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2 PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA

3.3. Processo e procedimento administrativo

Entre processualistas e administrativistas impera impasse quanto à denominação da sucessão de atos operada no seio da Administração Pública, sobre ser processo ou procedimento. Resta então adentrar o sinuoso caminho da distinção entre processo e procedimento administrativo, ainda hoje palco de infindáveis discussões e que guarda fundamental relação com as conclusões do presente trabalho. Se verificarmos que o inquérito civil é processo administrativo, não há como negar ao mesmo incidência do art. 5°, inc. LV da Constituição Federal. Opostamente, se classificarmos como procedimento administrativo, teremos de sustentar a aplicação do inciso de outra maneira que não subsuntiva.

Assim, a definição clara do que se entende por processo e por procedimento se faz inarredável. Lembremos, porém, que por muito tempo adotou-se o termo processo exclusivamente para o Direito Processual. Mesmo os processualistas se deram conta do

equívoco, como demonstra elucidativa passagem da obra do mestre uspiano Candido Rangel Dinamarco:

Talvez a culpa do confinamento dessas regras ao processo jurisdicional seja do processualista. Talvez, não; é dos processualistas. Porque nós costumamos dizer que o processo é só o processo jurisdicional e, fora disso, é mero procedimento. E os processualistas, quando dizem isso, falam até num tom um pouco pejorativo, depreciativo: “aquilo é um mero procedimento”. O “mero” está sempre junto com o “procedimento” (1987, p. 166).

Para Hely Lopes Meirelles, existe procedimento sem processo, mas não o contrário. Segundo seu magistério, apenas estaremos diante de processo administrativo quando existirem controvérsias. Onde, por outro lado, não houver litígio, mas tão-somente preparação para um ato final, veremos atuar um procedimento administrativo.

Interessante o posicionamento de Celso Antonio Bandeira de Mello. Para ele, processo e procedimento administrativo são expressões equivalentes. Ressalta, contudo, que em favor do termo processo milita a terminologia adotada pela Lei nº 9.784/99; já ao lado do termo procedimento está a tradição administrativista. Deixa claro em sua obra-prima, nada obstante, que a expressão preferível é processo, restando ao procedimento resguardar o rito.

Em suas palavras, processo ou procedimento administrativo – que, para o professor, são sinônimos – são definidos como:

Uma sucessão itinerária e encadeada de atos administrativos tendendo todos a um resultado final e conclusivo. Os atos previstos como anteriores são condições indispensáveis à produção dos subseqüentes, de tal modo que estes últimos não podem validamente ser expedidos sem antes completar-se a fase precedente (MELLO, 2002, p. 171).

Em primorosa obra sobre processo administrativo, Sérgio Ferraz e Adilson de Abreu Dallari conceituam processo administrativo como “uma série de atos, lógica e juridicamente

concatenados, dispostos com o propósito de ensejar a manifestação de vontade da administração”.30

Parecem ser coincidentes as lições colacionadas no que concerne ao núcleo do processo administrativo, como sendo uma sucessão encadeada de atos, em que o precedente prepara o subseqüente, com o intuito de se atingir uma meta ou decisão.

Os processualistas, por seu turno, costumeiramente apontam o inquérito policial como sendo procedimento administrativo. Como leciona André Rovégno, há um motivo peculiar, bem identificado pelo autor, para esta divergência aberta pelos processualistas:

É certo, entretanto, que esses autores partem de noções de processo e procedimento muitas vezes ainda estruturadas sob forte resistência à aceitação da existência de processo fora dos limites do Direito Processual. Freqüentemente, a referência a procedimento administrativo é feita em lugar daquela normalmente aceita (como acabamos de ver na exposição precedente) de processo administrativo. Enfim, acreditamos que as conclusões dos processualistas, de forma geral, padecem de certo alheamento em face das construções científicas hoje largamente aceitas de processualidade no âmbito administrativo (2005, p. 182-183).

O trecho acima exposto, parte de brilhante dissertação de mestrado, vem na direção oposta ao pensamento de Ada Pelegrini Grinover, em estudo sobre garantias constitucionais. Significativo é o trecho em que a professora Grinover afirma que:

Considerando o inquérito policial um processo administrativo, parecia-me possível chegar a essa conclusão. Mas, na verdade, meditando mais, eu fui me convencendo, aos poucos, de que não era essa a mens legis constitutionis, quando a Constituição se refere ao processo administrativo, ela não quis se referir a uma peça investigatória, que tem natureza de procedimento administrativo, mas em que ainda não há acusado e em que, freqüentemente, ainda não há sequer indiciado (1991, p.23).

No mesmo sentido a lição de Rogério Lauria Tucci, para quem o inquérito policial é

“uma das modalidades de procedimento administrativo”.31 Sintomática da discussão que a doutrina terá de enfrentar é a conclusão a que chega André Rovégno, para quem essa concepção dos processualistas:

31 TUCCI, R.L., A polícia civil e o projeto de código de processo penal. In: MORAES, B.B., A polícia à luz do

Construída sobre a resistência – largamente entranhada na doutrina processual – à noção de processualidade fora dos limites da jurisdição estatal, tem comprometido, com freqüência, o resultado dos estudos dos processualistas sobre o alcance do disposto no art. 5°, inciso LV da nossa Constituição (2005, p. 184).

A posição dominante da jurisprudência pátria é no sentido de se conceber o inquérito policial como procedimento administrativo. Na clássica obra de Odete Medauar (1993), encontraremos concepção de que o procedimento é gênero de que o processo é espécie. O procedimento seria o nexo que liga o poder e o ato, que externa concretamente o exercício deste poder; seria a regra de atuação do Estado, podendo, por vezes, apresentar-se como processo.

A mesma autora busca distinguir processo e procedimento com base na atuação de sujeitos diversos e na forma como se dá essa participação. Assim, procedimento “é a

sucessão de atos, realizados todos pelo mesmo sujeito a quem compete editar o ato final”. Por seu lado, o processo é onde “o elemento característico se encontra na atuação de sujeitos

diversos daquele a quem compete editar o ato”.32 Quanto à forma de participação, só haverá processo se esta for efetiva, se puderem os atores influir no procedimento. Em outras palavras, existirá processo quando presente a garantia do contraditório; quando inexistente, será simplesmente procedimento.

Distinguiremos processo de procedimento, lembrando que diversos diplomas legais abraçaram a denominação “processo administrativo” para designar uma série de atos concatenados com o propósito de ensejar um ato final de vontade da Administração Pública.

Podem-se vislumbrar duas realidades abarcadas na palavra “processo”: a primeira delas pode ser vista de modo panorâmico, de cima para baixo, como uma sucessão de atos instrumentais que terminam, em certo ponto, com o resultado. De outro ponto, especificamente observando de dentro do caminho, notam-se as peculiaridades dos atos e identifica-se seu itinerário. Deste modo, a primeira realidade se mostra maior, genérica, enquanto a segunda é algo específica, atomizada. À primeira se aplica a denominação processo; à segunda, chamamos procedimento.

Neste sentido, Sérgio Ferraz e Adilson Dallari observam:

É inequívoco que, em nossos dias, avulta na doutrina o rol dos autores que vêm prestando sua prestigiosa adesão à expressão “processo administrativo” para indicar o conjunto maior a que antes nos referimos. Tais doutos reservam a palavra “procedimento” para identificar o complexo dos atos que compõem o processo, ou seja, o iter que vai da instauração à decisão (2003, p. 33).

Apontam os referidos autores três critérios, com acerto inquestionável, para se preferir a locução “processo administrativo”, em relação ao “procedimento administrativo”. Um primeiro critério, denominado lógico, tem por fundamento o fato de que se a teoria geral do Direito conceitua algo, não há como cientificamente se defender que um outro ramo da mesma ciência venha a conceituar a mesma idéia com nome diverso. Se a teoria sinaliza que a sucessão de atos, concatenados lógica e juridicamente, em direção a um fim, denominar-se-á “processo”, não há motivos lógicos para o Direito Administrativo pretender qualificá-lo de “procedimento”.

Na seqüência apontam os autores o critério normativo, por nós já exposto, mas que consiste no desacerto de se pretender denominar “procedimento” algo que não só a legislação ordinária citada, mas, sobretudo a Constituição Federal, optou por qualificar como “processo administrativo”.

Como terceiro e último critério está o ideológico, pelo qual o processo é relação jurídica, entre Estado e cidadão, para viabilizar e instrumentalizar o direito público subjetivo à solução imparcial dos litígios pelo Estado, mesmo quando este seja parte. Os autores nos fornecem a notícia histórica, segundo a qual tal posicionamento, desde a última década do século passado, se irradiou “como rastilho de pólvora da processualística civil alemã para o

sentimento jurídico do mundo ocidental”.33

O direito público subjetivo à solução imparcial dos litígios pelo Estado, emanando do

status civitatis, encontra-se há muitas décadas consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Os administrativistas sempre se queixaram da ausência de um processo administrativo com as configurações, inspirações, principiologia e segurança do processo jurisdicional.

Afirmando que o Constituinte de 1988 teria ouvido esses reclamos, indagam os mestres, para o tema, de maneira irretorquível:

Como amesquinhar essa notável redefinição, de índole substantiva (‘processo’ como direito público subjetivo), na apertada síntese de uma expressão de índole estritamente instrumental e adjetiva, como é próprio da expressão ‘procedimento administrativo? (FERRAZ; DALLARI, 2003, p. 35).

4. INQUÉRITO CIVIL