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Capítulo 1. Afrocentricidade e Educação

1.4. Eurocentrismo

1.4.4. O eurocentrismo de Karl Marx

Karl Marx é reconhecido na tradição acadêmica ocidental como um pensador comprometido com a libertação das classes trabalhadoras e a denúncia da lógica dos sistemas de exploração. Crítico do sistema capitalista, que considerava explorador do ser humano, Marx em seus principais trabalhos dedicou-se a mostrar que este sistema deveria ser substituído pelo socialismo científico um sistema econômico, em seu entender, mais justo e mais humano.

No Manifesto do Partido Comunista, escrito em conjunto com Friedrich Engels, Marx afirmou que: a história de todas as sociedades até hoje história da luta de classes. (MARX & ENGELS, 1998, p. 4). A afirmação dos autores, seguindo a tradição europeia, pretende estabelecer um modelo universalmente aplicável ao desenvolvimento da história de todos os povos.

É conhecida a dificuldade de Marx em relação à história dos povos não europeus.

Eric Hobsbawn importante pensador marxista do século XX reconheceu este fato na introdução da obra Formações econômico pré-capitalista:

Podemos, pois, resumir o nível geral dos conhecimentos de Marx e Engels da seguinte forma: no período em que foram elaboradas as Formen, eram escassos os estudos sobre pré história, sociedades comunais primitivas e América pré-colombiana e virtualmente inexistentes os relativos à África. Quanto ao Oriente Médio, antigo e medieval – bem como o Japão – os estudos realizados pelos dois eram insuficientes, melhorando sensivelmente no que dizia respeito a outras partes da Ásia, em especial a Índia (HOBSBAWN apud MARX, 1985, p. 28-29).

Entretanto, os parcos conhecimentos de Marx e Engels sobre os povos da África, da Ásia e das Américas não os impediu de universalizar um fenômeno típico das sociedades europeias. Engels reconheceu sua ignorância em uma nota de rodapé

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O texto se encontra na obra Race and Racism in Continental Philosophy editado por Robert Bernasconi e Sybil Cook, Indiana University Press, 2003.

acrescentada na edição de 1888 do Manifesto. Se os pensadores não tinham informações satisfatórias sobre continente africano, a América pré-colombiana, a Índia e o Oriente Médio o que permitiu aos autores preocupados com as condições da vida material fazer semelhante afirmação? Carlos Moore (1942-) ao comentar esta passagem observa que o intelectual marxista pretendeu atribuir a ignorância de Marx e Engels das sociedades não ocidentais à ausência de material para estudo (MOORE, 2010 p. 61), pois, de outro modo, seria forçoso reconhecer o eurocentrismo da tese defendida por Marx e Engels. Já vimos, na primeira seção, que a obra de Engels A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, está baseada nas teses eurocêntricas de Lewis Morgan. Podemos confirmar que os autores tomam a Europa como modelo de civilização a partir da leitura de outra passagem do Manifesto Comunista:

Com o rápido aperfeiçoamento de todos os instrumentos de produção, com as comunicações infinitamente facilitadas, a burguesia arrasta todas as nações mesmo as mais bárbaras, para a civilização. Os baixos preços das suas mercadorias são a artilharia pesada com que derruba todas as muralhas chinesas e com que obriga à capitulação os bárbaros mais obstinadamente hostis aos estrangeiros. Compele todas as nações, sob pena de ruína total, a adotarem o modo de produção burguês; compele-as a se apropriarem da chamada civilização – isto é, a se tornarem burguesas. Numa palavra, a burguesia cria para si um mundo à sua imagem e semelhança (MARX & ENGLES, 1998, p. 10).

Karl Marx avaliou de maneira positiva o colonialismo e a expansão capitalista, pois é dessa forma que os “bárbaros” seriam civilizados. Na página 07 do Manifesto, o pensador sustentou que a burguesia desempenhou na história um papel revolucionário. A avalição de Marx não poderia ser diferente. Ele entendia que historicamente a sociedade avança por meio da luta de classes. Em sua análise do capitalismo identificou duas classes em conflito: a burguesia e o proletariado. A burguesia, após cumprir seu papel revolucionário – levar a cabo o avanço do capitalismo, do colonialismo e do que se chama civilização ocidental – fomentaria a contradição entre ela e o proletariado. Este, então, comandaria, por meio de uma ditadura, a sociedade para o socialismo científico ou comunismo. A lógica é clara. Para chegarmos ao paraíso comunista é necessária a existência do capitalismo e da burguesia. Se este fato implica em violência e destruição das culturas não europeias é apenas o preço a pagar pela civilização.

Política:

Cheguei também à conclusão que de que a anatomia da sociedade burguesa deve ser procurada na Economia Política.

[...] O resultado geral a que cheguei e que, uma vez, obtido, serviu-me de guia para meus estudos pode ser formulado, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento das forças produtivas materiais. A totalidade das relações constitui a estrutura econômica da sociedade, base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais de determinada consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. [...]

Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou o que é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social (MARX, 2008, p. 47).

Tsenay Serequeberhan, ao analisar esta passagem, corretamente observa que Marx não está fazendo uma afirmação histórica e sim enunciando um princípio metafísico. (SEREQUEBERHAN, 1990, p.169) Será que as sociedades matrilineares africanas se enquadrariam neste postulado?

Se resta, ainda, alguma dúvida sobre o eurocentrismo de Marx, podemos ver como o pensador dos oprimidos avaliou a escravização dos africanos e a dominação inglesa na Índia. Em numa carta endereçada a seu aliado político Pavel Vasilyevich Annenkov (1813-1887), escrita em 1846, Marx sublinha o lado “positivo” da escravidão negra nas Américas:

A liberdade e a escravidão constituem um antagonismo. Não há nenhuma necessidade para eu falar dos aspectos bons ou maus da liberdade. Quanto à escravidão, não há nenhuma necessidade para eu falar de seus aspectos maus. A única coisa que requer explanação é o lado bom da escravidão. Eu não me refiro à escravidão indireta, a escravidão do proletariado; eu refiro-me à escravidão direta, à escravidão dos pretos no Suriname, no Brasil, nas regiões do sul da América do Norte.75

O contexto desta citação é importante. Marx pretendia mostrar que sua análise dialética é superior à de Proudhon, por isso a oposição entre liberdade e escravidão. Note-se, entretanto, que nesta disputa “intelectual” pouco importava a realidade dura da escravidão africana. Para Marx, os escravos estavam no mesmo patamar dos bois e dos arados – não são humanos – são maquinarias sem a qual o

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Carta a Pável Vasilyevich Annenkov. Carta disponível em:

desenvolvimento econômico não seria possível. Em suas palavras:

A escravidão é consequentemente uma categoria econômica de suprema importância. Sem escravidão, a América do Norte, a nação a mais progressista, ter-se-ia transformado em um país patriarcal. Apenas apague a América do Norte do mapa e você conseguirá anarquia, a deterioração completa do comércio e da civilização moderna.76

Ainda ao tratar do colonialismo inglês:

Como a supremacia inglesa chegou a se estabelecer na Índia? [...] Tal país e tal sociedade não eram a presa destinada para a conquista? [...] A Índia não poderia, portanto, escapar ao destino de ser conquistada e toda sua história, se história houver, é a das conquistas sucessivas que ela sofreu. A sociedade indiana não tem qualquer história, pelo menos história conhecida. O que chamamos de história não é a história dos invasores sucessivos que fundaram seus impérios sobre a base passiva desta sociedade imóvel e sem resistência. A questão não é, portanto, a de saber se os ingleses têm direito de conquistar a Índia, mas se devemos preferir a Índia conquistada pelos turcos, pelos persas, pelos russos, à Índia conquistada pelos britânicos.

A Inglaterra tem que cumprir uma dupla missão na Índia: uma destruidora e outra reguladora – aniquilação da velha sociedade asiática e a instalação dos fundamentos materiais da sociedade ocidental na Ásia77

Marx é claro. Para haver civilização, são necessárias a escravidão, a conquista e a violência. Não há problema ético algum a ser colocado. O marxismo, produto da sociedade ocidental do século XIX, como bem observam Moore e Serequeberhan, está comprometido com a visão eurocêntrica do mundo.

Diante desses eventos, relativo aos fundamentos filosóficos do eurocentrismo, é fundamental para os africanos continentais e da diáspora, a fim de preservar sua integridade cultural, rejeitar este paradigma.

1.5. A influência do eurocentrismo no pensamento educacional