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Os atos interna corporis: definição e qualificação

CAPÍTULO 2 – OS REGIMENTOS INTERNOS LEGISLATIVOS

2.1. Enquadramento normativo dos regimentos internos legislativos

2.1.2. Os atos interna corporis: definição e qualificação

Quedou assente nas linhas anteriores que a noção de regimentos internos das Casas Legislativas que aqui será considerada é a de que se trata de normas diretamente emanadas da Constituição e somente a ela subordinadas, funcionando, portanto, como fontes primárias de direitos e, junto à própria CRFB, fontes do Direito Parlamentar. São, nos dizeres de García de Enterría, ao que se juntam as lições de Meirelles, autênticas leis materialmente constitucionais.

Os regimentos, como dispositivos normativos complexos, são compostos de normas de diferentes naturezas. Aqui se debate as chamadas interna corporis que, na leitura atual da jurisprudência brasileira, escapam ao controle judicial. Cabe esclarecer o que e quais seriam essas normas interna corporis, e se os argumentos para sua inafastabilidade do controle judicial se sustentam.

A noção tradicional acerca dos atos interna corporis já traz em si a ideia de impossibilidade de interferência ou apreciação por órgãos externos, como apresenta Bruno Pereira (2012, p. 157) ao ensinar tratar-se dos atos que dizem respeito a funções e atribuições internas dos órgãos, praticados no âmbito interno da respectiva corporação. Têm, contudo, embasamento constitucional (Carvalho Filho, p. 936), pois a competência interna e exclusiva das Casas Legislativas para regulá-los está demarcada na própria Constituição.

Silva Filho (p. 184) sustenta que ditos atos são resultado da autolimitação volitiva das Casas Legislativas ao aprovarem seus regimentos, consistindo em atos fundados na autonomia do Legislativo para, sem interferências externas, instituir e executar normas de regência. Coelho (p. 343) segue na mesma toada, limitando-se a

conceituá-los como atos praticados no interior do órgão para organizar seu trabalho e funcionamento.

Ao mesmo tempo em que insuficientes, esses conceitos tradicionais são por demais abrangentes, pois que permitem a interpretação de que todos os dispositivos dos regimentos internos sejam tidos por interna corporis. Considerando-se que as versões mais atualizadas do Regimento Comum do Congresso Nacional e dos Regimentos Internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal contam, respectivamente, com 152, 282 e 413 artigos (dentre os que estabelecem as regras de funcionamento do órgão, os que regulam os processos de composição das Comissões e demais grupos de parlamentares, e os que estruturam o processo legislativo), é temerário tomá-los todos por insindicáveis, mormente quando se considera que grande parte do conteúdo se refere a desdobramentos do procedimento de feitura das leis, matéria diretamente atrelada à Constituição71.

Nesse sentido, melhores considerações são as tecidas por Meirelles e Sampaio. Segundo este último (2002, p. 307), há que se falar em um espaço de indenidade circunscrito ao juízo de conveniência e oportunidade parlamentar para o exercício de suas competências. É o caso das normas interna corporis que, segundo o autor, tratam da economia interna do órgão no exercício de sua competência própria, mas sem atentar contra direitos subjetivos individuais de terceiros ou de seus próprios membros72. No mesmo sentido, Meirelles (p. 715) defende serem interna corporis os atos referentes à economia interna da Casa, aos privilégios e à formação ideológica da lei73. Vê-se que os autores esboçam uma limitação de quais seriam esses atos que, quando sustentados frente ao Judiciário, são sumariamente afastados da possibilidade de apreciação. Essa é, contudo, uma questão a ser abordada mais à frente, cabendo agora explicar a origem da

71 Como lembra Bernardes Júnior (p. 98), o entendimento moderno é de que a decisão acerca de vícios

incidentes sobre questões procedimentais disciplinadas nos regimentos internos refoge à alçada do Judiciário por ser considerada matéria interna corporis.

72 Sampaio (p. 309) inclui como interna corporis “o mérito das decisões ou deliberações da Mesa, das

Comissões ou do Plenário, em matéria de organização e funcionamento, como a eleição dos integrantes da Mesa e comissões, a elaboração do Regimento, a organização dos trabalhos parlamentares e dos serviços auxiliares; de exame de prerrogativas, poderes e incompatibilidades de seus membros, a exemplo de concessão de licença para serem processados ou para afastamento por interesse particular e da cassação de mandato; as opções políticas que levaram à aprovação ou rejeição de determinado projeto de lei ou de veto, ou que integrarem a ‘formação ideológica da lei’, além de outros assuntos de conteúdo político, situados na estrita economia interna do Congresso Nacional”.

73 Meirelles (p. 715) enumera como interna corporis “os atos de escolha da Mesa (eleições internas), os

de verificação de poderes e incompatibilidades de seus membros (cassação de mandatos, concessão de licenças etc.) e os de utilização de suas prerrogativas institucionais (modo de funcionamento da Câmara, elaboração do regimento, constituição de comissões, organização de serviços auxiliares etc.) e a valoração das votações”.

ideia de atos intocáveis por órgãos externos e como seus fundamentos originais não mais se sustentam no presente.

Como mencionado alhures, os regimentos internos foram uma forma encontrada pelo Legislativo europeu contra as ingerências do absolutismo monárquico. Nesse sentido, Coelho (p. 348) leciona que a impossibilidade de controle dos atos interna corporis é consequência direta do Bill of Rights de 1688, que instaurou a monarquia parlamentarista inglesa, em especial do disposto no seu artigo 9º, que declara que a liberdade de fala, debate e procedimentos no Parlamento não deve ser impedida ou questionada em nenhuma corte ou lugar fora do Parlamento74. A partir de então, aponta o autor, foi elaborada a teoria dos internal proceedings para assegurar a soberania do Parlamento frente ao monarca e a qualquer órgão externo. Macedo (p. 17) disserta que essa soberania do Parlamento inglês é manifestação do modelo liberal de Estado, ancorando-se em três corolários essenciais: a liberdade para legislar sobre qualquer matéria, a impossibilidade de invalidação ou suspensão da eficácia de seus atos por órgãos externos, e a impossibilidade de vincular substancial ou procedimentalmente os Parlamentos futuros.

Foi, contudo, na segunda metade do século XIX, mais especificamente em 1863, no IV Congresso de Juristas Alemães, em Berlim, que o jurista alemão Rudolf von Gneist elaborou a doutrina dos atos interna corporis com a ideia já presente na Inglaterra de que atos legislativos e internos do Parlamento não poderiam sofrer controle judicial, mas tão somente quanto à validade formal da lei (ARAGÃO, 2012, p. 111). O modelo defendido por Rudolf von Gneist era, contudo, representativo de um sistema constitucional no qual o sistema monárquico era prevalente (MACEDO, p. 47), realidade não mais presente na grande parte dos sistemas constitucionais ocidentais, dentre eles o brasileiro.

Macedo (p. 48) explica ainda que a doutrina dos atos interna corporis alcançou outras áreas que não apenas as regras do processo legislativo e as prerrogativas dos congressistas, passando a abranger também suas atividades e decisões administrativas, como questões de autonomia financeira e orçamentária, de contratação de pessoal e de organização interna. Poderia se sustentar, então, a existência de matéria interna corporis em sentido estrito (quando referentes ao processo legislativo) e em sentido amplo (quanto ao funcionamento da corporação).

74 Tradução livre de: “That the freedom of speech and debates or proceedings in Parliament ought not to

A evolução da interpretação sobre em que consistiriam os atos interna corporis trouxe também uma pluralidade de correntes sobre o conceito e a possibilidade de controle sobre eles. Eliziane Oliveira (p.208) os enumerou a partir de estudo da doutrina pátria em três grupos:

(1) Os atos lastreados nos regimentos das Casas Legislativas estão absolutamente imunes ao escrutínio judicial. (2) O Poder Legislativo exerce, com plenitude, poder político incontrastável, porém atos internos que violem alguma norma constitucional que prescreve formalidades à atuação parlamentar podem ser apreciados pelo Poder Judiciário. (3) Admite o controle judicial dos atos parlamentares não somente de atos que ultrapassem os limites constitucionais, mas também aqueles que desrespeitem norma regimental que defina forma ou rito para o transcurso da atividade parlamentar. Ressalta-se, entretanto, que é defeso ao Poder Judiciário fazer as vezes de legislador, expedindo ele mesmo comando substitutivo e reparados da deliberação tomada em desacordo com o enunciado constitucional, legal ou regimental.

Dentro dessa última corrente, que se crê a mais acertada, despontam nomes como Hely Lopes Meirelles (p. 711) e José dos Santos Carvalho Filho (p. 934), que defendem que os atos interna corporis não são infensos ao controle, mas sujeitos a um controle especial75. Meirelles afirma ainda (p. 716) caber ao Judiciário verificar vícios regimentais nos atos interna corporis, mas sem adentrar no conteúdo do ato, apenas às formalidades, citando como exemplo:

Assim, se, numa eleição de Mesa, o Plenário violar o regimento, a lei ou a Constituição, o ato ficará sujeito a invalidação judicial, para que a Câmara o renove em forma legal; mas o Judiciário nada poderá dizer se, atendidas todas as prescrições constitucionais, legais e regimentais, a votação não satisfizer os partidos, ou não consultar o interesse dos cidadãos ou a pretensão da minoria. O controle judiciário não poderá entender-se aos atos de opção e deliberação da Câmara nos assuntos de sua economia interna, porque estes é que constituem propriamente os seus interna corporis.

Crê-se, portanto, que a razão está nas palavras de Silva (2006, p. 344), para quem a escusa dos atos interna corporis não tem mais o peso de outrora, visto que acima da soberania do Parlamento – ideia encampada pelo sistema liberal do parlamentarismo inglês em seu início – está a soberania da Constituição. Destarte,

75 Meirelles (p. 711) inclui no grupo de atos sujeitos a controle especial os atos políticos e os legislativos.

Para o publicista, atos políticos “são os que, praticados por agentes do Governo, no uso de competência constitucional, se fundam na ampla liberdade de apreciação da conveniência ou oportunidade de sua realização, sem se aterem a critérios jurídicos preestabelecidos”. Já atos legislativos são as leis propriamente ditas, não sujeitas a “anulação judicial pelos meios processuais comuns, mas sim pela via especial da ação direta de inconstitucionalidade e, agora, também pela ação declaratória de constitucionalidade, tanto para a lei em tese como para os demais atos normativos”.

conforme assevera Sampaio (2002, p. 312), as análises de competência e legitimidade dos poderes e procedimentos legislativos não podem ser relegadas a pretexto de ato interna corporis, vez que a constitucionalidade e a legalidade são balizas dessa apreciação. Restariam então, enquanto atos de efeitos restritos, fora o controle judicial, a organização interna, a gestão dos recursos humanos e logísticos e a definição de prioridades orçamentárias (SAMPAIO, 2002, p. 316). Para a melhor e mais recente doutrina os atos e dispositivos regimentais concernentes ao processo legislativo não mais se enquadrariam na conceituação restritiva de interna corporis.