• Nenhum resultado encontrado

Levantando aldeia Pitaguary: entre mediações indigenistas, missionárias e agencia mentos indígenas

Mapa 2: Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) Fortaleza, Maracanaú e Pacatuba em destaque Fonte: IPE-

1. TERRITORIALIZAÇÃO, MEDIAÇÃO E INVESTIMENTOS ÉTNI COS: as dinâmicas sociais e políticas Pitaguary

1.4 Levantando aldeia Pitaguary: entre mediações indigenistas, missionárias e agencia mentos indígenas

As emergências étnicas indígenas no Ceará, as quais ganharam corpo nos anos de 1980, e, consequentemente, a formação de um movimento indígena no estado, estão funda- mentalmente ligadas, de início, à mediação direta e intensiva da Igreja Católica a partir de suas diferentes pastorais, de seus agentes missionários e indigenistas leigos. O próprio proces- so de organização social Pitaguary contou com o apoio de um seminarista, chamado Carlos Alencar Ratts.

Para melhor compreendermos a atuação da Igreja Católica, no que tange ao apoio aos povos indígenas no Ceará, temos que levar em conta um contexto nacional e internacional da situação e diretrizes católicas. Pinheiro (2012) destaca que a “opção preferencial pelos po- bres” desenvolvida pela Igreja Católica brasileira, remonta a atuação da Ação Católica no Brasil (ACB). Esta, diga-se, estava ligada a Ação Católica (AC) em escala global. A Ação Ca-

tólica foi um movimento iniciado no pontificado de Pio XI, em 1922, com os objetivos de de- fender os princípios e valores católicos, tentar recuperar a influência sobre os leigos, exercer a piedade, etc. (SOUZA, 2006; PINHEIRO, 2012). Nesse sentido, quando a AC brasileira se constituiu, em 1935, seguiu os moldes das diretrizes italianas. Os primeiros anos da ACB fo- ram marcados por uma ação formativa bastante acentuada - caracterizada por levar a doutrina social da Igreja às escolas, universidades, fábricas e sindicatos, estimulando assim a criação de movimentos sociais de inspiração cristã (SOUZA, 2006). “Uma das maiores contribuições da Ação Católica à sociedade e à Igreja é a militância nos diferentes ambientes da sociedade e da Igreja, com o intuito de transformá-los em condições mais justas e democráticas” (idem, p. 53).

Contudo, em 1950 a ACB se reorganizaria nos termos franceses da Ação Católica, as- sumindo uma postura de reforma social (PINHEIRO, 2012). Alguns anos antes, em 1947, o padre cearense Hélder Pessoa Câmara foi nomeado como assistente eclesiástico da Ação Ca- tólica Brasileira , participando efetivamente dessas mudanças na Igreja Católica. Ele também 54 esteve à frente da criação da Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) em 1952, na qual se tornou secretário-geral, e participou do primeiro encontro do Conselho Episcopal La- tino-Americano (CELAM), em 1955. Segundo Pinheiro (2012), “é importante notar o lugar ocupado por Câmara, pois ele se tornaria uma figura central na mobilização indígena de base que mais tarde teria lugar no Nordeste brasileiro, em especial no sertão do Ceará” (p. 110). Conforme a autora, ao levantar a bandeira de “opção pelos pobres”, enquanto arcebispo de Olinda, Câmara gradualmente se tornaria uma referência para os movimentos de luta pela ter- ra e, posteriormente, para aqueles engajados nos processos de identificação indígena no Cea- rá.

Se por um lado o CELAM e a ACB foram fundamentais para a criação das CEBs, por outro lado o CNBB sancionou formalmente novas instituições através das quais os segmentos sociais críticos dos fiéis poderiam se mobilizar (CAVA, 1988). Visando uma ação pastoral missionária com os povos indígenas o CNBB criou o CIMI (Conselho Indigenista Missioná- rio) em 1972, e debruçando-se sobre a questão da reforma agrária criou em 1975 a Comissão de Terras (posteriormente denominada de Comissão Pastoral da Terra - CPT). Estas organiza-

Dom Helder Câmara (1909 - 1999) foi nomeado bispo em 1952 e em 1964 se tornou arcebispo de Olinda e 54

ções formaram uma frente de apoio político ativo da Igreja Católica aos povos indígenas bra- sileiros e aos grupos camponeses, principalmente no que tange às questões fundiárias. Impor- tante ressaltar também que essa ação da Igreja não foi exclusiva para o Ceará nem para o Nordeste, na verdade foi um movimento com reverberações nacionais (em diálogo com dire- trizes internacionais). No caso do Ceará, em sua dissertação sobre os Tremembé, Valle (1993) ressalta algo importante que poderíamos estender para muitas outros povos indígenas que se investiram politicamente a partir da presença missionária, inclusive os Pitaguary.

A prática missionária não “inventou” a etnicidade, nem os processos de categoriza- ção, nem os modos de organização étnica que existem na Almofala. No entanto, os missionários vieram redefinir o alcance dos objetivos de mobilização étnica [...]. A prática e ideologia missionária vieram dar esteio para a consolidação de certos “inte- resses” coletivos dos Tremembé. (VALLE, 1993, p. 71)

Veremos, por exemplo, que Fortaleza e região metropolitana contava com o apoio da Arquidiocese de Fortaleza, enquanto a Diocese de Crateús (composta por paróquias desmem- bradas das dioceses de Sobral e Iguatu) dava suporte a treze municípios (PALITOT, 2010) . 55 Lima (2010), destaca que no perímetro de atuação da Arquidiocese de Fortaleza e da Diocese de Crateús estão localizados a maioria dos povos indígenas no Ceará, sendo todos eles carac- terizados pela mediação de agentes pastorais, missionários ou indigenistas leigos no processo de emergência étnica.

Contaram com a atuação direta da Arquidiocese de Fortaleza os Tapeba (Caucaia), os Pitaguary (Maracanaú e Pacatuba), os Jenipapo-Kanindé (Aquiraz) e os Anacés (Caucaia e São Gonçalo do Amarante). Assistidos pela Diocese de Crateús foram os Potiguara (Crateús, Monsenhor Tabosa, Tamboril e Novo Oriente), os Tabajara (Cra- teús, Monsenhor Tabosa, Tamboril, Poranga e Quiterianópolis), os Kalabaça (Cra- teús e Poranga), os Kariri (Crateús) e os Tupinambá (Crateús) (LIMA, 2010, p. 137). Dessa forma, a Igreja influenciada pela Teologia da Libertação e com a orientação de “apoio aos pobres”, tinha uma forte perspectiva de ação social (PALITOT, 2010; OLIVEIRA, 2013; PINHEIRO, 2012; LIMA, 2010; BARREIRA, 1992). Neste contexto, o Nordeste brasi- leiro se constituiu como lócus privilegiado de ação, por ser genericamente representado a par- tir da sua exclusão social e pobreza. Alguns personagens são centrais nesse processo: além de Dom Hélder Pessoa Câmara, temos também Dom Antônio Batista Fragoso, bispo da diocese de Crateús, e Dom Aloísio Lorscheider, arcebispo de Fortaleza (depois viria a ser nomeado cardeal). No campo de agentes indigenistas e missionários leigos temos: o seminarista Carlos

“A história das emergências [no Ceará] envolve a agência de diversos agentes religiosos ligados a instituições 55

católicas diversas (Maria Amélia ligada ao CIMI, por exemplo, na época), os agentes ligados a Diocese de Cra- teús, etc… Quero dizer com isso que os “investimentos" e ações indigenistas são plurais e diferenciados”. (Co- municação pessoal, Carlos Guilherme do Valle - 09/01/2018).

Alencar Ratts (entre os Pitaguary), padre suíço Fredy Kunz, mais conhecido como Padre Al- fredinho, e a missionária Margaret Malfliet (ambos inseridos na região de Crateús), a missio- nária leiga Maria Amélia Leite (entre os Tremembé), o sociólogo indigenista José Cordeiro e a agente pastoral católica Maria de Lourdes Luz (entre os Jenipapo-Kanindé), entre outros. É curioso perceber como no Ceará, apesar da forte atuação da Igreja na mobilização indígena, o CIMI (Conselho Indigenista Missionário) não teve uma atuação maior como em outros esta- dos do Nordeste.

Grosso modo, o campo da mobilização étnica e de ação indigenista no Ceará teve seu germe em um período e contexto de redemocratização e fortalecimento dos movimentos soci- ais, bastante apoiados pela Igreja Católica. Neste cenário, alianças sociais e políticas engen- draram, pelo menos nessas primeiras décadas, um tipo principal de agente mediador: os reli- giosos. Segundo Pinheiro (2012, p. 117), “as categorias de índio e indígena só se tornaram plenamente operacionais após a chegada de indivíduos como Maria Amélia Leite, no final da década de 1980, e com a presença da FUNAI, já na década de 1990. Até então, uma referência direta à indianidade dessas pessoas havia aparecido somente no trabalho de alguns apoiadores da chamada causa indígena”.

Dessa forma, os primeiros investimentos étnicos no Ceará começaram ser impulsionados ainda no início da década de 1980 na região metropolitana de Fortaleza, a partir do trabalho da Arquidiocese de Fortaleza, sob arcebispado de Dom Aloísio Leo Arlindo Lorscheider (1924-2007). Dom Aloísio Lorscheider foi eleito arcebispo de Fortaleza pelo Papa Paulo VI no ano de 1973, e cardeal no ano de 1976, tendo também participado do Concílio Vaticano II, sido escolhido presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) por duas vezes consecutivas, de 1971 a 1975 e de 1975 a 1978 e foi um dos dirigentes do CELAM e da Cáritas Internacional (LIMA, 2010). É a partir de sua posição institucional na Arquidiocese de Fortaleza que ele passa a trabalhar com os povos indígenas que estavam se reivindicando et- nicamente, sobretudo aquelas dentro da área de atuação pastoral. Para os Pitaguary, Lorschei- der é lembrado como uma figura de importância elementar para o grupo. Dentre as formas de apoio mais tangíveis, destacamos como ele deu visibilidade às etnias no Ceará em um mo- mento de identificação e, consequentemente, estigmatizações (como a ideia de que não existi- am mais índios no estado, visto que estariam “misturados”). Da mesma forma, a atuação da Arquidiocese visava a preservação e o resgate da “cultura tradicional”, imbuídos de uma

perspectiva culturalista de resgate da história e da cultura do povo (PINHEIRO, 2012; AIRES, 2008).

A arquidiocese de Fortaleza inicia sua atuação junto aos indígenas na década de 1980, través da Equipe de Assessoria às Comunidades Rurais – EACR, junto aos Tapeba (BARRETTO FILHO, 1992). Extinta a EACR, ainda nesta década, surge a Equipe Arquidiocesana de Apoio à Questão Indígena, conhecida como Pastoral In- digenista – PI. Esta para efeitos legais, trabalhistas e de captação de recursos, junta- mente com o Centro de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos – CDPDH, fun- cionou ligada à Cáritas Arquidiocesana. Na década de 1990, o CDPDH instituciona- liza-se, tornando-se independente da Cáritas e a PI transforma-se em Temática Indi- genista – TI do CDPDH, atacando o conselho de Dom Aloísio Lorsheider, Arcebispo de Fortaleza na época, devido ao caráter de defesa dos direitos humanos presentes nas duas equipes. No ano de 2000, a PI volta a funcionar na Arquidiocese de Forta- leza. A pedido de João Acioli, o então diretor do CDPDH, inicia-se um processo de parceria e transição da TI, com todas as suas atividades e projetos, para a PI. Em 2004 a PI se desarticula, encerrando o processo de transição. Atualmente a ação da arquidiocese é desenvolvida apenas pelo CDPDH. [...] Na década de 1990 foi criada a Pastoral Raízes Indígenas na Diocese de Crateús. A pedido de Dom Fragoso, bispo desta diocese, a missionária belga Margarete Malfliet iniciou um trabalho pastoral de resgate e conscientização das raízes indígenas na área de atuação desta diocese. Recentemente, a Pastoral Raízes Indígenas, acreditando que cumpriu com seu obje- tivo, solicitou a vinda do Conselho Indigenista Missionário – Cimi – para a Diocese, visando que este assuma o acompanhamento dos povos indígenas da região. (LIMA, 2009, p. 248)

A Arquidiocese de Fortaleza começou a trabalhar com os Tapeba em 1984, através da Equipe de Apoio às Comunidades Rurais (EACR) (BARRETO FILHO, 1992). A Equipe tra- balhou em Caucaia, primeiramente, com a população indígena e não indígena que moravam nas imediações do Rio Ceará - o que levou a “equipe arquidiocesana à assessorar a formação da primeira organização política institucional em que os Tapebas se inseriram (Associação das Comunidades do Rio Ceará - ACRC), em 1985, que congregava Tapebas e trabalhadores ru- rais da região” (TÓFOLI, 2010, p. 60). Como uma consequência direta do apoio que a Arqui- diocese deu ao processo de mobilização étnica Tapeba, está o reconhecimento público daquela coletividade enquanto sujeitos de um conjunto de direitos. Para tanto, a equipe arquidiocesana passou a promover campanhas de sensibilização da população regional em torno da presença de direitos indígenas.

Foi neste contexto que em 1986, membros da EACR procuraram pessoalmente em Brasília o então Ministro da Reforma e Desenvolvimento Agrários, Nelson Ribeiro, para in- formá-lo sobre a situação em que viviam os Tapebas no município de Caucaia e para solicitar uma urgente atuação do MIRAD (Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário) na regularização das terras daquele grupo (BARRETO FILHO, 1992). Naquele mesmo ano, no- vamente os membros da equipe arquidiocesana procuraram o professor João Pacheco de Oli- veira, convidando-o para realizar um trabalho antropológico com os então denominados índi-

os Tapeba. As redes construídas pela EACR/Arquidiocese de Fortaleza, foram bastante impor- tantes para a atuação do Projeto Estudo sobre Terras Indígenas no Brasil (P.E.T.I), coordenado por João Pacheco de Oliveira, no Ceará - o qual coordenou dois orientandos seus em trabalhos com povos em processo de identificação indígena: Henyo Barreto (que fez pesquisa entre os Tapeba) e Carlos Guilherme do Valle (que fez pesquisa entre os Tremembé). Portanto, a Ar- quidiocese de Fortaleza foi, ademais, fundamental para chamar a atenção da universidade e da sociedade civil para a existência indígena no Ceará.

No decorrer da década de 1980, com o apoio da Assessoria às Comunidades Rurais da Arquidiocese de Fortaleza (EACR) junto aos Tapeba (BARRETO FILHO, 1992) e, pouco de- pois, o apoio por parte de missionários leigos aos Tremembé (VALLE, 1993), os Pitaguary começam a se organizar etnicamente em termos do que pode ser também designado como et- nogênese. Por volta de 1988 e 1989, inicia-se o processo de articulação étnica Pitaguary, que começa, de fato, fora do que viria a ser seu território. Por conta do histórico de violência, ex- ploração e pobreza na região, como estou explorando ao longo deste capítulo, muitas famílias haviam migrado para municípios vizinhos. É o caso do bairro Piratininga, em Maracanaú - onde inicia-se os primeiros movimentos em relação à memória indígena Pitaguary. O cenário local de “emergência” Pitaguary, portanto, se deu em um momento onde outros investimentos étnicos estavam se processando no Ceará. Para Banton (1979), o surgimento de novos grupos reivindicando os mesmos interesses que os outros, expressando claramente sua oposição à um grupo dominante, reconhecendo uma identidade étnica comum, além do fato do surgimen- to de grupos de referência - os quais têm uma maior visibilidade e assim “difundem” de ma- neira mais massiva sua luta - faz com que se construa uma nova consciência identitária. Dentro do processo de mobilização étnico-política Pitaguary, dois personagens tiveram uma centralidade incontestável: o ex-seminarista e professor Carlos Alencar Ratts e o primei- ro cacique do povo, Francisco Daniel de Araújo Lima. Segundo Magalhães (2007), Carlos Alencar é recorrentemente lembrado nas narrativas locais como aquele que fez as coisas revi-

ver, que estava no tempo da história verdadeira, foi o professor Alencar quem começou a luta. O professor Alencar era, na época, um seminarista fortemente influenciado pela Teologia

da Libertação que nos seus estudos para tornar-se padre se engajou na questão indígena, mais especificamente entre os Pitaguary - já que nasceu na região, convivendo com muitos sujeitos que iriam iniciar os investimentos étnicos Pitaguary.

Figura 12: Da esquerda para direita: Jeová, Venâncio (pai de Jeová) e Carlos Alencar. Reprodução: www.escola- chui.blogspot.com.br. S/a.

Pinheiro (2012), esclarece que ele era bastante aceito na região visto que além de ser um religioso, era professor e morador do local, o que lhe dava legitimidade com diversas famílias. Sua estratégia era similar a de outros missionários que atuavam no estado na mesma época, sobretudo Maria Amélia Leite: ir de casa em casa, de localidade em localidade explicando sobre a causa indígena, fomentando organizações políticas e étnicas, articulando e discursan- do sobre a defesa da terra, da mesma forma que gravava em audio as histórias dos “mais ve- lhos”, dentre outras práticas de viés culturalista. Joceny Pinheiro (2012), que durante sua pes- quisa de mestrado se aproximou de Carlos Alencar, relata que a mediação desenvolvida por ele girava em torno da sua atuação dentro e fora da comunidade - o que facilitava a circulação de documentos, bem como de noticias sobre os outros povos indígenas que estavam se articu- lando no Ceará, conseguindo apoio e visibilidade para eles, organizando o conselho comunitá- rio, articulando apresentações/performances dos Pitaguary em escolas e praças públicas, e até mesmo estando envolvido na eleição de Daniel à cacique.

Madalena: E por também ser bem dizer criado por índio… Porque ele, na minha

caçava de baladeira com meus irmãos, vivia praticamente lá em casa, só ia pra casa dormir. E ai ele teve uma oportunidade de estudar mais, já que a tia dele, a mãe dele, tudo era professora. E nós que não tivemos. Porque a gente era uma família muito humilde, muito carente mesmo. Aquelas pessoas que viviam mesmo da agricultura, da caça e da pesca… (Madalena - cacique - Santo Antônio - 10/08/2017).

É importante destacar, como já fez Pinheiro (2012) e Magalhães (2007), que Carlos Alencar Ratts tinha familiaridade com os estudos antropológicos e etnológicos produzidos sobre os indígenas do Nordeste brasileiro. O pajé Pitaguary (Barbosa), sempre se refere ao

professor Alencar como o nosso primeiro antropólogo. Outros, como a liderança e hoje caci-

que Madalena o chamam de “nosso historiador”. Da mesma forma, foi surpresa para mim quando ao ler o Atlas das terras indígenas do Nordeste (1993), oriundo de um projeto (PETI - Projeto de Estudo sobre Terras indígenas do Brasil) coordenado por João Pacheco de Oliveira, encontrar, dentre os colaboradores na elaboração de verbetes, a presença de Carlos Alencar Ratts que tinha produzido dados para o verbete Pitaguary e representava o MAPI (Movimento de Apoio aos Índios Pitaguary). Organizado por Alencar e pelas lideranças da época (entre elas, Daniel), o MAPI foi uma entidade de apoio que fomentou a articulação interna Pitaguary e com outros povos do estado.

Diferentes foram os rumos que as organizações missionárias e indigenistas leigas (vincu- ladas à Igreja) tomaram no Ceará. O MAPI durou apenas alguns anos após o inicio da mobili- zação Pitaguary, a AMIT se institucionalizou, enquanto a EACR sofreu profundas transforma- ções (tornando-se Pastoral Indigenista e, posteriormente, CDPDH) (PALITOT, 2010). Palitot também destaca o caráter personalista que a ação missionária tomou no Ceará, onde essas or- ganizações muitas vezes se confundiam com pessoas especificas. Como mostrei, a Arquidio- cese de Fortaleza, por exemplo, era vista através da figura do Dom Aloisio Lorscheider, de José Cordeiro e de Maria de Lourdes, a Diocese de Crateús de Dom Fragoso e da Irmã Mar- garet, etc. Enquanto o MAPI e a AMIT eram praticamente sinônimas de Carlos Alencar Ratts e Maria Amélia Leite, respectivamente.

Antes mesmo de 1993, Carlos Alencar já havia iniciado sua atuação como agente medi- ador entre os Pitaguary. O conhecimento acadêmico que ele tinha, facilitou seu movimento de trabalhar com as narrativas e memórias orais dos troncos velhos - termo utilizado pelos indí- genas para se referirem àqueles que nasceram e se criaram na terra ou que são filhos, netos, desses "mais antigos" (também chamados de raízes) - que habitavam a região.

Ceiça: o Alencar era um pesquisador lá de Maracanaú, mora bem próximo la dos

pesquisa, na época. Pesquisa do trabalho dele… Dos Pitaguary. Ai começou a identi- ficar os Pitaguary. Ali, os que ficaram dentro da aldeia e os que estavam morando nos arredores de Maracanaú. E começou a dizer, “olhe, vocês tem os parentes de vocês lá…. tem um movimento se levantando no estado… vocês deveriam procurar, vocês são indígenas ta aqui a história.”. E ai o pessoal não acreditava muito. Mas tinham os velhos lá dentro da aldeia que estavam silenciados porque tinham perdido todo o território ne, na época tinha perdido o território pro pessoal que chegava la comprando terra, que ate hoje ainda tem… A polícia… Tinha a secretaria de agricul- tura que funcionava dentro da terra, que era chamado de Estado [ênfase]. É o Esta- do! Então tinha muito índio que trabalhava né, e tinha muito medo… (Ceiça - lide- rança - Santo Antônio - 12/04/2017)

Ana Clécia: O Carlos Alencar ele apareceu bem no inicio. Ele começou pesquisan-

do. Eu acho que ele… O reconhecimento dessa etnia, Pitaguary, tem uma boa parti- cipação dele. Porque ele começou a fazer uma pesquisa… Os índios ja estavam as- sim… Por conta da luta dos Tapeba ne, começando a se… Porque assim, na época os índios ja começavam a querer ocupar aqueles espaços ne. Na época que o Carlos Alencar começou a fazer a pesquisa dele, ele começou a trazer muita coisa que era assim, era como se você quisesse acreditar mas ao mesmo tempo você tivesse uma duvida “será que é isso mesmo? será que índio é gente mesmo? será que ainda exis- te?". Eu mesma eu duvidei muito! Eu não acreditei que existia… “Existia direito pra índio? Não existe!”. Ate porque, eu mesma me interroguei mesmo, eu olhava no espelho e ficava “e eu sou índia? porque que eu sou índia?“. Eu não entendia porque que eu era índia. Então assim, o Alencar começou a fazer a pesquisa dele e essa pes- quisa dele fez muitas descobertas que trouxe pros índios a certeza, a certeza que eles