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CAPÍTULO 2 – OS REGIMENTOS INTERNOS LEGISLATIVOS

2.1. Enquadramento normativo dos regimentos internos legislativos

2.1.1. Natureza jurídica dos regimentos internos

Ensina Carpio Marcos (2003, p. 555) que as discussões acerca da natureza jurídica dos regimentos internos das Casas Legislativas remontam à experiência constitucional inglesa, origem da instituição parlamentaria. Postula o autor que a construção do Direito Parlamentar em torno dos privilégios dos representantes tinha

66 Silva (2006, p. 342) se ancora na doutrina italiana para conceituar o Direito Parlamentar como o

“complexo das relações político-jurídicas que se desenvolvem no interior de uma assembleia política, ou entre as Assembleias políticas existentes num Estado, ou entre elas e os demais poderes públicos, assim como as normas que definem e regulam tais relações e a ciência que as estudam”.

como objetivo assegurar o desenvolvimento normal e autônomo das Câmaras, bem como a liberdade de seus membros. Nada mais coerente, considerando o passado absolutista das monarquias inglesa e europeia como um todo. Os reflexos do protagonismo inglês se fizeram sentir nos mais diversos ordenamentos, tendo sido inicialmente feita uma classificação entre o Direito Parlamentar anglo-saxão, o nórdico e o latino (MACEDO, 2007, p. 86).

Em breves linhas, se diz ser o modelo anglo-saxão constituído por práticas, costumes e usos adotados pelas Câmaras, expressos ou não em textos escritos, afastando qualquer interferência do Poder Judiciário. Por sua vez, o modelo latino (ou continental) é marcado por um conjunto de regras escritas e constitucionalizadas, sendo suas principais fontes a Constituição e o regimento interno – modelo seguido por França, Espanha, Itália, Estados Unidos da América e Brasil. Já o Direito Parlamentar nórdico se assemelha ao latino/continental, mas apresenta a especificidade de conferir status constitucional às normas parlamentares, atribuindo-lhes maior rigidez e segurança contra maiorias ocasionais.

Em significativo trabalho dedicado ao tema, Macedo (p. 86) importa da doutrina estrangeira as teorias acerca da evolução da natureza jurídica dos regimentos parlamentares, as quais se dividem em oito grupos, a seguir pontuados sucintamente: (a) o grupo dos defensores de que os regimentos são regras de natureza prática e consuetudinária, meras convenções internas, carecedores de força jurídica e insindicáveis (ideologia anglo-saxã); (b) defensores de que o regimento é norma autônoma manifestada por órgãos dotados de autonomia e controle sobre assuntos internos, à exclusão de qualquer outro, de modo que suas normas obrigam apenas a seus membros, não podendo se opor à lei ou à Constituição, além de vigerem independentemente de publicação ou promulgação; (c) defensores de que os regimentos são leis materiais ou normas com força de lei, mas sem serem leis em sentido estrito, posto terem disposições que incidem sobre o ordenamento jurídico geral, além de conterem preceitos vinculantes por estarem apoiados na Constituição; (d) a quarta corrente vê os regimentos como atos internos sem juridicidade, até o reconhecimento da juridicidade mitigada por ter efeitos apenas internos; (e) o quinto grupo de pensadores toma o regimento como composto de normas diversas, algumas com natureza jurídica, outras não; (f) defensores do regimento enquanto norma de execução da Constituição, de forma que seriam verdadeiras normas jurídicas, vez que emanadas em virtude de uma norma jurídica (dentro dessa corrente há quem defenda que os regimentos disciplinam a

atividade parlamentar como órgão constitucional do Estado e nunca fins particulares das Casas Legislativas, afastando assim o argumento interna corporis); (g) o sétimo grupo defende o regimento como resíduo de soberania parlamentar, sendo suas normas expressão de um privilégio coletivo das Casas Legislativas, detentoras de faculdades especiais não estendidas a outros órgãos, dentre as quais se destacam os efeitos sancionadores, conferindo-lhes juridicidade; (h) por fim, há o grupo que entende serem os regimentos protocolos parlamentares, quer dizer, regras decorrentes da autonomia das Casas Legislativas para cumprir suas funções de maneira válida e autêntica.

Neste estudo adota-se a mesma conclusão a que chega Macedo (p. 90) acerca da juridicidade dos regimentos internos, no sentido de que “as normas regimentais integram o ordenamento jurídico na medida em que estão vinculadas diretamente à Constituição, sendo, portanto, normas primárias, de emanação obrigatória e sujeitas a controle de constitucionalidade”. Mesmo que se entenda serem normas com valor jurídico e respaldo constitucional, ainda cabe delinear seu enquadramento normativo. Quanto a isso, a doutrina apresenta algumas digressões.

A primeira visão é exemplificada aqui pelas lições de Coelho (2007, p. 343) e Meirelles (p. 182), para quem os regimentos internos são atos administrativos67 que direcionam o funcionamento das Casas Legislativas durante o processo legislativo. Há quem diga tratar-se de verdadeiros códigos (SPROESSER, p. 3) que o Legislativo, no uso da competência que lhe foi concedida, usa para completar sua organização, explicitar suas competências e disciplinar suas atividades. Moraes (p. 67) defende que o regimento é “o conjunto sistematizado de disposições normativas que visam disciplinar a operacionalidade dos colegiados políticos” e se aventura a afirmar que, por ser norma autorizada pela própria Constituição, o regimento possui status de lei complementar e arregimenta que:

[N]ão obstante o termo “interno”, e a desnecessidade de qualquer qualificação de quorum para a sua aprovação, são leis a que todos devem despertar interesse num Estado democrático, uma vez que suas disposições são, em suma, o ponto de apoio para o surgimento de normas outras, que irão compor o universo do ordenamento jurídico positivo, aplicável no tempo e no espaço geográfico de jurisdição dos poderes do Estado.

67 Meirelles (p. 173) conceitua atos administrativos como “toda manifestação unilateral de

vontade da Administração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria”.

Mais longe foi Silva (2006, p. 343), ao observar que a despeito de serem normas voltadas ao interior de corpos legislativos, os regimentos internos são integrantes do ordenamento jurídico, embora normas infraconstitucionais. O autor atenta para a existência de doutrinadores que as classifiquem como “uma parcela do direito constitucional” ou como um “direito quase-constitucional”, ao que conclui serem os regimentos normas materialmente constitucionais, embora sem a hierarquia daquelas formalmente constitucionais.

Para os fins a que se dedica este trabalho, adota-se como mais respaldada e atualizada a defesa de García de Enterría (p. 253), para quem os regimentos (ou, como os chama, regulamentos internos) das Casas Legislativas são manifestação de seu poder de auto-organização68, o qual é reconhecido pela Constituição69 à qual se submetem. São, portanto, autênticas leis, pois decorrentes dos órgãos legislativos e ligados diretamente à Constituição, enquanto seu único limite. Esse entendimento vem se consagrando como um dos principais acerca da natureza jurídica dos regimentos, sendo transcrito por autores pátrios, como Bernardes Júnior (p. 84), Queiroz Filho (2001, p. 25) e o ex-Ministro do STF, Carlos Mário da Silva Velloso (2004, p. 273). A essa acepção se soma a lição de Silva Filho (2003, p. 77), de que os regimentos concretizam parte da Constituição, possuindo juridicidade ao estabelecer regras de observância obrigatória.

Atenta-se, por óbvio, como aponta Queiroz Filho (p. 27), que os regimentos devem se manter restritos ao âmbito da Casa respectiva, disciplinando sua organização e seu funcionamento (nele incluído o processo legislativo), suas funções precípuas, pois, como lembra Moura (1992, p. 92), são os ordenamentos que mais profundamente tocam na intimidade operativa das Casas Legislativas. Na dicção de Moraes (p. 67) é necessário que os regimentos se desdobrem em pelo menos cinco tópicos: (a) direitos e deveres e atribuições dos membros; (b) os órgãos integrantes da Casa – Mesa Diretora e Comissões – e suas atribuições; (c) a administração dos órgãos integrantes; (d) a ordem dos trabalhos dos órgãos; e (e) a definição dos Colegiados com poderes deliberativos em razão de matérias. Toma-se a liberdade de incluir um sexto tópico essencial, que

68 Uma das principais características do poder de auto-organização é o fato de os regimentos internos das

Casas Legislativas serem veiculados via Resolução do próprio órgão, sem necessidade de sanção presidencial. Para Fonseca (2011, p. 22) trata-se de clara demonstração de autonomia e independência do Legislativo.

69 O autor faz referência ao art. 72 da Constituição Espanhola, mas na CRFB a previsão expressa do poder

de auto-organização das Casas Legislativas encontra-se nos art. 26, §3º (regimentos das Assembleias Legislativas), art. 51, inc. III (regimento da Câmara dos Deputados), art. 52, inc. XII (regimento do Senado Federal) e art. 57, §3º, inc. II (regimento comum do Congresso Nacional).

pode ser um item (f) ou um desdobramento do item (d), mas que é dos conteúdos mais importantes dos regimentos, qual seja, os ritos do processo legislativo em complementação aos dispositivos constitucionais acerca do tema.

Destaca-se, como o fez Fonseca (p. 23), que os regimentos estabelecem regras de observância obrigatória por concretizarem comandos da Constituição, ao que se evidencia a relação de hierarquia entre eles e a Constituição (SILVA, 2006, p. 344). Por outro lado, a relação estabelecida entre lei e regimento não se baseia na hierarquia destas normas, mas no princípio da competência, em função do âmbito material que a Constituição lhes reserva (nesse sentido, García de Enterría, p. 253; Queiroz Filho, p. 26; Silva, 2006, p. 344), sendo a distinção feita por Silva (2006, p. 344) no sentido de que enquanto o regimento se destina a regular as atividades internas das Casas Legislativas, as leis se destinam a regular as condutas humanas em geral em torno do setor da vida que lhes constitui objeto de regulação70. Queiroz Filho (p. 26), em feliz apanhado sobre o tema, remonta ao MS nº 21.564/DF, julgado pelo STF, no qual se afastou qualquer hierarquia entre leis e regimentos, ficando expresso que as regras regimentais são fontes imediatamente derivadas da Constituição e que “não há nenhuma diferença essencial entre a lei sob sua expressão de regimento parlamentar e a lei sob sua expressão de ato legislativo” – posição que reforça a compreensão dos regimentos como autênticas leis.

Sob essa perspectiva torna-se mais aceitável a ideia de que atos praticados sem a observância do disposto no regimento podem gerar nulidades a ensejar revisão pelo Judiciário, como defendem, dentre outros, Silva Filho (p. 185) e Eliziane Oliveira (2013, p. 207). Aliás, assim o é desejável, mormente em virtude de todo o aparato burocrático-administrativo montado nas normas regimentais para embaraçar o acompanhamento escorreito do processo legiferante, crítica já tecida por Moura (p. 93) ao discorrer sobre a impenetrabilidade criada sobre o trato das matérias deliberativas:

Outro aspecto negativo observado prende-se ao exagerado apego demonstrado por alguns parlamentares, entricheirando-se em regras regimentais, disparando embaraços com suas frequentes invocações, acreditando que assim multiplicam o grau de influência que possam amealhar. É verdade que essa atitude deixa algum saldo diante dos parlamentares, ou por se encontrarem em fase de iniciação, ou por nunca terem devotado muita atenção a meticulosos detalhamentos, alguns por estarem com preocupações mais alevantadas para aspectos substantivos de

70 Lembrando que, diferentemente da ideia que aqui se defende, ancorada nos dizeres de García de

Enterría, José Afonso da Silva não reconhece expressamente os regimentos enquanto autênticas leis, mas normas (lato sensu) materialmente constitucionais.

problemas pendentes, deixando que continuem essas matérias a ser proveitosamente exploradas aos que por elas revelem mais afinidades. A esses resta valorizar ao extremo a familiaridade com os disciplinamentos regimentais, acompanhando a marcação dos compassos que regulam a decadência utilizada nos inúmeros procedimentos em tramitação.

Feitas essas digressões acerca da natureza dos regimentos internos, cabe agora tratar dos chamados atos interna corporis que os compõe. No próximo tópico buscar-se- á responder em que consistem esses atos e qual seu alcance para, em seguida, versar sobre sua sindicabilidade.