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Capítulo 3. A CULTURA DA QUALIDADE

3.3.2 Definindo Cultura da Qualidade

«As opiniões, as crenças, os valores e as práticas dos empregados em relação à qualidade são os elementos fundamentais da cultura da qualidade de uma organização. A gestão deve adquirir um entendimento acerca da cultura da qualidade e incorporar este conhecimento no planeamento para uma implementação de sucesso das actividades relativas à qualidade» (Cook e Verma, 2002).

Ser uma ‘buzzword’ não confere por si só a ‘cultura da qualidade’ o estatuto de conceito unívoco ou operacional. É um facto que ocorre com frequência na literatura da gestão e também na de turismo, particularmente nas referências às organizações deste sector de

actividade, contudo trata-se de ocorrências em que o conceito é mencionado mas não elaborado ou sequer explicitado; encontramo-lo, por exemplo,

para referir o ambiente em que se desenrola a actividade empresarial (Berasategui, 2000);

associado a um conjunto de práticas organizacionais, orais e escritas, que visam a qualidade do serviço e a eficiência do desempenho (Heymann, 1992:52; Brownell e Jameson, 1996);

indicado como elemento fundamental para a melhoria do desempenho das organizações (Irani et al., 2004);

para caracterizar a cultura da organização em que esta é real e efectivamente encarada como um sistema (Woods, 1998);

como requisito da implementação de programas de TQM, tanto na dimensão interna da organização, como na dimensão externa do ambiente económico global (Wong, 1998);

enquanto tendência e aspecto específico a ter em conta na gestão da qualidade a nível dos destinos turísticos (Gorga, 1999; Cluzeau, 1997);

como condição da melhoria do desempenho dos destinos turísticos ou, mais concretamente, como objectivo a atingir mediante a introdução de sistemas de gestão da qualidade nas empresas turísticas (Piqueras, 2000).

Todavia, no que toca ao caso do turismo, ao emprego comum da expressão não tem correspondido uma elaboração teórica sistematizada com base na qual seja possível propor e discutir os modelos de desenvolvimento de acordo com os quais as organizações deste sector devam evoluir.

A noção de uma cultura da qualidade emerge do contexto organizacional, e é aí que encontramos algumas das definições que tomaremos em linha de conta para uma abordagem da qualidade nas organizações turísticas. Na verdade, são definições muito próximas, ou mesmo derivadas, daquelas que encontramos para ‘cultura organizacional’. Consideremos apenas alguns exemplos tirados de literatura especificamente orientada para os problemas e questões da qualidade no âmbito das organizações.

Figura 3.2: Organização, Cultura Organizacional e Cultura da Qualidade

(Elaboração: Fonte própria)

Gryna (2001) defende que a cultura da qualidade constitui a parte da cultura empresarial que envolve os aspectos relativos à qualidade dos produtos e serviços e na especificidade que a caracteriza é definida como ‘o modelo dos hábitos, crenças, valores e comportamentos relativos à qualidade’ (Gryna, 2001; cf. Watson e Gryna, 2001). Um pouco nos mesmos termos, Cameron e Sine (1999:) definem-na como o subconjunto da cultura global da organização99 que ‘reflecte a abordagem geral, os valores e a orientação para a qualidade que perpassam as acções organizacionais’.

Mais tarde, Cameron (2001) reitera essas mesmas ideias, afirmando que a cultura da qualidade compreende as formas como a organização pensa e representa as questões da qualidade, formas essas decorrentes dos valores básicos, dos pressupostos e expectativas, da ideologia e orientação em relação ao trabalho que uma organização possui. Pires (2004), por seu turno, representa-a como a dimensão da cultura empresarial integradora de duas vertentes diferenciadas da organização, por um lado, um conjunto de regras, ao qual chama ‘Sistema da Qualidade’ (Pires, 1994), e, por outro lado, um conjunto de valores, que designa por subsistema ‘Valores da Qualidade’.

A sua abordagem pode ser encarada como uma tentativa de conciliar questões directamente sob o controlo da gestão e que possuem um cunho mais formal, nomeadamente a definição dos procedimentos necessários à decisão e controlo das actividades que se referem exclusivamente à qualidade, com outras questões, já mais da

99 A mesma ideia surge em Kujala e Lillrank (2004).

ORGANIZAÇÃO Estrutura Missão Visão Objectivos Política Estratégia Gestão / Liderança Recursos… E CULTURA DA QUALIDADE Valores Crenças Normas Expectativas Tradições Atitudes Condutas CULTURA ORGANIZACIONAL Valores Crenças Normas Expectativas Tradições Atitudes Condutas… E

ordem do simbólico ou cognitivo, que se prendem com os conceitos que se tomam como representativos de uma visão para a qualidade nos bens e serviços.

Como dissemos, fruto da reflexão em torno das organizações, estas definições evidenciam o mesmo grau de compromisso com a ideia da relevância dos valores. Baptista (2003), por exemplo, sustenta que ‘a cultura da qualidade implica que os valores visem o desempenho, que a liderança envolva e se envolva nos valores, que os empregados comparticipem e assumam os valores’ e Robinson (1997) não diz algo de muito diferente ao declarar que ‘uma verdadeira cultura da qualidade existe quando valores comuns e entendimento são alcançados entre a organização e os seus clientes’.

No mesmo sentido, Pires (2004) refere que para que a qualidade se torne uma questão de consciência generalizada a toda a organização ou empresa é fundamental ‘o compromisso com uma disciplina necessária à aceitação de um novo corpo de valores’ e isso porque, como vimos, a qualidade representa ela própria uma cultura. Para Robinson (1997) existe uma verdadeira cultura da qualidade ‘quando valores comuns e entendimento são alcançados entre a organização e os seus clientes’.

A insistência num corpo de valores indissociável de uma cultura da qualidade poderá ser explicada por razões já conhecidas. Se os valores, como já se afirmou, concorrem para a definição dos objectivos que orientam os comportamentos, bem como para a coesão dos indivíduos que pertencem a uma mesma organização, que a qualidade seja assumida continuamente como um objectivo por todos os elementos de todos os níveis da organização será efeito dos valores por que a liderança opte na sua estratégia de desenvolvimento organizacional.100 Por outro lado, a relevância prática que possuem para a organização não se restringe apenas à sua força de mobilização conjunta, uma vez que se reflectem também na forma como as estruturas organizacionais e as abordagens à gestão são concebidas e planeadas (Kujala e Lillrank, 2004).

100 Kujala e Lillrank (2004) defendem no seu trabalho uma posição muito forte a respeito da importância que os valores desempenham numa gestão para a qualidade porque, entre outras razões, é o conjunto dos valores propostos que fundamenta e orienta a tomada de decisões, sobretudo em situações muito concretas, normalmente quando os ‘manuais’ não sugerem eles próprios instruções para a acção. Sublinham, todavia, que o potencial explicativo e racional dos valores não se converte por si só no comportamento efectivo das pessoas, isto é, que a sua assumpção pode não ser consistente quer com os princípios explicitamente declarados quer com o comportamento, sendo por isso fundamental que a cultura organizacional no seu todo se veja implicada na responsabilidade de garantir a coerência desejada.

Por outro lado, fazer da qualidade a responsabilidade social fundamental da organização (Pires, 2004), assim como propiciar as condições para que as suas acções e programas se revelem eficazes (Kujala e Lillrank, 2004), poderá exigir a mudança na sua orientação cultural (Shahin, 2003), isto é, a transformação dos hábitos, das atitudes e, naturalmente, dos valores dos seus membros em outros que a experiência tenha mostrado possuírem uma relação mais evidente com desempenhos de qualidade. A questão da mudança cultural não é teoricamente pacífica (Hildebrandt et al., 1991; Kujala e Lillrank, 2004), todavia tem sido apontada como vital na adaptação das organizações ao ambiente e, por isso, também vista como indispensável ao seu sucesso em diferentes vertentes, isto é, capacidade para responder às necessidades e satisfações dos clientes, possibilidade de crescimento das quotas de mercado e perspectivas de maior rentabilidade dos negócios, para mencionarmos apenas as mais evidentes.

Gryna (2001) e Robinson (1997) consideram a cultura da qualidade passível de modificação, sendo o facto de nem todas as culturas organizacionais abordarem eficazmente as questões específicas da qualidade o que justifica o esforço de a empreender. Mas um processo dessa natureza deve ser conduzido apoiado na intervenção estratégica da liderança, tanto quanto sustentado no conhecimento de facto da cultura do presente - o que, de acordo com Robinson (1997), significa ‘todos compreenderem os actuais padrões de comportamento e por que é que eles existem’ -, e dos factores considerados constitutivos de uma eficaz cultura da qualidade, os critical

success factors (Kanji e Wallace, 2000; Gryna:2001)101.

Encará-la como uma parte (Gryna, 2001), um subconjunto (Cameron e Sine, 1999), da cultura organizacional permite-nos pensar em culturas da qualidade que, não obstante representarem formas organizacionais de pensar e agir em matéria de qualidade, se caracterizam pela sua distância, maior ou menor, relativamente a objectivos e desempenhos de excelência, sendo certo que as intervenções desenvolvidas nas organizações que não se fazem acompanhar de uma transformação cultural são menos susceptíveis de produzir os frutos esperados (Cameron e Sine, 1999).

101 Especificamente, Kanji e Wallace (2000) definem como «factores críticos de sucesso» ‘aquelas poucas áreas-chave da organização que, correctamente geridas, melhorarão a competitividade da organização e a excelência empresarial’.

Cameron e Sine (1999) diriam tratar-se de culturas da qualidade menos desenvolvidas ou maduras, no que toca ao paradigma da qualidade prevalecente na organização. Nos termos em que as categorizaram, chamaram-lhes ‘cultura da detecção de erros’, no caso de a organização entender a qualidade como ‘um problema a resolver’ e ‘cultura da prevenção dos erros’, se a atitude mental dominante corresponder a uma abordagem proactiva dos problemas em vez de reactiva. Dir-se-á por esse motivo haver exemplos que correspondem a culturas da ‘não-qualidade total’, se pela expressão ‘cultura da qualidade total’ referirmos ‘a concentração de todas as pessoas e recursos numa busca sem fim de mais qualidade e serviço em todas as dimensões da organização’ (Batten, 1994) ou o esforço de ‘reorientar a organização no seu todo, no sentido de corresponder às necessidades dos clientes da forma mais eficaz’ (Gilks, 1990).

Não obstante a suspeição de se sugerir algo próximo de uma contradição nos próprios termos, o trabalho desenvolvido por Cameron e Sine (1999) contempla ainda na sua tipologia uma outra cultura da qualidade à qual mais conviria chamar ‘da não- qualidade’, mas que os autores simplesmente designam por ‘ausência de ênfase na qualidade’, atendendo a que, neste caso, o conceito de ‘qualidade’ não se encontra, sob nenhum aspecto e a nenhum nível da responsabilidade organizacional, integrado na visão estratégica, nos objectivos, nas prioridades, nos valores, nos hábitos e comportamentos dos membros da organização. Aquelas que correspondem a esta categoria, tal como declaram, não acusam necessariamente a inexistência de qualidade nos seus produtos ou serviços; analisando a questão sob um ponto de vista cultural, estes autores não mais reivindicam do que a pretensão de elencar um conjunto de valores, atitudes e objectivos, ou seja, esses elementos que configuram as organizações e representam a sua cultura, tendo a aplicação dos seus métodos de investigação conduzido à conclusão de que há formas organizacionais em que a visão e a acção para a qualidade pontificam pela ausência. Tais organizações são mesmo uma realidade. A sua existência, uma questão cultural.

Já na perspectiva de Gryna (2001), a cultura da qualidade pode ser negativa ou positiva, conforme, por exemplo, promova atitudes de ocultação das falhas ou aposte nas estratégias capazes de surpreender os clientes. Cameron (2001) sustenta em estudos desenvolvidos junto de inúmeras empresas a existência de diferentes paradigmas relativos à qualidade que correspondem, por sua vez, à existência de diferentes culturas

da qualidade, cada uma das quais com os seus efeitos específicos no desempenho das organizações. Os dados resultantes da investigação levada a cabo por Cameron e seus colaboradores revelam, por exemplo, que a organização cuja cultura assenta no princípio da qualidade criativa tem vantagem competitiva sobre outra dominada por uma cultura de prevenção de erros e esta, por sua vez, sobre outra caracterizada pela detecção de erros (Cameron e Sine, 1999).

Quadro 3.1: Tipos de Cultura da Qualidade

Cultura da Qualidade Características

Ausência de Ênfase na Qualidade

Produtos

A qualidade não é uma prioridade; A qualidade não é sistematicamente medida;

A qualidade não é articulada com a estratégia organizacional;

Clientes

• A organização não está orientada para os clientes; • A organização não recebe feedback dos seus clientes; A organização não responde aos seus clientes;

Detecção de Erros

Produtos

• Evita os erros;

• Reduz o desperdício, refaz e repara; • Detecta problemas;

Focalização nos outputs;

Clientes

• Evita aborrecer os clientes;

Responde eficientemente e acertadamente às reclamações; • Avalia a satisfação após o facto;

• Focalização nas necessidades e exigências;

Prevenção de Erros

Produtos

Espera zero defeitos; Previne erros e defeitos;

Toma toda a gente por responsável; • Focalização nos processos e causas;

Clientes

Satisfaz clientes e supera expectativas; • Elimina os problemas de antemão; • Envolve os clientes no design;

• Focalização nas preferências e nos atributos desejáveis;

Qualidade Criativa

Produtos

Melhora constantemente e eleva os padrões; • Concentra-se nas coisas que correram bem; • Ênfase nos progressos (breakthroughs);

Focalização na melhoria dos fornecedores, clientes e processos;

Clientes

Espera lealdade no longo prazo; • Surpreende e encanta os clientes;

• Antecipa expectativas e cria novas preferências

(Fonte: Adaptação de Cameron e Sine, 1999)

A forma como a organização representa para si própria as questões da qualidade, isto é, a sua cultura, é considerada por Cameron (2001) como mais determinante para o seu bom desempenho do que qualquer outro factor, como, nomeadamente, o conjunto específico de ferramentas e técnicas que escolhe utilizar, convicção ela própria sustentada na existência de investigações empíricas que têm relevado a ausência de sucesso na aplicação de iniciativas para resultados de qualidade (Cameron e Sine: 1999).

O seu estudo permite-lhe mesmo concluir que ‘as organizações que adoptam culturas da qualidade criativas dão mais ênfase aos valores, às assumpções, às expectativas e às orientações dos seus membros do que às técnicas implementadas’ (Cameron, 2001).

No mesmo sentido, Batten (1994) refere que muitos dos esforços de pôr em prática uma filosofia como a da TQM não têm surtido os efeitos desejados porque esta se viu entretanto reduzida a um programa ou a um processo ao qual falta a sustentação numa cultura flexível e em que a qualidade não é assumida como um problema da responsabilidade de todos os membros da organização. Essa cultura organizacional flexível e integradora, que Batten chama ‘cultura da qualidade total’, transcende o conteúdo compreendido na própria noção de TQM, uma vez que ‘incorpora a filosofia, os valores centrais, as práticas de uma organização e os micro-elementos que fazem com que as coisas aconteçam no seu interior’.102

Também Kanji e Wallace (2000) salientam o facto de uma organização de sucesso necessitar de uma cultura da qualidade que sustente a sua estratégia de negócio e, por outro lado, que é essa mesma cultura a concorrer para um aumento das vendas.

A mudança por que a organização deve passar no sentido de criar e consolidar uma cultura da qualidade, nos termos de Gryna (2001), positiva não é, assim, um processo enredado num estrito e rígido formalismo que apenas reverbere no aparato organizacional ou convoque da liderança não mais do que a responsabilidade de pôr em marcha um programa de actuação. Poderá passar, como sugere Robinson (1997), por um entendimento comum a respeito da aceitação de um novo conjunto de valores ou até pela mudança no estilo de gestão, iniciativas que ultrapassam alterações que apenas visem os sistemas e estruturas da organização. Pergunta Cameron (2001),

102 A perspectiva de Kujala e Lillrank (2004:45) sobre esta questão é algo diferente na medida em que consideram haver convergência entre a cultura organizacional e a própria TQM, se esta for encarada como um fenómeno essencialmente cultural, complexo e possuidor de várias dimensões e níveis, à semelhança da própria organização. Afirmam que ‘os programas da TQM ultrapassam a implementação de práticas técnicas da gestão e exigem uma mudança fundamental na forma como os membros da organização trabalham conjuntamente para corresponder às exigências dos clientes. (…) Estas mudanças não podem ser analisadas centrando a atenção nas intervenções técnicas observáveis, mas antes procurando um entendimento compreensivo dos pressupostos básicos que favorecem ou inibem o sucesso de tais intervenções’. Contrariamente a Batten (1994), sustentam que a própria TQM ‘explicitamente define um conjunto de valores inerentes à disciplina (…), providenciando também as linhas orientadoras para uma gestão assente em valores’ (Kujala e Lillrank, 2004).

‘O que significa adoptar uma cultura da qualidade? Significa que a qualidade está reflectida nos valores básicos, na orientação geral em relação ao trabalho, nas assumpções e expectativas enraizadas, na ideologia da organização’.

As definições propostas por Gryna (2001) e Cameron (2001) são abrangentes o suficiente para admitirem a possibilidade de falarmos de culturas da qualidade aquém da própria qualidade, culturas que, de uma maneira ou de outra, deixam as organizações longe do seu objectivo último, isto é, o da excelência empresarial.

Todavia, o sentido que norteia os estudos desenvolvidos tendo por objecto as empresas e os seus desempenhos é o de se acreditar que o conhecimento dos casos considerados concorre para a descoberta, e divulgação, de processos e meios de actuação que se traduzem, não apenas em resultados de qualidade, mas em resultados que colocam a organização num nível de excelência, ou seja, aquele único capaz de assegurar-lhe um lugar de destaque no mercado, no fundo, o que lhe confere vantagem competitiva.

Ora é esse nível superior de desempenho que muitos autores consideram emanação de uma autêntica cultura da qualidade, razão pela qual, em muitos casos, cultura da qualidade é simplesmente sinónimo de qualidade total ou excelência, e nada mais (por exemplo, Robinson, 1997). E a menção da mudança cultural é motivada, na sua generalidade, pela convicção de que a cultura do presente da organização, que respeita aos assuntos da qualidade, pura e simplesmente, ainda não é uma cultura da qualidade, mas pode e deve vir a sê-lo.103