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DEFICIÊNCIA VISUAL E APRENDIZAGEM

A falta de conhecimento acerca da deficiência visual faz com que prática pedagógicas sejam pautadas por ideias distorcidas e do senso comum. Os mitos, tanto os que superestimam quanto os que atribuem menos valia, impactam negativamente em práticas pedagógicas e dificultam o processo de inclusão.

Camargo (2008) considera que esse desconhecimento se fundamenta, basicamente, em dois princípios:

a) O conhecimento mítico acerca da deficiência visual assume de forma simultânea, interpretações extremas sobre as reais potencialidades das pessoas cegas ou com baixa visão. Nessa perspectiva, a deficiência visual é associada com infelicidade, invalidez, medo supersticioso e grande respeito.

Paralelamente à ideia de invalidez, aparece a ideia de que os deficientes visuais desenvolvem forças místicas da alma como acesso à visão espiritual (VIGOTSKI, 1997)20. Graças a esse conhecimento mítico, a cultura popular entende o deficiente visual como uma pessoa que possui visão interior, dotada de conhecimento espiritual, não acessível a outras pessoas.

b) A substituição dos órgãos de sentido: esse tipo de conhecimento acerca da deficiência visual baseia-se na substituição de órgãos do sentido, como no caso dos órgãos pares rins e pulmões, isto é, na ausência ou não funcionamento de um deles, o outro exerceria suas funções (VIGOSTSKI, op.

Cit.). Ao contrário de tal concepção, nos cegos não existe o desenvolvimento supernormal das funções do tato e da audição. Fenômenos como o da agudeza tátil, nos deficientes visuais, não surgem da compensação fisiológica direta da limitação visual, mas sim, de uma via indireta, muito complexa, ou seja, da compensação sócio-psicológica geral. (CAMARGO, 2008, p. 156).

Entretanto, não acontece, de fato, uma substituição. O que ocorre é uma reorganização psíquica complexa, onde o indivíduo, pela falta de um sentido, busca novas formas de equilíbrio e reorganização. Pela perspectiva social do homem, pode-se dizer que o homem não pode-se adapta, e sim transforma e é transformado pelo meio.

Camargo (2008) cita uma sequência de orientações didáticas que podem auxiliar o trabalho de professores que ministram aulas em turmas com alunos cegos inclusos. As orientações fundamentam-se nos princípios, definidos por Lowenfeld (1983)21, de solidez, unificar experiências e aprender fazendo.

20 VIGOTSKI, L. S. Fundamentos de defectologia: El ninõ ciego. In: VIGOTSKI, L. S. Obras completas.

Tradução de: FERNANDEZ, M. del C. P. Havana: Editorial Pueblo Y Educación, 1997. p. 74-87.

21 LOWENFELD, B. Berthold Lowenfeld on Blind ness and Blind People: Selected Papers. New York: American Foundation for the blind, 1983.

Solidez: para que um aluno com deficiência visual realmente compreenda fenômenos que ocorrem ao seu redor, os professores devem apresentar-lhe objetos que possam ser notados e manipulados (observados).

Unificar experiências: é necessário que o professor, por meio de procedimentos de mediação, coloque a experiência concreta real, e unifique tais experiências tanto por meio de explicações orais e táteis, bem como de sequências.

Aprender fazendo: é fundamental oferecer aos alunos com deficiência visual as programações sistemáticas de experiências não visuais como tocar em suas mãos, fazer determinados ruídos, disponibilizar-lhes textos, eventos e questões sonoras, visto que, por meio de tais programações, esses alunos podem interagir com o objeto de estudo. (CAMARGO, 2008, p. 192-193).

Importante ressaltar que em nenhum momento esses princípios sugerem estratégias exclusivas para alunos cegos, ao contrário, propõem metodologias que possibilitam atender a todos os alunos, em igualdade de acesso ao conhecimento, permitindo que possam fazer trocas e participar em conjunto.

Camargo (2016) apresenta como central o conceito de didática multissensorial para a possibilidade de elaboração e condução de atividades de ensino de Física, adequadas para alunos com e sem deficiência visual. Segundo essa didática, todos os sentidos (visão, audição, olfato, paladar e tato) podem atuar como canais de entrada de informações. Os benefícios de se utilizar esse método em aulas de Ciências da Natureza são de ordem quantitativa, quando permite que mais pessoas possam participar ativamente do processo de aprendizagem e experimentos (tanto alunos videntes quanto alunos com deficiência visual), e qualitativa, quando possibilita acesso às informações mais completas e aprendizagem significativa.

Camargo (2008) adverte que é preciso tomar cuidado para que o uso de recursos baseados no modelo multissensorial não sirva para induzir a entendimentos equivocados em relação aos conceitos e fenômenos estudados, e nem para segregar o aluno com deficiência visual em sala de aula. Nesse sentido, deve-se considerar que o material não é autossuficiente e que a mediação do professor é essencial para que o aluno compreenda as relações entre a imagem tátil e os conceitos estudados.

Outro ponto a se observar é que o material multissensorial deve ser acessível a todos os alunos, cegos e não cegos, para que o aluno cego não fique à parte da sala. Para além do papel de atender às especificidades, o material acessível pode e, preferencialmente, deve ser uma possibilidade de interação entre alunos com e sem deficiência.

Diz ele que, ao trabalhar Ciências da Natureza é necessário desvincular a ideia de “ver” da ideia de “conhecer”, pois muitos fenômenos representados

visualmente não são possíveis de serem vistos. São formas metodológicas e hipotéticas para apresentar determinado tema.

Um exemplo pode ser dado pela disciplina de Física, que trabalha bastante com abstração de situações e, frequentemente, com representações de fenômenos, por meio de esquemas visuais. Em função disso, Camargo (2008) alerta para o cuidado que se deve tomar para possíveis distorções conceituais. Para ele,

a utilização de esquemas visuais de fenômenos não observáveis visualmente pode representar distorções conceituais em relação ao conhecimento e entendimento desses fenômenos. Superar a relação entre conhecer e ver e reconhecer que a visão não pode ser utilizada como pré-requisito para o conhecimento de alguns fenômenos como os de física moderna, pode indicar alternativas ao ensino de física, as quais enfocarão a deficiência visual não como uma limitação ou necessidade educacional especial, mas como perspectiva auxiliadora para a construção do conhecimento de física por parte de todos os alunos. (CAMARGO, 2008, p. 26).

Nesse sentido, Camargo (2016) aponta a necessidade de se entender a estrutura semântico-sensorial que se refere aos efeitos produzidos pelas percepções sensoriais no significado de conceitos físicos. “Esses efeitos são entendidos por meio de três referenciais associativos entre significado e percepção sensorial, a indissociabilidade, a vinculação e a não relacionalidade” (CAMARGO, 2016, p. 35):

1. Significados indissociáveis são aqueles cujas representações externa e mental são dependentes de determinado referencial sensorial. Esses significados nunca poderão ser veiculados e representados internamente por meio de parâmetros sensoriais distintos dos que os constituem.

2. Significados vinculados são aqueles cujas representações externa e mental não são exclusivamente dependentes do referencial sensorial utilizado para seu registro e veiculação. Sempre poderão ser representados externa e internamente por meio de parâmetros sensoriais distintos do inicial.

3. Significados sem relação sensorial: não possuem vínculo ou associação com qualquer referencial sensorial. Tratam-se de significados de conceitos abstratos referentes a construtos hipotéticos elaborados para a explicação e o entendimento de fenômenos, efeitos, propriedades, etc. (CAMARGO, 2016, p. 36).

Para as condições reais de ensino-aprendizagem, o autor cita como exemplo de significados sem relação sensorial o conceito de campo. São utilizadas imagens representacionais, porém não existe possibilidade de observar campos elétrico, magnético ou gravitacional.

Ao tratar do conceito de calor, o autor evidencia a presença das três características mencionadas anteriormente: a indissociabilidade, a vinculação e a não relacionalidade:

Calor é energia em trânsito entre sistemas de diferentes temperaturas. Aqui surge um primeiro significado do conceito de calor, o de energia, que é algo abstrato, de significado sem relação sensorial. Por outro lado, a transferência de energia entre sistemas de diferentes temperaturas, ou seja, o calor, pode se dar por meio de três processos: condução, convicção e radiação. Tais processos podem ser representados por meio de modelos empiricamente observáveis e, por isso, possuem significados vinculados, por exemplo, às representações visual ou tátil (colisão entre moléculas dos sistemas, características geométricas de onda eletromagnética, etc.). Existe, entretanto, um significado relacionado à sensação térmica, como a percepção da radiação solar ou de um metal à temperatura elevada. Esse significado é indissociável de representação tátil. (CAMARGO, 2016, p. 36-37).

Para que os alunos com deficiência visual possam acompanhar as aulas, é necessário desconstruir a comunicação baseada em estrutura empírica audiovisual interdependente. Não significa não utilizar recursos visuais, que fazem parte da cultura hegemônica da sala de aula, a dos alunos videntes, mas utilizar de forma que seja acessível, também, aos alunos com deficiência visual.

Essa estrutura pode ser facilmente reconhecida em perfis comunicativos do tipo isto mais isto igual a isto (professor demonstrando a resolução de equação); notem as características desse gráfico... (professor aponta com as mãos características do gráfico escrito ou projetado); de acordo com o que nos informa esta tabela... (aponta características descritas na tabela); quando a força aumenta no gráfico, notem para onde vai o deslocamento (indica características gráficas). (CAMARGO, 2016, p. 42).

É possível perceber, assim, nessa perspectiva, que a comunicação entre professores e alunos só faz sentido quando associada a recursos visuais, de forma que os alunos com deficiência visual ficam sem possibilidade de compreender o que está sendo dito pelo professor.

Como forma de desconstruir esse formato de comunicação, Camargo (2016) sugere a exploração de linguagem de estruturas empíricas visualmente independentes, como, por exemplo: a tátil-auditiva e tátil e auditiva independentes; a fundamental auditiva e auditiva e visual independentes.

A primeira estrutura possui potencial comunicativo por permitir veicular significados vinculados às representações não visuais:

Utilizando-se de maquetes e de outros materiais possíveis de serem tocados ou observados auditivamente, vinculam-se os significados às representações tátil ou auditiva, e, por meio da estrutura mencionada, esses significados tornam-se acessíveis aos alunos cegos ou com baixa visão. (CAMARGO, 2016, p. 43).

Já no caso da segunda estrutura, o potencial comunicativo vai depender das informações veiculadas por meio da descrição oral do que se pretende comunicar:

Descrição oral detalhada de gráficos, de tabelas, de comportamento geométrico de raios e de fenômenos luminosos, de passagens matemáticas são exemplos do potencial comunicacional dessas estruturas empíricas.

Nesse contexto, a utilização de recursos instrucionais visuais como lousa, data-show, retroprojetor, não são necessariamente inconvenientes. Tais recursos podem ser utilizados em salas de aulas que contenham alunos com deficiência visual, desde que o elemento descrição oral detalhada ou audiodescrição (ROMEU FILHO, 2000)22 seja explorado ao máximo. É importante ressaltar que, na hipótese de a descrição oral tornar-se insuficiente ou limitada, a introdução de registros e esquemas táteis será sempre adequada e necessária para a veiculação de informações.

(CAMARGO, 2016, p. 44).

Percebe-se como essencial a comunicação e o uso de linguagem formal (termos próprios da Física, da Química e da Matemática) para fazer a exposição dos conceitos. Outro fator de extrema importância é o conhecimento das especificidades da escrita em braille.

Muitos alunos, por conhecerem a simbologia utilizada para digitação e formatação, para posterior impressão em braille, por meio do programa braille fácil, acabam utilizando como forma de registro em suas notas de aula e avaliações essa simbologia. Este empréstimo de simbologia auxilia os alunos pelo fato de ser linear e possibilitar registrar no computador de forma também linear. Muitos professores regentes, por não possuírem acesso a estes códigos, não compreendem o que os alunos querem comunicar com a escrita. Como exemplo, para escrever o número 5 elevado a 3, registra-se 5 â 3, onde “â” é indicador de expoente. Raiz de 4 com índice 2, é registrado como à2@4, sendo “à” indicador de índice da potência e “@” indicador de raiz.

Além disso, as formas de ditado muitas vezes permitem mais de uma interpretação, por exemplo, está escrito no quadro 3x+1 e o estudante vidente dita como três elevado a x mais um. De acordo com a interpretação fica como 3x + 1. Fica claro que os resultados do exercício proposto pelo professor e o

22 MOTTA, L. M. V. M.; ROMEU FILHO, P. (Ed.). Audiodescrição: transformando imagens em palavras. São Paulo: Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo, 2010.

que foi transcrito para o braille serão diferentes. Por exemplo, se for necessário substituir o valor de “x” por 2, usando a expressão escrita na lousa, o resultado será 27 (32+1 = 27), entretanto, o resultado para a forma como o aluno cego registrou será 10 (32 +1 = 10). Ao falar que encontrou resultado 10, o que não está errado de acordo com o exercício que ele copiou, se o professor diz que a resposta é 27, e não procura entender como o aluno resolveu, este fica sem entender onde errou, e, muitas vezes se cala, por vergonha, ou, por que o professor não lhe dá chance de explicar a forma como chegou ao resultado. (CODEN; DIAS; PANOSSIAN, 2017, p. 37).

É função do professor da Sala de Recursos Multifuncionais transcrever todos os materiais produzidos pelos alunos, passando do braille para tinta, para que os professores das disciplinas façam as correções, assim como a formatação e impressão dos materiais em braille. Não é obrigatório, entretanto, que os professores regentes conheçam a simbologia braille e suas especificidades. Mas é fato que, após sentirem-se motivados e buscarem o conhecimento sobre o sistema braille, os códigos unificados (Português, Matemática e Química) e os softwares, conforme suas disciplinas e necessidades, a comunicação escrita entre aluno e professor deixa de ser um empecilho para o processo de ensino-aprendizagem.

Algumas dessas providências permitem a superação de ideias distorcidas e do senso comum a respeito da aprendizagem vivenciada por alunos com deficiência visual, que impactam as práticas pedagógicas e não contribuem para o processo de inclusão.