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2 PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA

3.2. Processualidade

Processo vem do latim processum e significa proceder, progredir. Ainda que seja simples a definição da palavra, difícil é conceituá-lo, pois sequer possui uma natureza jurídica plenamente definida. A definição de processo como instrumento disciplinado por atos coordenados, tendentes a uma finalidade específica, ganhou a maioria das vozes.

Claro está que a Administração Pública nem sempre pode de imediato responder ou mesmo atender às necessidades dos administrados, pois, por vezes, se faz necessária a elaboração ordenada de atos até a decisão final, sendo esta, na maioria das vezes, conseqüência de um processo administrativo.

Odete Medauar noticia que parte dos processualistas entendia que a processualidade era restrita ao âmbito jurisdicional, sendo que a visão destes “dificultava a indagação a

respeito de pontos comuns do processo jurisdicional com esquemas de atuação de outros poderes”.26

De outro lado, alguns administrativistas também entendiam que o processo seria exclusivo da prestação jurisdicional. Tal posicionamento acabaria por significar negação de uma processualidade administrativa, tendo por base preocupação terminológica, com o fim de evitar confusão entre o modo de atuar da administração e o modo de atuar do Judiciário, reservando-se para o âmbito administrativo o vocábulo “procedimento”.

Para Odete Medauar, esta negação também poderia ser fruto de “inexistência de conscientização para um novo modo de atuação administrativa”. E como motivos da visão acima exposta dos administrativistas, a autora aponta: i) construção da ciência processualística voltada para a jurisdição, impedindo a sua visualização no âmbito administrativo; ii) a idéia de que a atividade administrativa se desenvolve de uma forma mais livre e discricionária é incompatível com a idéia de processo; iii) preocupação com o termo final do ato administrativo, sem levar em consideração os elementos que o antecedem; iiii) a

concepção do ato administrativo, como a simples manifestação da autoridade administrativa, também não se coadunando com a idéia de processo.

A partir do século XIX, o entendimento no sentido de aceitar uma processualidade no âmbito das três funções do Estado, passa a ganhar força, justamente pela adoção do processo como relação jurídica, o que permitia visualizá-lo “como um conjunto de posições jurídicas

ativas e passivas, de cada um dos seus sujeitos (poderes, faculdades, deveres, sujeições e ônus) e não somente como simples sucessão de atos”.27

Desta forma, entre administração e administrado nota-se uma aproximação, gerando mão dupla, ou seja, a exposição dos métodos de atuação administrativa, ao mesmo tempo em que o cidadão passa a ter maior chance de se fazer ouvir pela Administração. Na mesma linha, observa-se uma ingerência cada vez maior do Estado na vida dos particulares, fazendo-se por isso necessária a fixação de parâmetros mais justos, limitados e menos discricionários para a sua atuação. Como efeito direto, mais importância é dada aos momentos anteriores à prática dos atos administrativos, como forma de proteção dos administrados perante a Administração. Fica deste modo fixada a indispensável processualidade para a condução de cada uma das funções do Estado, havendo pontos comuns entre elas, sendo cada uma regida pelo seu respectivo regime jurídico. Antes de se fixar as peculiaridades do processo administrativo, cumpre passar os olhos pela interpenetração das funções do Estado.

De suma importância traçarmos a distinção entre jurisdição e administração, pois desta depende a inserção de cada conduta dos entes estatais em seu respectivo regime, com as decorrências jurídicas aptas a tutelar os interesses dos cidadãos. Muitos se debruçaram sobre o tema, alguns dos quais pretenderam a identidade entre a função executiva e a função jurisdicional, pois ambas as atividades consistiam na aplicação da lei. Para Chiovenda, a jurisdição seria “uma atividade secundária no sentido de que ela substitui a vontade ou a

inteligência de alguém, cuja atividade seria primária, enquanto o administrador exerce atividade secundária no sentido de que a desenvolve no seu próprio interesse”.28

27 MEDAUAR, O., A processualidade no direito administrativo, p. 15.

Para Cristofolini29, existem apenas duas funções do Estado que são a legislação e a aplicação da lei, e esta se desdobra em administração e jurisdição, consistindo a distinção entre estas em critérios meramente históricos e políticos.

De qualquer lugar que se olhe, podem-se distinguir as funções legislativa, jurisdicional e administrativa, como feixes de um só Estado. Embora a separação dos poderes não seja rigorosamente científica, porquanto as funções administrativa e jurisdicional têm a mesma essência de aplicar a lei a casos particulares, iremos adotá-la, propondo que o que não for atividade legislativa ou jurisdicional será, residualmente, administração, por quem quer que lhe faça as vezes. Não obstante, a interpenetração de poderes, quando um “Poder” invade a função reservada a outro, somente serve a corroborar o quadro de relatividade da especialização de cada um, consoante magistério de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, para quem:

A especialização inerente à “separação” é, dessa forma, meramente relativa. Consiste numa predominância no desempenho desta ou daquela função. Cada poder, em caráter secundário, colabora no desempenho de outras funções, pratica atos teoricamente fora de sua esfera (1990, p. 119).

Sem embargo da posição acima exposta, a função administrativa age de forma unilateral, com desigualdade entre os sujeitos, pois há uma superioridade pela Administração em face do administrado. Já a função jurisdicional caracteriza-se pela bilateralidade e igualdade entre as partes. No entanto, afirma Odete Medauar que:

Tratando-se de atuação pautada pela processualidade, a Administração tem sujeições e deveres (...). Portanto, na atuação realizada sob o esquema processual, há igualdade também no âmbito administrativo e o ato final não decorre só do desempenho unilateral da autoridade, embora lhe seja imputado, da mesma forma que a sentença é imputada ao juiz (1993, p. 49).

Tendo em vista que a atividade administrativa realiza-se de maneira múltipla e complexa, apenas em uma parte de sua atividade se desenvolve por um esquema processual. Essa processualidade se faz mais imperiosa na atividade administrativa, quando os seus atos mais diretamente afetam direitos dos indivíduos ou restringem atividades. Dessa forma, a

29 CRISTOFOLINI, G., Efficacia dei provvedimenti di giurisdizione volontaria emessi da giudice incompetente.

processualidade que se desenvolverá no âmbito da administração deverá ir de encontro às peculiaridades dessa função, de modo a colmatar as diferenças entre as partes.

Cumpre aos administrativistas atinarem para a importância da processualidade, pois, sem o princípio democrático a função administrativa não se aplicará de maneira fiel. O encadeamento dos atos antecedentes deve se dar dentro de uma relação de obrigatoriedade, direitos, deveres, ônus e faculdades. Garante a ele que sempre que se pretender impor ônus, a contrapartida será a observância do processo, já que o caminho que conduz a um ato estatal não será escolhido livremente pela Administração, mas encontra-se de antemão delineado em direção a um ato final.

O predomínio da vontade de uma pessoa sobre as demais demarca a tônica do poder. Contudo, o que distingue o exercício deste poder, entre legítimo e arbitrário, é seguramente o processo pelo qual se impõem deveres, ônus ou sujeições. A processualidade, então, vincula- se à disciplina do exercício do poder estatal, traduzida por Sérgio Ferraz e Adilson Dallari na fórmula: “Processo e democracia: binômio incindível”.