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Defesa da constitucionalidade material dos regimentos internos

CAPÍTULO 2 – OS REGIMENTOS INTERNOS LEGISLATIVOS

2.2. Defesa da constitucionalidade material dos regimentos internos

Como sustentado nas linhas que se passaram, os regimentos internos legislativos devem ser interpretados como fontes do Direito. Aliás, nos dizeres de Carpio Marcos (2003, p. 559), o entendimento contrário não é sequer plausível sob a égide do Estado Constitucional de Direito, o que encontra justificativa nas palavras de Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (2016, p. 32) ao enaltecer que os requisitos formais trazidos pelos regimentos são condições processuais para a garantia do processo legislativo democrático enquanto garantia da própria cidadania.

Ou seja, evidencia-se um liame direto entre os regimentos e suas disposições com a construção democrática da cidadania, o que é explicado por Oliveira (2016, p. 109) a partir da leitura procedimental do Direito enquanto processo, superando o paradigma liberal (que move os atores sociais por interesses egoísticos) e o de bem-estar social (que impõe uma única forma de vida como válida para a sociedade). O autor aponta ser o processo legislativo a própria dinâmica do Direito, quer dizer, vai além da leitura que se faz dele como mera ritualística legitimadora de decisões políticas, compreendendo-o como processo de justificação democrática do próprio Direito, quando realizado em contraditório (p. 110) pelos seus atores76.

A interpretação do processo legislativo como construção democrática do Direito leva à leitura do devido processo legal como direito fundamental não apenas do parlamentar, mas dos cidadãos como um todo, pelo que Bernardes Júnior (p. 87) diz ser plenamente justificável a integração das normas acerca do tema no grau máximo de hierarquia normativa. No mesmo sentido, Fonseca (p. 24), ao defender que regimentos

76 As considerações que Oliveira e outros autores fazem acerca dos atores envolvidos nesse processo de

contêm dispositivos com estatura constitucional que materializam o princípio democrático.

Del Negri (2011, p. 94) ensina que falar em devido processo legislativo é tratar do direito-garantia que os cidadãos têm à produção democrática do Direito com o fito de assegurar direitos fundamentais. Ressalta, ainda, que esses direitos fundamentais deveriam ser concretizados por intermédio dos regimentos internos, orientados pelo processo constitucional77. Escreve o autor (p. 75):

Se a lei deve ser produzida por meio do devido processo legislativo, que, por sua vez, é caracterizador da existência de um Estado Constitucional e Democrático, para que isso ocorra, as regras regimentais, que são modelos de procedimento legislativo, devem estar em harmonização com o devido processo constitucional.

Conforme se vê, a doutrina especializada destaca uma posição de somais importância aos regimentos internos dentro da construção democrática do Direito. E por estarem diretamente envolvidas ao processo constitucional, as disposições regimentais têm vínculo direto com a consecução dos princípios defendidos pela Constituição. Atenta-se, ainda, à pertinente observação feita por Horta (2010, p. 500) de que a constitucionalização das normas regimentais não desqualifica a importância do regimento interno como fonte do processo legislativo78, apenas trouxe ao nível constitucional regras indispensáveis à eficácia da elaboração legislativa, mas que se restritas à seara regimental ficariam suscetíveis às acomodações políticas. Vê-se que para o Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais a disposição de normas sobre o processo legislativo no texto constitucional não retira a relevância das ordenações regimentais, mas serve apenas para conferir especial proteção a dispositivos de suma importância para o jogo democrático.

77 Sobre o termo “processo constitucional” cabe fazer uma digressão. Tradicionalmente a doutrina, aqui

exemplificada por Baracho (1984, p. 126), fazia uma distinção entre Direito Processual Constitucional e Direito Constitucional Processual, cabendo ao primeiro o estudo dos instrumentos processuais que garantem o cumprimento das normas constitucionais e ao último o estudo sistemático dos conceitos, categorias, e instituições processuais consagradas nos dispositivos da Constituição. Todavia, mais tarde autores como Soares (2003, p. 403) teceram críticas a essa dicotomia por colocar o processo fora da Constituição, rebaixando-o à condição de mero sistema procedimental, sendo que ambos os ramos deveriam ser englobados sob a designação de “processo constitucional” como ramo do Direito que estuda os mecanismos processuais para promover a eficácia das normas e princípios constitucionais, mediante a jurisdição constitucional e/ou processo constitucional no Estado Democrático de Direito.

78 Segundo o autor (p. 501), o regimento perdeu, em alguns casos, a condição de fonte primária da norma,

mas continua sendo o texto responsável pelo desdobramento das normas constitucionais, na sua função de fonte do Direito Parlamentar.

Diz-se, portanto, junto a Horta (p. 501) e Chevitarese (2016, p. 239), que os regimentos internos funcionam como fontes ou regras subsidiárias do processo legislativo, complementando a norma constitucional nessa matéria. No mesmo sentido se encontra Bernardes Júnior (p. 87), acrescendo ser esse papel de desenvolvimento de disposições constitucionais razão para seu enquadramento no bloco de constitucionalidade brasileiro. Nessa toada, somando-se a visão procedimentalista de Constituição como processo, de Oliveira (2016, p. 110), o regimento interno, enquanto norma que complementa as disposições constitucionais a partir de uma construção procedimental, é materialmente constitucional. Daí, portanto, alegar Chevitarese (p. 239) que suas normas são passíveis de controle de constitucionalidade para se conformarem ao devido processo legislativo e guardar os princípios que fundamentam o processo constitucional. Toma-se a liberdade de acrescentar aqui que não apenas as normas dos regimentos, mas os atos praticados em desconformidade a elas encontram razão para ser objeto de controle pelos mesmos fundamentos levantados pela doutrina mencionada.

Sendo, portanto, complementos da Constituição na tarefa de regulamentação subsidiária do processo legislativo – tido como procedimento de construção democrática do Direito – não há como escapar ao entendimento de Barbosa (p. 160) no sentido de que os regimentos são dotados de estatura normativa e, por deverem guardar compatibilidade com a Constituição, podem ser submetidos a controle judicial. Como assentado por Horta (p. 500), os regimentos incorporam normas materialmente constitucionais ao dispor sobre elaboração legislativa (que, por sua vez, é matéria constitucional).

Atenta-se que, embora neste trabalho se defenda a constitucionalidade material dos regimentos internos das Casas Legislativas79, nem por isso confere-se respaldo à sindicabilidade de todos seus dispositivos. Embora, como tratado no tópico antecedente, a escusa do controle judicial na doutrina dos atos interna corporis seja condenável na forma como é aplicada na atualidade, crê-se, na esteira de Sampaio e Meirelles, já mencionados, que disposições acerca da economia interna das Casas, por exemplo, são limitadas à apreciação do próprio órgão, tão somente. São as normas que disciplinam o processo legislativo, por complementarem matéria constitucional, que devem ser

79 Bernardes Júnior (p. 85) confere constitucionalidade material especificamente às disposições sobre

processo legislativo. Não é a ideia deste trabalho, que vê o regimento interno como materialmente constitucional por se tratar de norma afeta à organização de Poder do Estado, elemento de uma Constituição Material, nos moldes preconizados por Márcio Luís de Oliveira, no Capítulo 1.

submetidas ao crivo do Judiciário, quando violadas. Aliás, deve-se dedicar especial atenção também a violações regimentais que, embora não sejam atinentes ao processo legislativo, também configuram atentado a preceitos constitucionais80, como no caso da composição de comissões sem respeitar os ditames regimentais da representatividade plural81. Situações como essas, por terem reflexo direto na construção democrática do Direito, configuram afronta à Constituição, ensejando o controle judicial de constitucionalidade.

Essa leitura é possível a partir do momento em que se entende, assim como Coelho (p. 183), que, embora se trate de normas formais (posto que procedimentais), elas não são secundárias, sendo que seu desrespeito se equipara a violação material para apuração dos efeitos dele decorrentes. Barbosa (p. 179) ressalta que a estreita conexão dos regimentos com a função constitucional de produção jurídica confere àqueles posição diferenciada, de forma que seu desrespeito configuraria violação à Constituição. Lembra ainda Silva Filho (p. 185) que, por se tratar de norma processual, os atos anteriores condicionam os subsequentes. Assim sendo, postergada alguma formalidade regimental na tramitação legislativa, todos os atos posteriores são anulados, já que inconstitucional a norma resultante do processo viciado.

Com essas considerações tem-se, nos moldes de como delineado no Capítulo 1 deste trabalho, que os regimentos internos são dotados de parametricidade para aferição do cumprimento das disposições constitucionais sobre produção de normas. Sobreleva o detalhe a que aponta Carpio Marcos (2003, p. 565) de que a condição de parâmetro não é conferida pela posição dos regimentos no ordenamento ou por sua natureza jurídica (vez que, mesmo considerados autênticas leis, consoante García de Enterría, situam-se no plano infraconstitucional, formalmente considerando), mas pelo papel constitucional que desempenham na formação das leis e na garantia de princípios e valores constitucionais na regulação do processo legislativo. Sendo parâmetro de constitucionalidade das leis, funcionam, nos dizeres de Macedo (p. 97), como fonte de obrigatoriedade e indisponibilidade.

80 Barbosa (p. 190) defende que a violação de normas regimentais constitui descumprimento de regras de

direito público vinculantes e indisponíveis, o que demonstra sua relevância jurídica.

81 Estabelece o art. 26, §1º do Regimento Interno da Câmara dos Deputados que: “A fixação levará em

conta a composição da Casa em face do número de Comissões, de modo a permitir a observância, tanto quanto possível, do princípio da proporcionalidade partidária e demais critérios e normas para a representação das bancadas”. Da mesma forma, o art. 78 do Regimento Interno do Senado Federal: “Os membros das comissões serão designados pelo Presidente, por indicação escrita dos respectivos líderes, assegurada, tanto quanto possível, a participação proporcional das representações partidárias ou dos blocos parlamentares com atuação no Senado Federal (Const., art. 58, § 1º)”.

Funcionam as normas regimentais como normas interpostas, diz Barbosa (p. 191), vez que “consubstanciam, por meio do exercício do poder autonormativo das Casas Legislativas, a delegação constitucional para estabelecer a medida necessária de deliberação capaz de justificar uma decisão nos discursos de justificação de normas jurídicas”. Curioso atentar que Gilmar Mendes (1990, p. 35) também criticava a insindicabilidade das normas regimentais, fazendo coro à posição de Barbosa ao defender que a inobservância de princípio estabelecido no regimento pode configurar violação de norma constitucional interposta.

Cumpre explicar que a noção de norma interposta a que Mendes se refere é retirada da doutrina italiana, em especial de Zagrebelsky, ao se referir a normas que, carecendo de forma constitucional (como é o caso dos regimentos), “são reclamadas ou pressupostas pela constituição como específicas condições de validade de outros actos normativos, inclusive de actos normativos com valor legislativo” (CANOTILHO, p. 922).

Destaca-se que Canotilho (p. 923) já elencava os regimentos como exemplos típicos de normas interpostas, pois que reclamados como parâmetro material de validade do procedimento de formação das leis82. Dentre os modelos de parametricidade interposta elaborados por Canotilho, parece ser o Modelo III o que melhor ilustra a relação entre a Constituição, os regimentos e o ato objeto de controle. Assim o apresenta o autor:

MODELO III

Constituição = parâmetro indirecto

Norma interposta – parâmetro directo Acto normativo – objecto de controlo

Explica o professor português (p. 925) que esse modelo configura a hipótese de parametricidade existente entre dois atos normativos de igual valor, mas que um deles é expressa ou implicitamente considerado pela Constituição como dotado de caráter

82 O autor, contudo, problematiza a parametricidade das normas regimentais em razão da interpretação

pela insindicabilidade dos atos interna corporis, restando a incerteza de se os regimentos são parâmetro normativo das leis e dos atos legislativos para a delimitação dos contornos conceituais dos vícios de procedimento dos atos emanados no procedimento legiferante (p. 924). Não obstante o questionamento de Canotilho, neste trabalho já se criticou a intocabilidade dos atos interna corporis, pelo que resta assegurada a defesa da parametricidade das normas regimentais, enquanto normas interpostas.

determinante em relação ao outro. É esse o caso dos regimentos internos que, embora não sejam formalmente constitucionais, são autênticas leis – hierarquicamente iguais às demais, portanto – mas dotados da especificidade de complementarem a Constituição na organização de Poder estatal e, principalmente, no processo de elaboração das leis, sendo parâmetro direto a ser observado durante a atividade parlamentar.

O que deve ficar claro a partir desta exposição é que as normas regimentais desempenham o papel constitucional de regular a produção legislativa, complementando as disposições da própria Constituição. São, assim, dispositivos materialmente constitucionais e, por conseguinte, apreciáveis pelo Judiciário no exercício da jurisdição constitucional, sendo consideradas normas interpostas (na leitura da doutrina italiana), ou parâmetro de controle (expressão já encampada pelo próprio STF83). Assim também já o consideram outros regimes democráticos, como se discorre no tópico seguinte.