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Capítulo 1. Afrocentricidade e Educação

1.5. A influência do eurocentrismo no pensamento educacional europeu

1.5.2. O pensamento educacional de Herbert Spencer

Herbert Spencer (1820-1903) foi um importante filósofo inglês defensor do liberalismo, do positivismo e do darwinismo social. Preocupado com as questões

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sociais da sociedade inglesa escreveu, entre outras obras, um texto clássico sobre a educação. Seu livro Educação Intelectual, Moral e Física escrito originalmente em 1863 pretendia rediscutir as bases do ensino na Inglaterra à luz do avanço e do prestígio do conhecimento científico e das concepções teóricas que moldaram o seu pensamento.

Na primeira seção de seu texto sobre educação intitulada Quais os

conhecimentos de maior valor? desenvolveu a seguinte reflexão80:

Nenhum de nós se contenta em deixar desenvolver as nossas individualidades naturalmente, em todas as direções; desejamos ardentemente impor aos outros a nossa personalidade, e até certo ponto subjuga-los. É isto o que determina o caráter de nossa educação. Os conhecimentos de maior valor não os que mais consideração nos merecem; mas aqueles que nos trouxerem maior cópia de aplausos, de honras, de respeito, os que mais facilmente nos levarem à influencia e à posição social, os que mais se impuserem. Como o que nos importa não é aquilo que realmente somos, mas o que mostramos ser, assim, na educação, a questão não está no valor intrínseco dos nossos conhecimentos, mas nos seus efeitos extrínsecos sobre os outros. E como esta é nossa ideia dominante, vê-se que temos menos em vista as coisas de utilidade direta, do que o selvagem quando aguça os dentes e pinta as unhas (SPENCER,1888, p. 7).

Nesta passagem Spencer crítica a concepção de educação presente em seu tempo que valoriza os conhecimentos não pela sua utilidade, mas pelos efeitos que causam sobre os outros. Em seu tempo, o ensino enciclopédico era visto como digno de honra, respeito e garantia prestígio e influência social a seu detentor. Neste sentido, os ingleses não davam o devido valor aos conhecimentos de utilidade direta podendo, em certo sentido, ser comparado aos “selvagens” – observamos novamente a oposição eurocêntrica entre civilizado e selvagem – que aguçam os dentes e pintam as unhas. Para o filósofo o conhecimento de maior valor é o científico. Vejamos como o pensador defendia ardorosamente esta ideia:

Assim para a pergunta que formulamos – quais são os conhecimentos de maior valor? Há uma resposta uniforme – a Ciência. É o veredito de todas as interrogações. Para a direta conservação própria, o que se chama de vida e da saúde, o conhecimento mais importante é a Ciência. Para a indireta conservação própria, o que se chama ganhar a vida, o conhecimento de maior valor é a Ciência. Para o justo desempenho das funções da família o guia mais próprio só se encontra na Ciência. Para a interpretação da vida nacional, no passado e no presente, sem a qual o cidadão não pode justamente regularizar o seu procedimento, a chave indispensável é a Ciência. Para a produção mais perfeita e para os gozos

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As citações da obra de Herbert Spencer utilizadas neste capítulo foram adaptadas ao novo acordo ortográfico.

da arte em todas as suas formas, a preparação imprescindível é ainda a Ciência, e para os fins da disciplina intelectual, moral e religiosa – o estudo mais eficaz é ainda uma vez, a Ciência. (p.85-86).

Para uma boa educação intelectual, moral e física o método mais eficaz é se deixar guiar pela ciência. Aqui percebemos o positivismo do autor. Para o filósofo a educação deve seguir os princípios científicos e oferecer uma educação baseada nesta modalidade de conhecimento, visto que são estes os de maior valor.

Spencer considerava que uma educação intelectual satisfatória conseguiria prender atenção dos estudantes. O incômodo do autor com os efeitos do ensino clássico nos estudantes pode ser percebido na passagem que se segue:

Por quanto tempo o estudo se tornar habitualmente repugnante, por tanto prevalecerá a vontade de não continuar no estudo, logo que os rapazes possam furtar-se à coação dos pais e dos mestres. E quando o estudo da ciência for habitualmente agradável, então há de prevalecer a tendência para continuarem sem superintendência, nos estudos começados sob a direção dos mestres (SPENCER, 1888, p.167).

Tendo em vista este estado de coisas Spencer introduziu os seguintes princípios para uma educação intelectual eficaz e de acordo com postulados que considerava científicos:

1. Que na educação devemos proceder do simples para o composto [...] 2. O desenvolvimento do espírito, caminha do indefinido para o definido [...] 3. Dizer que nossas lições devem começar pelo concreto e terminar no abstrato [...] 4. A educação das crianças deve harmonizar-se, quer no modo quer na ordem, com a educação do gênero humano historicamente. Por outras palavras, o gênesis da inteligência no indivíduo, deve seguir o mesmo curso do gênesis da inteligência da raça [...] 5. Uma das conclusões a que nos leva uma investigação é esta – que em cada ramo de instrução nós temos de caminhar do empírico para o racional. [...] 6. Um corolário do princípio geral que acabamos de enunciar, sobre o qual nunca se insistirá demais, é que na educação o processo de desenvolvimento próprio deve ser instigado o mais possível. 7. Como última pedra de toque pela qual podemos julgar de qualquer plano de ensino aparecerá a seguinte interrogação: Tal plano será agradavelmente recebido pelo discípulo (SPENCER, 1888, p.117-124).

Já a educação moral, para o filósofo, é aquela que deve preparar o homem e a mulher para o governo da família. O autor entendia que os homens e mulheres ingleses não davam a devida atenção para esta modalidade de educação. Em suas palavras:

Enquanto um rapaz gasta muitos anos na aquisição de conhecimentos cujo valor principal é torna-lo “perfeito cavalheiro”, e enquanto uma menina

dispende muitos anos nas conquistas para os saraus, nem uma hora dispende qualquer deles em se preparar para a mais grave de todas as responsabilidades – o governo da família (SPENCER, 1888, p.170).

A educação das crianças não é uma tarefa simples, no entender do filósofo. Por isso sua preocupação com a educação moral. A tarefa não é simples, pois para o pensador as crianças têm tendências para o roubo e a crueldade precisando, então, ser civilizadas. É interessante observara maneira pela qual Spencer retrata a moralidade das crianças:

Não espereis das crianças uma grande sombra de bondade moral. Durante os primeiros anos todo homem civilizado passa pelas fases de caráter, patenteadas pela raça bárbara de que descende. Como as feições da criança – o nariz chato, as narinas abertas, os beiços grosso, os olhos muito afastados, a ausência de sinus frontal, etc. –, se parecem, por certo tempo, com as feições do selvagem, assim se assemelham seus instintos. Daqui as tendências para a crueldade, para o roubo, tão gerais nas crianças – tendências que, mesmo sem o auxílio da disciplina, virão a ser mais ou menos modificadas, exatamente como as feições (SPENCER, 1888, p. 218- 219).

É bem verdade que Herbert Spencer não escreveu seu texto com objetivo de mostrar como os africanos, indígenas e asiáticos deveriam ser educados. No entanto, a sua analogia da criança bárbara que deve ser civilizada, e, portanto, é parecida com o selvagem de beiços grossos é reveladora. Observe que até as feições das crianças – das quais não podemos esperar grande sombra de bondade moral – se parecem, até serem “civilizadas”, com as feições da “raça bárbara”. É curioso observar que com a educação não somente as tendências à crueldade e ao roubo seriam modificadas. As feições também sofreriam modificações.

Esta oposição entre civilizado e selvagem ou bárbaro não é ingênua. Ela surge exatamente no século dezoito no período em que o eurocentrismo está ganhando corpo. O intelectual argentino naturalizado brasileiro Efraim Tomás Bó compreendeu sagazmente a importância destes conceitos no processo de dominação europeia:

Um substantivo, neologismo aparentemente simples – civilização – nascido, curiosamente apenas na metade do século XVIII simultaneamente na França ou da Inglaterra, derivado do verbo – civilizar – se transforma, em centúria e meia, em arma e instrumento, em poderosa ideologia de dominação [...] e como a violência instrumental da arma ou ideologia? Buscando, primeiro a obnubilação da memória, e, em seguida, a implantação das próprias formas culturais das potências civilizadoras nos povos submetidos. Não é outra ação o efeito da aculturação [...] O negro foi aculturado dentro de linhas específicas de pressão espiritual. Sua religião e sua cultura, seus valores e sua concepção de mundo foram pulverizados até

sua redução à matéria de folclore e antropologia, através da deformação pitoresca do sincretismo (TOMAS BÓ, apud NASCIMENTO, 1981, p.13).

Já a educação física é aquela que deve entre outras coisas zelar pela boa alimentação das crianças e jovens para que estes cresçam fortes e saudáveis. Spencer tem um entendimento desta modalidade de educação similar ao de Immanuel Kant. Nela podemos perceber de maneira inequívoca as relações que Spencer estabelece entre a educação física e a dominação naturalmente exercida pelas raças bem alimentadas o que, de certa forma confirma a análise de Efraim Tomas Bó:

Podem dizer-nos que estas diferenças não são consequências diretas da diversidade das constituições; mas a verdade é que são consequências diretas das alimentações, que os indivíduos exigem para sua subsistência; fato que se observa entre as diferentes divisões da mesma espécie. [...] Os australianos, os bushmen e outros selvagens de raças ainda mais baixas, que vivem de raízes e de frutos apodrecidos pelas larvas dos insetos, e outros alimentos vis, são comparativamente enfezados de estatura, tem grandes abdomens, músculos frouxos e por desenvolver, e absolutamente incapazes de lutar com os europeus, quer em combate, quer em exercícios prolongados. Observem-se as raças selvagens que são bem constituídas, fortes e ativas, como os cafres, os índios norte-americanos e os patagônios e ver-se-á que são grandes consumidores de carne. O índio mal alimentado humilha-se diante do inglês, sustentado por melhor alimentação; é relativamente a este um inferior, quer no desenvolvimento intelectual, quer na força física. A história do mundo mostra o seguinte – as raças bem alimentadas foram sempre as raças fortes e dominantes (SPENCER, 1888, p. 255-256).

O eurocentrismo de Spencer se manifestou com toda força nesta passagem. O uso da expressão pejorativa “bushmen” já é um bom indicativo de como o filósofo vê a sua sociedade como superior e modelo para as demais. Entretanto, Spencer vai mais longe. Sem oferecer evidências alega que os “selvagens”, australianos e “bushmen” vivem de frutos apodrecidos, raízes e larvas de insetos e por esta razão não conseguem enfrentar os europeus. Nunca é demais lembrar que os povos africanos, indígenas e asiáticos não procuraram enfrentar os europeus. Estes é que se lançaram em uma ofensiva colonial, expansionista e escravagista contra estes povos. O máximo que eles poderiam fazer, e fizeram, foi reagir. Esta diferença é importante, pois a guerra foi declarada – pelos europeus – de forma unilateral e sem motivo justificado. Desse modo, a argumentação do autor consciente ou inconscientemente retirou de cena o problema moral que consiste em invadir um território que não lhe pertencia, dominar e escravizar o povo autóctone – que Spencer eufemisticamente caracteriza como o índio mal alimentado que se humilha

diante do inglês – pois tratar-se-ia apenas de uma disputa natural entre raças bem e mal alimentadas. E como o pensador disse as raças bem alimentadas, obviamente segundo parâmetros europeus, sempre foram fortes e dominantes. Efraim Tomas Bó não poderia ter sido mais preciso em sua crítica.

Para finalizarmos nossa análise da concepção educacional deste pensador vejamos como ele concebia a educação da mulher:

As mães, que só anseiam por ver atraentes suas filhas, mal poderiam escolher um sistema mais fatal do que este, que sacrifica o corpo ao espírito. Ou elas não se importam com as apreciações dos homens, ou então é muito falsa a concepção que fazem de suas próprias apreciações.

Os homens pouco se importam com a erudição das mulheres; mas importam-se e muito com a sua beleza física, com seu bom caráter, e com seu bom senso. Quantas conquistas fará uma sabichona por causa dos seus extensos conhecimentos históricos? Qual é o homem que se apaixona por uma mulher por ela saber italiano?

Onde está o Edwin que cai aos pés de Angelina por que ela fala o alemão? Mas as faces cor de rosa e os olhos risonhos são grandes atrativos. [...] Se alguém pensar que a nossa asserção é aviltante para o caráter dos homens porque se deixam dominar desta maneira, nós lhes responderemos que não sabe o que diz quando põe em questão as ordenações divinas; ainda que que nesta ordem de coisas não houvesse uma inteligência manifesta, nós podemos estar certos de que a natureza teve em vista algum fim importante. Mas essa inteligência é patente a todos que a observam (SPENCER,1888, p. 305).

Na passagem acima, além do eurocentrismo, vem à tona o machismo do autor. A justificativa apresentada pelo filósofo para que as mulheres não estudem reside no suposto fato de os homens não se apaixonarem e não gostarem de mulheres “sabichonas” ou eruditas. Pouco importa se a educação é importante para as mulheres. O importante é a o modo como estes a “apreciam”. Com esta lógica em mente, Spencer advertia também as mães que sacrificavam a educação do corpo das filhas em detrimento do espírito. É curioso notar que o filósofo procurou se justificar contra a objeção feita a parte de sua argumentação, pois esta poderia caracterizar os homens como dependentes das paixões. Isto nos leva novamente à

Teoria das Duas Origens de Diop. O pensador senegalês mostrou que a cultura

europeia é marcada pela patrilinearidade e pela desvalorização do papel da mulher na sociedade. As tradições africanas, ao contrário, são caracterizadas pela matrilinearidade, ou seja, nestas as mulheres sempre desempenharam um papel social fundamental. Uma educação que coloque a mulher num papel de subordinação ao homem, além de machista, está ancorada em uma tradição

completamente antagônica à africana, e obviamente, não deve servir de parâmetro para as mulheres afro-brasileiras.