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Delimitando fronteiras étnicas: o processo de identificação indígena no Santo Antô nio dos Pitaguary

Mapa 2: Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) Fortaleza, Maracanaú e Pacatuba em destaque Fonte: IPE-

1. TERRITORIALIZAÇÃO, MEDIAÇÃO E INVESTIMENTOS ÉTNI COS: as dinâmicas sociais e políticas Pitaguary

1.2 Delimitando fronteiras étnicas: o processo de identificação indígena no Santo Antô nio dos Pitaguary

Logo no início da pesquisa de campo etnográfica entre os Pitaguary, identifiquei que o processo de organização social e de mobilização étnica do grupo estava ancorado em dois do- cumentos administrativos: uma carta de sesmaria de 1722 e um registro de terra de 1854. Re- lato brevemente a seguir dois momentos (o primeiro deles em janeiro e o segundo em abril de 2017) que me fizeram perceber a importância desses documentos para o grupo.

O primeiro deles foi quando acompanhei como ouvinte uma oficina produzida pela orga- nização não governamental ADELCO (Associação para o Desenvolvimento Local Co-produ- zido) , integrando o projeto “Fortalecendo a autonomia política dos povos indígenas”. Este 33 encontro se deu durante um dia inteiro na Escola Indígena Ita-Ara (na aldeia de Monguba, Pacatuba - CE), que compõe uma das três escolas indígenas dos Pitaguary. Participaram lide- ranças das quatro etnias da região metropolitana de Fortaleza: Pitaguary (Maracanaú e Paca- tuba), Tapeba (Caucaia), Anacé (Caucaia e São Gonçalo do Amarante) e Jenipapo-Kanindé (Aquiraz). O objetivo da oficina foi produzir um diagnóstico da atual situação (territorial,

“[…] fundada em 2001, entidade civil sem fins lucrativos, localizada em Fortaleza-Ce, tem como eixos de 33

intervenção: Economia popular e solidária; Participação e organização política; Segurança Alimentar e Nutricio- nal; Desenvolvimento Institucional; Meio ambiente e agroecologia e Habitabilidade, dentre os quais perpassam temas como direitos humanos, igualdade de gênero e etnia. É filiada à Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (ABONG)”. Disponível em: <http://adelco.org.br/quem-somos/>. Acesso em: 01 de junho de 2017. Desde sua fundação a ADELCO desenvolveu projetos com o povo Tapeba e desde 2014 vem amplian- do sua área de atuação, trabalhando também com outros povos indígenas do Ceará. Ela é reconhecida pelo mo- vimento indígena como uma das “apoiadoras" da causa indígena, pois organiza eventos, faz a cobertura das ações indígenas, ajuda financeiramente algumas mobilizações (como foi o deslocamento de lideranças do Ceará para a ATL (Acampamento Terra Livre) 2017, entre outros modos de apoio.

conflitos, educação, saúde e etc.) dos povos indígenas do Ceará . Dessa forma, cada etnia 34 ficou em uma sala onde determinados tópicos eram levantados por um mediador (da ONG) e elaborados pelos índios, os quais iam escrevendo em uma cartolina. No final do dia todos se reuniram e apresentaram o que havia sido debatido em cada sala.

Acompanhei a sala temática “Pitaguary”, na qual estavam presentes, além de mim, um estudante de Geografia (também fazendo pesquisa), Oscar (mediador contratado pela ADEL- CO), o pajé Barbosa, sua filha Francilene e mais três professoras indígenas de Ita-Ara. O pon- to em que quero chegar, então, é que quando o pajé começou a discorrer sobre a carta de ses- maria doada aos índios no ano de 1722 pelo capitão-mor Manuel Francez, Francilene incorpo- rou um encantado . Quem veio foi o Arco-Verde Camarão, considerado pelo pajé e por sua 35 filha como primeiro cacique Pitaguary. Naquele momento, a entidade espiritual relatou as vio- lências e massacres que seu povo enfrentou, as migrações e alianças que eram necessárias à sobrevivência, além de ter reivindicado a posse histórica da terra indígena em decorrência da dita sesmaria que havia sido garantida ainda no século XVIII. Outro elemento que teve bas- tante destaque em sua fala foram os processos de trocas culturais. Daquela ocasião, destaco duas passagens: “os Pitaguary são Potiguara, de uma mesma raiz […] até o povo Tupinambá que é nosso povo também”; “A Pacatuba quando souberam que tinha índio, os coronel man- dou matar muito nos. Ai nos se refugiamos com os negros la da Pacatuba”.

Desse evento, passo agora para a outra situação, presenciada durante o dia do índio (19 de abril de 2017), onde acompanhei uma apresentação pública dos alunos da mesma escola (Ita-Ara) para estudantes de ensino fundamental das escolas das redes municipais de Maraca- naú e de Pacatuba. Os alunos eram recebidos com uma dança de toré, uma breve explicação sobre a história e o cotidiano dos índios Pitaguary e em seguida iam fazer visitas guiadas à salas temáticas (artesanato, plantas medicinais, tradição e etc.). O que me chamou atenção foi um banner que explicava brevemente a história do grupo, o qual trazia:

Em 2016 essa mesma atividade foi desenvolvida em em dois momentos: com as etnias do sertão do Estado e 34

com os Tremembé. Dessa forma, com os povos da região metropolitana seria o terceiro momento de se elaborar um diagnóstico amplo sobre os povos indígenas do Ceará.

“[…] Segundo Nascimento (2005), os encantados, encantos são entidade sobrenaturais, em princípio benéfi

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cas, que auxiliam os índios de diversos modos. São entidades vivas, isto é, que já são da natureza ou que, tendo sido humanos, não passaram pela experiência da morte, isto é, não são “espíritos de morto”. Alguns deles foram antepassados dos índios que teriam se encantado, ido para o “reino dos encantados” sem que tenham passado pela experiência da morte. Portanto, continuam vivos, mas para enxergá-los é preciso uma preparação espiritual" (NASCIMENTO, 2005, pp. 43-44 apud Lopes, 2014, p. 52).

Segundo os cronistas do século XVII o aldeamento do Santo Antonio do Pitaguary surgiu a partir da ação de missionários jesuítas que com o auxílio do cacique Ama- nay fundaram o primeiro núcleo populacional indígena de Maracanaú. O objetivo da ação dos jesuítas era de catequese para poder submeter os índios a fé católica. Em 20 de abril de 1722, os índios receberam do capitão-mor Manuel Francez duas ses- marias que davam garantia de posse aos seus territórios na serra do Pitaguary. Em 06 de setembro de 1854 o cacique Pitaguary, Marcos de Souza Cahaiba Arco-Verde Camarão registra em cartório as terras pertencentes ao seu povo.

Esses dois acontecimentos apontam dinâmicas sócio-culturais que envolviam os diver- sos atores em questão na política indigenista em diferentes momentos. Consequentemente, me levaram ao seguinte questionamento: como a etnicidade e a territorialidade do grupo vão se constituir, atualmente, a partir de documentos administrativos (uma sesmaria e um registro de terra)?

Temos o registro (SUDART FILHO, 1962, p. 178) de que em 1692, o governador do Estado do Brasil, Câmara Coutinho, “louva em carta” os Principais de Parangaba e Paupina pela “fidelidade e valor” com que estes se portaram na Guerra dos Bárbaros. Como recom- pensa, os habitantes dessas duas aldeias receberam do governo lusitano terras para suas lavou- ras. Acreditamos que essa “terra doada” tenha sido na região de Maranguape e Pacatuba pois em junho de 1718 o então capitão-mor do Ceará, Manuel da Fonseca Jaime, concedeu por data de sesmaria ao “Chefe Algodão e mais índios da Parangaba” uma posse de terra na serra de Maranguape. Studart Filho (op. cit.), também ressalta que anteriormente, em 1707 (ou 1708, conforme outro documento que encontrei), o capitão-mor Gabriel da Silva Lago forne- cera ao então Principal dos índios da Paupina, Thomé da Silva, uma data de sesmaria que ia pela serra de Sapupara até a costa da serra de Maranguape (até hoje essas serras permanecem com o mesmo nome). Portanto, as cidades que hoje os Pitaguary se localizam (Pacatuba e Maracanaú, fronteiriças com Maranguape), têm sua formação histórica relacionada com po- voações e aldeamentos indígenas da época, como Parangaba, Paupina etc.

A partir da discussão precedente chegamos no ano de 1722, data em que de acordo com o banner na Escola Diferenciada Pitaguary Ita-Ara, "os índios receberam do capitão-mor Manuel Francez duas sesmarias que davam garantia de posse aos seus territórios na serra do Pitaguary”. Existem duas cartas de sesmaria nesse mesmo dia (20.04.1722) doada a índios que habitavam a região ja indicada anteriormente entre Maranguape/Maracanaú/Pacatuba. As sesmarias de número 20 e 21, expressam

[N. 20] Registro da data e sesmaria do Tenente Mathias Monteiro e mais companhei- ros índios da Aldeia Nova, de uma sorte de terra no riacho Peocã, concedida pelo Capitão-Mor Manoel Francez, em 20 de abril de 1722 […] Manoel Frances Capitão

Mayor da Capitania do Ciará grande a cujo cargo está o governo della por sua Ma- gestade que Deus guarde Fasso Saber aos que esta minha carta de datta e Sismaria virem que a mim me Reprezentaram a dizer em sua petiçam por escrito Mathias

Monteiro, Domingo Dias, Francisco de Souza e Mathias Tavares, Alvaro da Costa, todos índios, naturais da Aldeya nova, e moradores na mesma aldeya desta Capita- nia, que elles Suplicantes tem descuberto pellos seus antepassados húa Sorte de

terras no Riacho chamado pella Lingoa da Terra piocã, ao pé do serrote que tem o mesmo nome; que confronta com a Serra Sapupara, […] a qual costumão sempre

plantar suas lavouras, e como de prezente lhe hé vindo a noticia delles Suplicantes

que alguns moradores desta Capitania os querem expulsar fora das ditas terras, e como elles Suplicantes sejam pobres, Se valem do Amparo e Piedade de vmerce como seu governador por tanto. Pedem a vmerce […] por data e Sismaria, meya legoa de terra de comprido, fazendo piam, na barra do rio Sapupara onde despeja, e faz Barra e o Rio Peocã […] que asim possam viver mais Suçegados, Sem que nin- guém os estorve, Nem os corram da dita parage e ditas terras. [grifos nossos] 36

[N. 21] Registro da data e sesmaria do principal da Aldeia Nova e os mais índios de

uma sorte de terras no pé da serra do Pitavary, concedida pelo Capitão-Mor Ma-

noel Francez, em 20 de abril de 1722 […] Diz o principal da Aldeya nova, e os mais indios da Aldeya, que elles pessuem a muitos annos humas terras donde tem suas

Bananeiras e plantam suas Lavouras, e como de prezente tem noticia, há pessoas

lhe querem pedir ditas terras por elles Suplicantes não terem dellas datta, que são ao

pé da serra do pitavary, e as fraldas da dita Serra, athe se topar com a datta dos indios de paupina em a Serra de pacatuba, e do dito pitavary athe a Serra da Sapu-

pára e todas as mais terras que nestes meios se acharem devolutas e desaproveitadas por tanto. [grifos nossos] 37

Antes do fim do modelo colonial de concessão de sesmarias, as terras dos aldeamen- tos e das vilas de índios tinham se tornado alvo de interesse político e jurídico (VALLE, 2009, p. 117). Nos dois registros temos um mesmo contexto: a tentativa dos índios de obterem uma “datta" de terra visando não as perderem para terceiros. Com o início das doações de sesmaria no fim da década de 70 do século XVII, essas populações indígenas se viram muito mais ameaçadas pela apropriação territorial colonizadora. Silva (2016) em tese sobre a política sesmarial no Ceará afirmou que os sesmeiros tinham conhecimento das normativas impostas pela Coroa portuguesa por meio da legislação complementar. Nesse sentido, vemos que na sesmaria de numero 20, Mathias Monteiro e os demais índios reivindicam uma ocupação his- tórica daquelas paragens, descoberta no tempo dos seus antepassados. Outra justificativa co- mum à época que foi empregada nas duas “datas" era a finalidade e o aproveitamento dado aquelas terras, ou seja, no caso através das plantações (lavouras). Enquanto que no numero 21, o Principal argumenta que as terras estavam devolutas ou desaproveitadas.

ARQUIVO PÚBLICO DO CEARÁ (Org.). Datas de Sesmarias do Ceará e índices das datas de Sesmarias: 36

digitalização dos volumes nos anos de 1920 a 1928. V. 03. Fortaleza: Expressa Gráfica / Wave Media, 2006. 2 CD-ROOM.

Idem 37

Desse modo, atualmente os índios Pitaguary constroem uma narrativa na qual utili- zam a data de sesmaria de 1722 para afirmar que aquele é um território histórico, há séculos habitados por ascendentes étnicos. Gostaria de ressaltar a importância ética e científica de não se corroborar fatos presentes partindo de documentos históricos. Podemos, sim, abordá-los como pistas, caminhos ou indícios como bem salienta Ginzburg (2003). Nesse mesmo sentido nos alerta João Pacheco (1999) para a impossibilidade e incoerência de falarmos em – tratan- do-se de índios do Nordeste e de análise documental – de território indígena no sentido atual que empregamos o termo e de ocupação, fixa, desse mesmo território. No entanto, se é um discurso formulado pelos próprios indígenas que ressignificam determinado documento, atri- buindo a ele narrativas e sentidos próprios, ele faz parte da própria etnicidade do grupo e, por- tanto, merece ser destacado.

Tenho objetivo menos de “buscar” uma história nos documentos mas muito mais de contestá-la, visto que o relato oficial é apenas uma via pela qual outras historicidades são su- primidas (CUNHA, 2004). Só assim, poderemos compreender as lógicas locais, dos atores envolvidos e, consequentemente, como serão reapropriados atualmente. As “verdades” oficia- lizadas nos documentos são sempre parciais, sócio-histórico-e-culturalmente produzidas. Ten- do em vista esses pressupostos, precisamos fazer o documento “falar”, tal como procedemos no trabalho de campo tradicional. Ou seja, em ambos os casos é necessário saber ouvir e dia- logar. No caso dos arquivos, é fundamental não esquecer, portanto, as condições de produção dessas vozes. Devemos tomá-las, também, como objeto de análise. Isso exige um investimen- to epistemológico que enxerga as relações e construções sociais como podendo ser observadas nos mais diversos âmbitos, lugares e tempos. Não posso negar que esse “outro campo” exige uma dinâmica e uma relação diferente com os dados. Os documentos, ao contrário da obser- vação participante, fornecem um acesso indireto ao seu objeto e a seus sujeitos. Acesso não menos importante ou privilegiado, diga-se de passagem, apenas diferente.

A segunda metade do século XIX é especialmente significativa para compreendermos o atual investimento étnico do povo Pitaguary. Além de diversos documentos, relatórios de províncias, matérias em jornais envolvendo os índios que habitavam aquela região, existe o registro de terra em cartório no ano de 1854, feito por Marcos de Souza Cahaiba Arco-Verde Camarão, de um “sítio denominado Pitaguary, pertencente aos índios”. Este era o nome que estava presente no banner da Escola Indígena de Ita-Ara (e no discurso local) como sendo o

primeiro cacique Pitaguary. E assim ele é considerado pelas lideranças do povo. Apresenta- mos, a seguir, a transcrição integral do referido registro territorial.

Termo de registro do sitio denominado Pitaguary pertencente aos Indios. Aos quatro

dias do mês de setembro do anno de nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo nes- ta Povoação de Maranguape, termo da cidade de Fortaleza do Ceará Grande em casas de minha residencia foi presente, digo, se me apresentarao Marcos de Souza

Cahaiba Arco-Verde Camarão com elle os mais Indios, dous exemplares do seo ter-

reno os quais são da maneira seguinte: Marcos de Souza Cahaiba Arco-Verde Cama- rão, Francisco de Sousa, Joaquim Manoel da Silva, Lucas Pinto, José Francisco de Morais, Antonio da Costa, Manoel dos Reis Cavalcante, Theodorico da Silva, Ma- noel de Sousa, Agostinho de Sousa, Antonio da Silva, José Dias Lopes, Manoel José Antonio, digo Ferreira Bitú, José dos Santos, Bras Ferreira de Sousa, José Antonio, Antonio da Rocha, Jacinto Lopes de Freitas, Antonio Ferreira, João dos Santos, João de Sousa, querem registrar o seo terreno sitio no lugar denominado Cabeceiras do

Rio Pitaguary, na Freguesia de Maranguape, Província do Ceará Grande, o qual

extrema, pela parte do Nascente pelo lombo do serrote com o sitio de Munguba, pela parte do Poente pelo lombo do serrote que divide as agoas para o rio Santo Antonio, pela parte do norte extremando com o Senhor Neutel Nourton de Alencar Araripe, na estrada que vai para o Sitio da Monguba pela parte do Sol com o mesmo senhor Neutel no meio da cadeira, após não sabermos ler, e nem escrever pedimos ao Ss. Jucundo Antunes de Alencar Rodovalho, este por nós fizesse e assignasse. Maran- guape quatro de setembro de mil oitocentos e cincoenta e quatro. 38

É interessante observar como os índios Pitaguary de hoje constroem sua etnicidade afirmando que seu primeiro cacique foi Marcos de Souza, quem deixou registrado suas terras. É importante também perceber como o grupo ressignifica e dá novos sentidos a esses docu- mentos, além de usarem-nos como distintivos étnicos de uma presença “tradicional" na terra.

Maurício: […] ouvia muito meu pai, minha mãe, meu avô né que foi em-

bora com 97 anos. Eles falavam, eles ja falavam dessa terra né. Que até que a nossa terra é uma terra tradicional. Ela foi uma terra tomada assim… Mas porque quando os doutor chegaram a gente ja existia, os nossos antepassados ja existiam e eles ha- bitaram e tomaram da gente, o qual a gente era obrigado a trabalhar pra eles. E ja deixaram essa terra no tempo da guerra que teve né, na disputa pela terra, que foi onde ele deixou essa nossa terra registrada no cartório de Maranguape.

Cayo: Ah deixou? E ele era índio?

Maurício: Deixou… Ele era índio né, porque ele foi o cacique aqui né, do

Pitaguary. O qual as vezes o povo pergunta, assim, Marcos de Souza Arco-Verde Camarão… Era porque ele era comedor de pitu. Aqui na nossa terra aqui tinha muito pitu ne, que é aqueles camarão grandão. Então assim, nossa historia aqui é uma his- toria verídica, real, ela não é inventada né. Ela é uma historia que foi deixada por nossos antepassados e hoje vai pra nos, e de nós passa pros nossos filhos, netos… E ai vai adiante… (Maurício - cacique - Olho D’água - 10/05/17)

Ou seja, se um sitio com o nome Pitaguary foi registrado na região onde hoje eles es- tão ocupando, quem registrou é considerado o primeiro cacique. Além de que isso é usado como comprovação de uma “história verdadeira”, “deixada pelos antepassados” - bem como

ARQUIVO MORTO DE FORTALEZA. Registro das terras Pitaguary de 1854. Maranguape: Livro de registro 38

uma ocupação territorial “verdadeira”, tradicional. Dessa forma, vemos no discurso uma ten- tativa de gerar uma autenticidade indígena para o grupo.

Entretanto, o que me importa aqui, tanto no que se refere à sesmaria quanto ao registro de terra Pitaguary, é como esses documentos se tornaram elementos centrais no processo de identificação indígena em Santo Antônio do Pitaguary. Principalmente durante seu processo de etnogênese, no início da década de 90 do século XX. Momento em que um seminarista chamado Carlos Alencar Ratts morador da região, encontrou o referido registro de terra e as- sim começou a desenvolver uma prática de mediação (VALLE, 2015) em prol da emergência étnica do grupo. A partir desse documento uma série de agenciamentos foram desenvolvidos pelos indígenas na construção da etnicidade. Nesse sentido, a sesmaria de 1722 e o registro de terra de 1854 foram elementos chave para elaboração de uma memória social calcada em um território histórico. Esses dois documentos forneceram contornos simbólicos para o território, ao circunscreverem geograficamente e culturalmente essa região que hoje os Pitaguary ocu- pam.

Esses dois documentos administrativos apontam para a presença e para dinâmicas in- dígenas na região conhecida como Santo Antonio de Pitaguary (ou Potiguary, ou mesmo Poti- vary ou até Aldeia Nova). Adianto que diversos relatórios provinciais do século XIX, os quais apresentarei à frente, voltam a citar uma região com essa mesma denominação. Neles, o “San- to Antonio do Pitaguary” aparece muitas vezes como um “sítio” e até mesmo uma serra, no município de Maranguape. Maranguape é o município limítrofe de Pacatuba e de Maracanaú, onde atualmente os Pitaguary habitam. Apoiando-me em Weber (2009), a etnicidade ultrapas- saria ideias como a de raça ou cultura, estando muito mais relacionada a um sentimento subje- tivo de pertença ou origem comum - o que, consequentemente, definiria um grupamento étni- co para o autor, juntamente com valores, costumes, uma memória coletiva etc. Dessa forma, não cabe a mim, antropólogo, retroceder no tempo para somente refazer ou comprovar uma ocupação historia desses índios na região - questão que não se delinearia como uma questão, digamos, antropológica.

Nos registros documentais que encontrei, são frequentes as citações a um poderoso pro- prietário de terras: Neutel Norston de Alencar Araripe. Não esqueçamos que já no registro de terras de 1854, feito pelo primeiro cacique do povo Pitaguary, Marcos de Souza Cahaiba