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De tu, vós, vossa mercê e outros a você: algumas considerações 50

4.   FORMAS DE TRATAMENTO 49

4.1   AS FORMAS PRONOMINAIS TU, VOCÊ, (O) SENHOR/(A) SENHORA 50

4.1.1   De tu, vós, vossa mercê e outros a você: algumas considerações 50

De acordo com Brown e Gilman (1988, p. 157), o desenvolvimento europeu dos dois pronomes de tratamento no singular começou com os latinos tu e vos. No Latim antigo havia somente o tu no singular. O plural vos, como forma de se dirigir somente a uma pessoa, teria sido usado inicialmente para o imperador no século IV.

Embora admitam a existência de várias teorias, os autores defendem a seguinte: na época havia dois impérios, um do oriente, com sede em Constantinopla, e outro do oeste, com sede em Roma. Com a reforma de Diocleciano, a função de imperador foi unificada e, embora desempenhada por dois homens, as palavras usadas para tratar um seriam as mesmas para tratar o outro. Desse modo, “a escolha de vos como uma forma de tratar pode ter surgido em resposta a essa pluralidade implícita.”

Para Brown e Gilman (1988, p. 156), francês, alemão, italiano, espanhol e outras línguas próximas do inglês (não citadas no texto), possuem dois pronomes de tratamento no

singular e estes mantêm estreita associação com duas dimensões fundamentais para a análise da vida social: poder e solidariedade.

Segundo os autores (p. 158), o poder é uma relação não-recíproca entre, pelo menos, duas pessoas, no sentido de que ambas não podem tê-lo na mesma medida. De modo análogo, o poder semântico seria igualmente não-recíproco, pois o superior diz tu (T), o destinatário diz vos (V).

Na Europa Medieval (séc. V ao séc. XV) não havia uma única regra de uso de T e V. Entre membros de poder equivalente e da mesma classe a forma de tratamento era recíproca. Assim, os membros da classe mais elevadas trocavam V e os das classes baixas trocavam T. No Império Romano, poucos tinham a oportunidade de cumprimentar o imperador e, assim, de usar V no singular. Mais tarde, em outras partes da Europa, o tratamento V passou a ser usado por uma corte em imitação a outra, como marca de elegância. Na França, no século dezessete, nobres e burgueses passaram a usar o tratamento entre si, mesmo entre marido e esposa, namorados, pais e filhos adultos (BROWN; GILMAN, 1988, p. 159).

Por muitos séculos, francês, inglês, italiano, espanhol e alemão seguiram a regra T - V não-recíproco entre pessoas de poder desigual, e mútuo V ou T (de acordo com a classe social) entre pessoas de poder equivalente. Com a crescente complexidade na tarefa de identificar poder, gradativamente se desenvolveu uma distinção: T se transformou em pronome de intimidade e V de solidariedade.

O pronome de solidariedade é usado nas relações solidárias e simétricas (religião, sexo, profissão, local de nascimento, irmãos velhos e pais etc.). Por sua vez, são muitas as bases do poder: força física, riqueza, idade, sexo, representantes institucionalizados de igreja, estado, forças armadas e família.

De acordo com Soto (1997), as mudanças sociais e econômicas – como a “descoberta” de colônias na África, Ásia e América, – fizeram com que a Corte portuguesa se reorganizasse, provocando mudanças também no tratamento real. O tratamento formal vós, herdado do latim, já não era suficientemente honorífico para a figura do rei e outras formas vieram a substituí-lo. Assim, de acordo com a autora, Vossa Mercê foi uma das primeiras formas empregadas, aparecendo em textos das cortes de 1331.

Oliveira e Ramos (2002) afirmam que no séc. XIV Vossa Mercê era tratamento destinado ao rei. Mas logo ocorreu a vulgarização23 deste tratamento, visto que passou a ser

23 Segundo Soto (1997), decretos de 1597 e 1739 e sátiras de Gil Vicente documentam o desuso de Vossa

usado não só para a pessoa real, mas também para os nobres e, posteriormente para a pequena burguesia urbana. Com o surgimento da burguesia, a forma nominal teria sido usada entre esses membros, perdendo seu valor honorífico. Logo, Vossa Mercê tornou-se um tratamento relativamente respeitoso entre membros da pequena burguesia urbana e surgiu a necessidade de criação de novas formas, como Vossa Senhoria, Vossa Majestade, Vossa Alteza, Vossa

Excelência.

Contrariamente ao que propõem Duarte (1993) e Faraco (1996), Oliveira e Ramos (2002, p. 8) sugerem que vosmecê (posteriormente você) substituiu o pronome vós, e não o pronome tu. Para as autoras, as formas nominais Vossa Mercê, Vossa Senhoria, Vossa Alteza,

Vossa Majestade, Vossa Excelência etc. substituíram o vós, como tratamento usado para um

único interlocutor.

Mais tarde, com a difusão das formas de tratamento, Vossa Mercê teria se tornado muito comum e não seria mais necessário nenhuma diferença hierárquica entre quem falava e seu interlocutor. Desse modo, Vossa Mercê passou a indicar apenas respeito pela pessoa e, com seu uso cada vez mais comum, surgiram diversas formas reduzidas (vosmecê – ainda em uso no falar rural –, vossuncê, suncê, você) (CHAGAS DE SOUZA, 2002, p. 152).

Os usos de você no lugar de tu tiveram início na primeira metade do século XX (OLIVEIRA; RAMOS, 2002, p. 2) ou antes, a partir de meados do século XIX, conforme Modesto (2005):

A crescente utilização da forma “você” em detrimento de “tu” tem sido analisada amplamente como uma opção por um tratamento igualitário. É corrente a afirmação que a forma “você” vem adquirindo estatuto pronominal, enfraquecendo a concordância e acarretando muitas mudanças a partir de meados dos séculos XIX (MODESTO, 2005, p. 1).

Quanto aos usos atuais, em Portugal, o pronome tu é empregado como forma própria de intimidade (CUNHA; CINTRA, 1985; SANTOS, s. d.), sendo normalmente usado: entre colegas de faixa etária igual ou próxima; entre colegas de estudo ou de trabalho; entre membros de um partido político. No contexto familiar, o tu é usado entre marido e mulher; por avós ou tios; de pais para filhos e, em certas famílias, de filhos para pais. Nesse último caso, segundo os autores, os limites da intimidade são superados, em favor de um ideal igualitário.

Na Espanha, é crescente o emprego do tu solidário, em detrimento do usted formal (STOLL, 2006, p. 79-80), uma tendência representativa da ideologia igualitária em auge (BROWN, GILMAN, 1988; STOLL, 2006).

Na França, de acordo com Kerbrat-Orecchioni (2011, p. 19), a escolha das formas pronominais tu e vous é delicada, considerando que os princípios que regem seus usos são “imprecisos e flutuantes”, pois entram em jogo fatores que são numerosos e heterogêneos.

No Brasil, há uma quantidade considerável de trabalhos que tratam da variação entre as formas tu e você, retratando os usos em diferentes regiões do país em períodos distintos, tanto na função de pronomes pessoais quanto de tratamento.

Segundo Lucca (2001, p. 3), Minas Gerais foi colonizada por portugueses provenientes da região do Minho. A autora verificou o tratamento em cartas de mineiros e de minhotos e constatou que “a forma de tratamento íntimo mais usada desde o Porto até o Alto Minho, em fins do século XIX e início do XX é o você”, a mesma que esses portugueses falavam em Minas quando chegaram para povoá-lo.

Em correspondências entre mineiros, a autora mostra que no segundo quartel do século XIX (exemplos de 1830 e 1849), o tratamento íntimo, entre amigos na região de Ouro Preto e Mariana, de modo geral, era o tu, enquanto a forma de tratamento não íntimo era o

vossamercê. Já no último quartel do século XIX, começa a ser introduzido o você. A

alternância entre tu e você de um mesmo autor para o mesmo destinatário é registrada em cartas de 1958, 1908 e 1909. Já em cartas de portugueses que nasceram ou viveram na região norte de Portugal entre 1836 e 1952, o tratamento encontrado, conforme Lucca (2001), é você, o que a autora considera de grande importância para o predomínio dessa forma entre os mineiros da região metalúrgica.

O estudo também mostra o tratamento entre pais e filhos e entre casais, em textos teatrais do século XIX. De filhos para os pais, encontra-se principalmente o tratamento de 3ª pessoa (você, com raras ocorrências de vossamercê, vosmoncê e vosmercê); os pais, apesar de utilizarem mais o tu, também tratam os filhos por você; entre marido e esposa, ora prevalece o

tu, ora as duas formas se alternam, como pode-se ler nos trechos a seguir:

No teatro de José de Alencar, pode-se observar que os filhos sempre tratam os pais em 3ª pessoa, mas com raras aparições da forma vossamercê, escrita sempre como

Vm. ou V. M.cê. Os pais tratam os filhos por tu, exceto na peça “O que é o

casamento” (1861), onde os personagens Isabel e Miranda tratam a filha Iaiá em 3ª pessoa. Marido e mulher tratam-se por tu em geral, mas na peça de 1861, “O que é o casamento”, aparece o tratamento em 3ª pessoa, usado quando se desentendem, e na peça “A expiação” (1868) a situação se inverte: o tratamento usual entre marido e mulher é em 3ª pessoa, com uma única incidência do pronome você, e os casais só usam 2ª pessoa quando se reconciliam, querendo mostrar-se íntimos.

[...]

Nas peças de Martins Pena, a forma de tratamento de filho para pai, da mesma forma que em José de Alencar, é em 3ª pessoa. Na peça “A família e a festa da roça” (1837), que se passa em ambiente rural, aparecem as formas vosmoncê e vosmercê para tratar os pais. Em geral os pais tratam os filhos por tu, mas nas peças “Os ciúmes de um pedestre” (1845) e “O usuário” (1846) os pais intercalam a forma tu

com o tratamento em 3ª pessoa. Os maridos tratam as esposas, em geral, por tu, com exceção do que ocorre em “Os ciúmes de um pedestre”, onde o marido trata a esposa ora por tu, ora na 3ª pessoa do singular. Já as esposas, dentre as nove peças onde aparecem relações entre marido e mulher, há cinco ocorrências onde as mulheres intercalam o tu com o tratamento em 3ª pessoa, sendo que na peça mais antiga, “O juiz de paz da roça” (1833), há uma ocorrência da forma você.

Em “As relações naturais” (1866), peça de Qorpo Santo, há uma marca de 3ª pessoa de uma mãe para uma filha, mas na peça como um todo tal relação é marcada pelo tratamento em 2ª pessoa (LUCCA, 2001, p. 6-7).

De acordo com Lopes e Cavalcante (2011, p. 37), atualmente coexistem pelo menos três subsistemas de tratamento na posição de sujeito no português brasileiro: “Em certas localidades o uso de você é prioritário ou exclusivo, em outras prevalece o tu majoritário com ou sem concordância. Na maior parte do Brasil, entretanto, identifica-se a variação você/tu.”

Em muitos estudos não há uma distinção precisa entre intimidade e solidariedade, prevalecendo a questão diatópica. Quanto à forma (concordância), como se sabe, na maioria das regiões em que se fala o tu, eliminaram a terminação –s na conjugação verbal (tu fala), enquanto outras (poucas) conservam o –s (tu falas) (BAGNO, 2007a, p. 47).

Teixeira (2008) verificou as ocorrências de tu e você em textos literários de escritores baianos do século XIX e constatou o predomínio da forma você na linguagem popular, entre pessoas com grau de aproximação distante e de poder equiparado. De acordo com a autora, nesses textos, na “fala” da classe social baixa, usa-se indiscriminadamente a forma você dentro do próprio grupo, excluindo-se a díade jovem x velho em que aparecem os tratamentos corteses Senhor e Vosmecê. Considerando o grau de aproximação, entre os íntimos, como marido e mulher, encontram-se as duas formas (tu e você), quase equiparadas. Já nas classes sociais média e alta, foi detectado o uso de você como pronome íntimo. De acordo com a autora,

O uso categórico de você entre iguais na classe baixa indica que essa parcela da população já usava essa forma de tratamento do interlocutor há muito tempo. Talvez tenha sido a forma preferida por essa classe desde o século XVIII, pois, pelo que se pode extrair dos poemas dialogados de Gregório de Matos, no século XVII, você era um pronome de cortesia, usado especialmente pelo contingente negro-mestiço da população, portanto, desprestigiado. Como as formas de tratamento corteses se desgastam rapidamente, é possível que essa parcela da população o tenha transformado em uma forma não-marcada, de uso extensivo a íntimos e não-íntimos (TEIXEIRA, 2008, p. 10).

Embora a linguagem literária não possa ser equiparada ao vernáculo, é possível fazer deduções através dessas amostras e da análise dos costumes e valores da sociedade no período.

Oliveira (2005) mostra que nas comunidades rurais isoladas (Helvécia, localizada no extremo sul da Bahia; Rio de Contas, na Chapada Diamantina; Cinzento, no semiárido; Sapé,

no Recôncavo Baiano), você é a forma majoritária, correspondendo a 88%, enquanto o pronome tu representa apenas 12% de realização. Além do valor diatópico, outras explicações seriam:

a) maior uso de você com referente indeterminado e do tu com o referente definido, “possivelmente isto ocorre porque o pronome tu é mais usado na intimidade, ou seja, com indivíduos da mesma comunidade” (p. 8);

b) “mulheres usam mais o tu, o que nos remete a seu provável ambiente familiar, de natureza mais íntima” (p. 10);

c) estada fora da comunidade – “quem nunca esteve fora da comunidade usa mais o pronome tu” (p. 11);

d) comunidades mais isoladas (Cinzento e Sapé), usam mais o pronome tu, provavelmente pelo menor contato com pessoas de fora;

e) interlocutor – “o pronome tu é mais usado entre os membros da comunidade, reforçando a idéia de ser um pronome mais familiar, menos formal” (p. 12); f) efeito gatilho – o uso de um dos pronomes pelo documentador motiva sua escolha

pelo informante.

De acordo com a pesquisa de Divino (2008), no município baiano de Santo Antônio de Jesus - Bahia, a preferência pelas formas de tratamento segue a seguinte ordem: você,

senhor(a) e tu, com base em um questionário que solicitava do participante a simulação de

situações de comunicação com pessoas da cidade (de diferentes idades, conhecidas e desconhecidas).

Em estudo realizado com dados do AliB (Atlas Linguístico do Brasil) de capitais do Nordeste (Teresina, Recife e Salvador) e do Sul do Brasil (Santa Catarina, Florianópolis e Porto Alegre), Deus (2009) verificou que o fator geográfico interfere mais no uso das formas de tratamento tu e você do que fatores sociais. A autora constatou o uso categórico do você em Salvador e Curitiba.

Atualmente, no português brasileiro, você tanto concorre com tu quanto com (o)

senhor. “Em diversas regiões do Brasil, você desbancou o tu como pronome de segunda

pessoa do singular” (CHAGAS DE SOUZA, 2002, p. 152). Com a desvalorização do tu, o pronome você se generaliza no Brasil como expressão do tratamento de intimidade (MONTEIRO, 1994; MODESTO, 2005).

Em alguns espaços, o uso de tu ocorre em alternância com você, tanto que, como observam alguns autores, o plural de tu é vocês (OLIVEIRA; RAMOS, 2002; BECHARA, 1999), tanto por aqui como em Portugal (BAGNO, 2007b).

Possivelmente por conta da desvalorização do tu, seu uso nem sempre se faz de modo consciente, como observa Modesto (2009):

Notamos, porém, na fala diária das pessoas da comunidade [São Vicente - SP], o uso corrente de tu nas mais variadas situações de interação e formalidade, o que evidencia que a norma subjetiva das formas de tratamento não corresponde à sua norma objetiva. Notamos que há nitidamente uma diferença entre o que o informante “pensa” que fala e o que ele realmente fala. Muitos informantes não têm noção de que usam o tu em seu discurso e alguns se mostraram conscientes quanto ao uso das duas formas (MODESTO, 2009, p. 22).

O tu como tratamento íntimo foi perdendo espaço para o você. Como já referido, Lucca (2001) encontrou registros de usos de você como forma de tratar os pais em textos teatrais do século XIX. No português brasileiro contemporâneo, apesar de a concorrência entre tu e você ser apresentada sobretudo como característica diatópica, não se descarta o sentido mais íntimo do primeiro.

Os usos de você para os pais serão tratados adiante.