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2 PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA

4.2. Definição e natureza jurídica

Conquanto já tenham sido esboçadas algumas linhas sobre função administrativa no capítulo antecedente, cumpre agora aprofundar a sua identificação. Para Celso Antônio Bandeira de Mello a função administrativa é:

A função que o Estado, ou quem lhe faça as vezes, exerce na intimidade de uma estrutura e regime hierárquicos e que no sistema constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser desempenhada mediante comportamentos infralegais ou, excepcionalmente, infraconstitucionais vinculados, submissos todos a controle de legalidade pelo Poder Judiciário (2002, p. 33-34).

De suma importância também lembrar a definição de outro professor da Faculdade Paulista de Direito, Carlos Ari Sundfeld:

Administrar significa aplicar a lei de ofício (Seabra Fagundes), isto é, aplicar a lei independentemente de provocação de qualquer pessoa. O ato administrativo (o ato produzido no exercício de função administrativa) não inova originariamente na ordem jurídica; apenas aplica concretamente a lei que, esta sim, produz as inovações jurídicas originárias (2002, p.106).

Em virtude das inúmeras atividades desempenhadas pela Administração Pública, cada qual com sua tecnicidade, a atividade administrativa dificilmente será conceituada pacificamente.

Veja-se, a respeito, definição proposta por Odete Medauar, no sentido de identificar a função administrativa como a atividade estatal que:

Coadjuva as instituições políticas de cúpula no exercício da atividade de governo; organiza a realização das finalidades públicas postas pelas instituições políticas de cúpula; produz serviços, bens e utilidades para a população (1993, p. 54).

A grande questão que se põe é justamente qual a posição do Ministério Público dentro do Estado, porquanto fundamental para se aquilatar se exerce função administrativa. Por outro lado, inegável afirmar que o inquérito civil é composto de comportamentos infralegais potencialmente analisáveis pelo Poder Judiciário. A definição de função administrativa, contudo, se dá de forma sempre residual face à desempenhada pelos Poderes Judiciário e Legislativo. Vimos que a clássica separação dos poderes, em Jurisdicional, Executivo e Legislativo, não pode ser considerada como cientificamente rigorosa, pois, por vezes, ocorre a interpenetração dos poderes, exercendo uns e outras funções atípicas.

Secunda esta posição o fato de que mesmo os Poderes Judiciário e Legislativo exercem funções administrativas, do mesmo modo que o Judiciário legisla (v.g.: regimentos internos) e o Legislativo julga (v.g.: CPIs), daí por diante.

O inquérito civil, instaurado, conduzido e concluído pelo Ministério Público, ente estatal, deve ser enquadrado dentro de uma das funções do Estado. Independentemente de tentarmos, em vão, inserir o Ministério Público dentro de um dos “Poderes” constitucionalmente previstos, tarefa árdua e desarrazoada, posto que goza de autonomia e independência frente a todos, preferimos concluir simplesmente que inserido está no aparato estatal. De qualquer modo, o membro do parquet, no exercício do inquérito civil, jamais exercerá função jurisdicional ou legislativa; somente por este argumento, calcado na residualidade, já poderíamos concluir pela função administrativa.

No entanto, faz-se necessário afastar de uma vez por todas a confusão entre “função administrativa” e “Poder Executivo”. Como foi visto, os poderes se interpenetram, exercem atividades típicas e atípicas. Para sermos cientificamente honestos, não podemos reservar a função administrativa ao Executivo, mas sim concluir que funções administrativas as exercem o Poder Legislativo, o Poder Judiciário, o Ministério Público e mesmo quem faça as vezes de Estado, como as concessionárias e permissionárias de serviço público, as organizações sociais, as OSCIPs, etc.

Como então enquadrar o inquérito civil, a não ser como manifestação de função administrativa exercida por órgão alheio ao Poder Executivo? Podemos aplicar ao inquérito civil o magistério de Bandeira de Mello, supra-exposto, pois o Ministério Público, em vestes estatais, desempenha sua função mediante comportamentos infralegais e infraconstitucionais vinculados, submissos todos a controle de legalidade pelo Poder Judiciário.

Cumpre trazer à baila a lição de Marcello Caetano, que nos parece cair como luva ao argumento de função administrativa do inquérito civil, ao apresentar conceito não residual da mesma, que seria:

Em sentido material, o conjunto de decisões e operações mediante as quais o Estado e outras entidades públicas procuram, dentro das orientações gerais traçadas pela Política e diretamente ou mediante estímulo, coordenação e orientação das atividades privadas, assegurar a satisfação regular das necessidades coletivas de segurança e de bem-estar dos indivíduos, obtendo e empregando racionalmente para esse efeito os recursos adequados (2001, p. 05).

Como arremate a este ponto, colacionamos conclusão de André Rovégno, que faz importantes observações dizendo que o inquérito policial não é uma atividade administrativa, pois não é realizado no interesse do próprio órgão que o desenvolve:

Para verificarmos se determinada atividade guarda as características que lhe garantam acento nos domínios do Direito Administrativo, basta verificar a condição de atividade do Estado ou de órgão a ele vinculado e, mais, se essa atividade não é jurisdicional, legislativa ou de governo (política) (2005, p. 162).

Já para Caio Sérgio Paz de Barros: “É a atividade jurisdicional que caracteriza o ato

jurisdicional e, como tal, afirmamos que – apartados de toda a doutrina – o inquérito policial é procedimento jurisdicionalizado”.36

Hugo Nigro Mazzilli, define o inquérito civil como:

Uma investigação administrativa prévia a cargo do Ministério Público, que se destina basicamente a colher elementos de convicção para que o próprio órgão ministerial possa identificar se ocorre circunstância que enseje eventual propositura de ação civil pública ou coletiva. De forma subsidiária, o inquérito civil também se presta para colher elementos que permitam a tomada de compromissos de ajustamento ou a realização de audiências públicas e emissão de recomendações pelo Ministério Público (1999, p. 46).

A partir de sua conclusão sobre ter o inquérito civil natureza administrativa, Mazzilli sustenta que o inquérito civil não é processo administrativo e sim procedimento, pois “nele

não há uma acusação nem nele se aplicam sanções; dele não decorrem limitações, restrições ou perda de direitos. No inquérito civil não se decidem interesses; não se aplicam penalidades”.37

Nesta linha, o processo administrativo só existiria para dirimir determinada controvérsia na esfera administrativa e, como o inquérito não se presta a tal função, não pode ser processo administrativo em sentido estrito.

A decisão de propor ou não a ação civil pública não se equipararia a uma decisão que ocorre ao fim de um processo administrativo, pois esta gera conseqüências jurídicas para os administrados, enquanto aquela se dá interna corporis, dentro do próprio Ministério Público, sem qualquer participação de terceiros.

A conclusão exposta tem por fundamento a distinção entre função institucional do Ministério Público e instrumento de atuação, sendo exemplo deste último o inquérito civil. A função institucional seria, v.g., a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, ou ainda dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

36 BARROS, C.S.P.B., O contraditório na CPI e no inquérito policial, p. 13.

Ademais, fia-se Mazzilli, para negar qualidade de processo administrativo ao inquérito civil no fato de este ser dispensável, ou seja, não constituir pressuposto processual para a propositura da Ação Civil Pública. Ele pode ser dispensado, por exemplo, quando o Ministério Público tem todos os elementos necessários para propor a ação.

Contudo, ainda que sirva essencialmente o inquérito civil para preparar a propositura da ação civil pública, as informações nele contidas podem concorrer para formar ou reforçar a convicção do juiz. Ademais, reconhece-se que, por vezes, é usado de forma excessiva “como se fosse uma panacéia”. Na prática, sabe-se que uma investigação temerária pode provocar enormes danos à pessoa, mesmo que sob o aspecto estritamente jurídico ninguém se presuma culpado só pelo fato de estar sendo investigado.

De posse destas conclusões, condizentes com a realidade do país, de freqüente aviltamento do direito público subjetivo à solução imparcial dos conflitos, postulamos a classificação do inquérito civil como processo administrativo, como meio apto a atingir não só finalidade da investigação, mas principalmente a segurança do processo jurisdicional, com todas as garantias que lhe são inerentes.

O que não se pode, na esteira da moderna processualidade administrativa, é amesquinhar a redefinição de processo como direito público subjetivo, e tratá-lo como mero instrumento ou adjetivo, em flagrante descompasso com a marcha ditada pela Constituição Federal, asseguradora dos princípios constitucionais, inclusive ao processo administrativo.