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Capítulo 3. A CULTURA DA QUALIDADE

3.3.1 Porquê Cultura e Qualidade?

Toda a literatura recentemente produzida no âmbito da qualidade parece deixar bem claro que o tema não só não é uma moda passageira, ‘a passé fad’ (Cameron, 2001; Foley, 2000; Kujala e Lillrank, 2004), como também já ultrapassou a estrita condição de ‘movimento’, ou seja, de tendência para mobilizar e envolver investigadores e práticos da gestão numa preocupação comum.97 Essa mobilização é um dado de facto, um feito em poucas décadas conseguido e que agora deixa espaço para que o engenho se aplique em amadurecer e evidenciar linhas de investigação, diversificar, apurar e especificar aspectos metodológicos, ensaiar modelos de actuação e intervenção ou considerar abordagens teórica ou praticamente inovadoras compatíveis com as tendências sociais e económicas que caracterizam o novo milénio; por outras palavras, que o paradigma se enraíze e expanda a todas as dimensões e áreas do real social.

Por outro lado, não é exagerado sublinhar a importância que a qualidade assume nos negócios de serviços, e em especial de turismo (Manente e Furlan, 1998). Neste último caso, uma vez que, para além de dependente de produtos com as suas especificações técnicas, a actividade turística decorre indissociável do meio envolvente em que as organizações propiciam experiências aos turistas, a qualidade compreenderá mais complexidade, produzindo-se os seus impactos a muitos níveis, ultrapassando por essa razão o do estrito serviço prestado ou mesmo o da organização que o presta. O desafio da qualidade, se transportado para o plano dos destinos turísticos, travar-se-á na totalidade do sistema económico e social, pelo que carecerá de uma abordagem compreensiva e integrada, cujos princípios, valores e linhas de actuação atendam às especificidades e necessidades dos diferentes grupos de stakeholders (Manente e Furlan,

97 Dizem Luchars e Hinkin (1996) que ‘as diversas designações para descrever os processos de melhoria da qualidade podem mudar e o jargão pode ir e vir, mas a exigência da qualidade veio para ficar’.

1998). E, como diz Cluzeau (1997), entre tanta diversidade a aí coexistir, torna-se imperioso criar ‘um critério comum de qualidade’.

Razão para perguntar como fazer dela mais do que um desígnio apregoado e muitas vezes, como é do conhecimento geral, incumprido, defraudando-se, no que respeita especificamente ao turismo, as expectativas criadas nos turistas que visitam os destinos. À semelhança do que sucede com as organizações consideradas isoladamente, poderá a qualidade ser gerida no sentido de criar, para um destino em particular, uma vantagem competitiva? E quais serão as condições em que poderá ser empreendida essa gestão?

Estas questões poderão receber parte da sua resposta à luz de uma articulação entre cultura e qualidade. Cultura e qualidade: porquê? Retomemos algo já veiculado no âmbito do pensamento organizacional e estabelecido, com maior ou menor grau de controvérsia, na literatura da gestão, recordando a sustentação empírica que tem suportado a convicção da relação entre cultura e sucesso do desempenho. A experiência parece vir aqui prestar fundamento à ideia de que a relação entre uma coisa e outra é mais do que fortuita. A vivência conjunta num ambiente que possui a sua história, as suas histórias, as suas figuras de referência, as suas práticas rotineiras, as suas regras e valores favorece a coesão entre os indivíduos que se vêem desse modo partilhar mentalidades e comportamentos. A isso se chamou ‘cultura organizacional’.

Então uma das razões para que cultura e qualidade se pensem conjuntamente é o

reconhecimento do potencial que a primeira, enquanto sistema de normas, valores e

práticas instituídas, tem para que a qualidade se concretize efectivamente na vantagem

competitiva das organizações. A cultura gera aí os seus efeitos, faz delas sistemas fortes

ou fracos, consistentes ou desarticulados, rígidos ou flexíveis, eficientes ou ineficientes; e se devidamente identificados os seus elementos constitutivos que são susceptíveis de uma manipulação adequada, poderá contribuir decisivamente para a implementação dos processos de mudança conducentes aos objectivos da qualidade98. Cultura enquanto mobilizadora de uma visão assente na qualidade significará não apenas que os valores sejam definidos sem ambiguidade, como também que seja perceptível a sua consistência

98 Apesar de cientes de a matéria não colher consenso entre os académicos, partilhamos da posição que reconhece ser possível, pelo menos no que respeita a certos aspectos, condicionar os modelos de pensamento e acção caracterizadores da cultura organizacional no sentido de a direccionar para objectivos pré-definidos.

com a missão, os objectivos definidos, a estratégia de actuação e os comportamentos dos indivíduos.

Uma outra via de abordagem do binómio cultura / qualidade, todavia compatível ou mesmo complementar da anterior, é a noção de que a qualidade, portadora de valores específicos (Michaud et al., 1991), é ela própria uma cultura (Dodwell e Simmons, 1994; Avelini-Holjevac, 1997; Cameron e Sine, 1999; Fife, 2001), uma ideia que Robinson (1997) parece subscrever quando afirma ‘a qualidade é ensinada (‘nurtured’), não derramada (‘spilt’)’.

Com efeito, poderão os objectivos organizacionais garantir por si sós a qualidade dos produtos e serviços ou inclusive das próprias organizações? Traduzir-se-ão a concepção e a adopção de um sistema de regras formalmente impecável na satisfação efectiva das necessidades e expectativas dos clientes? Será a certificação de uma organização suficiente para lhe assegurar uma vantagem competitiva no seio da concorrência?

A inflexão do rumo que as investigações sobre a qualidade registaram – isto é, de abordagens técnicas, centradas nas ferramentas a aplicar, a outras cujo enfoque assenta nos elementos culturais a que está associada (Barrett e Waddell, 2001) - terá surgido na sequência, quer de estudos empíricos que demonstraram o esgotamento dos diferentes programas da qualidade introduzidos sem o suporte de um sistema de valores (Barrett e Waddell, 2001), quer da constatação de resultados contraditórios no âmbito dos efeitos da introdução e aplicação desses mesmos programas (Cameron e Sine, 1999; Foley, 2000). Se estes são fundamentalmente os mesmos, o que pode explicar que deles decorram, em simultâneo, para diferentes organizações, consequências opostas? Alguma investigação, como atestam Cameron e Sine (1999), terá proposto uma resposta, avançando para isso a sugestão de tratar certos programas para a qualidade, como por exemplo a TQM, em sintonia com uma perspectiva cultural, à luz da qual

‘tratar a qualidade como um fenómeno cultural significa que a qualidade é abordada como um conjunto de valores, uma orientação geral, uma ideologia organizacional, mais do que um conjunto de ferramentas ou técnicas’ (Cameron e Sine, 1999).

‘quando a qualidade é definida culturalmente, os investigadores conseguem evitar debates em torno das dimensões ou processos que é mais importante considerar. Em vez disso, o centro da atenção desloca-se para os efeitos que os valores, as atitudes e as expectativas da organização produzem nos seus princípios da qualidade’.

Da inflexão a que Cameron e Sine (1999) aludiram é testemunho a definição de ‘qualidade’ que Pires (1994) apresenta. Defendendo que qualidade é ‘a cultura que permite às organizações providenciar produtos e serviços que satisfaçam as necessidades e expectativas dos clientes’, concebe-a como um sistema em que o

subsistema dos valores complementa o subsistema das regras de acordo com as quais se

processam as actividades organizacionais. Tal cultura exprime, para Pires (2004), uma

filosofia global, uma consciência, perpassando necessariamente toda a organização.

Lenehan e Harrington (1998), por outro lado, afirmam que a qualidade é também uma cultura, uma experiência, na qual estão implicadas uma atitude mental e iniciativas

organizacionais em que o objectivo de aumentar os lucros e as vendas passa por um

fortalecimento das relações que as organizações encetam com os seus clientes. Dodwell e Simmons (1994) entendem-na como toda uma nova cultura ‘que significa lutar pela perfeição, melhorar continuamente e integrá-la no plano geral dos negócios da empresa’.

Em que consiste essa cultura, que traços e valores a caracterizam, que formas de pensar e actuar requer dos membros de uma organização, quais são as condições em que ela poderá implementar-se são questões a que de seguida atenderemos mais detalhadamente.