZE, 1997b, p. 118). A afirmação de Eze encontra suporte em outra passagem da Geografia Física na qual o pensador afirma que: os negros nascem brancos com exceção dos seus genitais e do anel em torno do umbigo, que são negros. Durante os primeiros meses de vida a cor negra se espraia destas partes para todo o seu corpo (KANT, apud EZE 1997a, p. 60)

Kant, na passagem de Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, utiliza Hume como suporte para o seu argumento de autoridade. No entanto, há uma questão importante a ser analisada para compreendermos a abrangência do fenômeno eurocêntrico. Por que Hume tornou-se uma referência para um debate sobre a civilização e cultura dos africanos? Hume não era antropólogo. Nunca esteve nesse continente. De onde provinha, então, sua autoridade? Richard Popkin, em Hume’s Reconsidered Racism mostra que aqueles que tinham posições mais moderadas sobre a escravidão tiveram que enfrentar os “argumentos de Hume” utilizados pelos defensores mais ferrenhos deste crime contra a humanidade. (p.66)

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O texto de Kant Of the Different Human Races está publicado na íntegra na obra The Idea of Race organizada por Robert Bernasconi e Tommy L. Lott. As citações deste trabalho foram realizadas a partir desta coleção.

Para respondermos à questão proposta é importante, neste ponto, lembramos uma precisa observação do professor John Henrik Clarke (1915-1998): Os europeus não apenas colonizaram o mundo, eles colonizaram a informação sobre o mundo. Eles desenvolveram o monopólio e controle dos conceitos e imagens.72 O eurocentrismo transforma em verdade o que os europeus pensam ou imaginam sobre o mundo e isso inclui aqueles que não pertencem à sua cultura. O fato de Hume ser considerado uma autoridade no debate sobre a humanidade dos africanos nos ajuda a entender o processo de construção do paradigma eurocêntrico. Estabelecido este paradigma, não é preciso conhecer a história e cultura dos povos não europeus tampouco é preciso consultá-los. Por este motivo Kant não via problema em lecionar antropologia e geografia utilizando como bibliografia As Viagens do Capitão Cook!

Por fim, neste contexto, devemos apresentar o pensador de Gana, Anthon Wihelm Amo (1703-1756).73 Amo foi um importante filósofo do século XVIII. Lecionou nas universidades de Halle, Jena e Wittenberg. Conviveu com grandes pensadores alemães como Gottfried Leibniz e Christian Wolff. Dominava o latim, hebreu, grego, francês, holandês e o alemão, além do Direito e da Medicina. (ABRAHAM, 2004, p.191). Também escreveu entre outras obras: O Direito dos Negros na Europa. Tamanha era sua reputação que Johan Blumenbach escreveu um artigo se referindo a Amo:

Nosso honorário Professor Hollman, enquanto ele ainda estava em Wittenberg, conferiu o grau de Doutor em Filosofia para um Negro que provou seu grande talento em seus escritos e suas aulas, e que depois foi para Berlin como conselheiro do rei. Eu tive acesso a dois dos seus tratados no qual um, especialmente, contem muito inesperadamente uma leitura bem feita dos melhores trabalhos fisiológicos de seu tempo (BLUMENBACH apud ABRAHAM,1991, p.197).

O reconhecimento de Amo não se restringia a Alemanha. Richard Popkin (1992) sustenta que Amo poderia ser usado como evidência que refutava que as afirmações de Hume sobre a inferioridade do negro. Como Kant, que valorizava a experiência para a obtenção do conhecimento, simplesmente ignorou a existência

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Prefácio escrito para obra de Marimba Ani Yurugu An African centered Critique of European Thought and Behavior, Africa World Press, 1994, p.xvi.

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Para informações sobre o pensador ganense ver o texto de William E. Abraham Anthon Wihelm Amo, de Kwasi Wiredu Amo’s Critique of Descartes’ Philosophy of Mind in: A Companion to African Philosophy Blackwell Publishing, 2004 e o texto de Paulin Hountondji, An African Philospher in Germany in the Eighteenth Century: Anton Wihelm Amo in: African Philosophy Myth and Reality, London: Houtchinson University Library for Africa.

desse renomado pensador? No texto de Jason Wirth Beyond Black Orpheus74, o autor refere Amo como professor de Kant (p. 272). Mesmo que se possa argumentar que a linguagem utilizada seja figurada é praticamente impossível que o pensador de Könisberg não conhecesse Amo. Talvez Kant não tenha sido despertado de seu sono dogmático.