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6 AQUISIÇÃO DO SEGMENTO

6.3 Demoção implicacional de traços - Bonilha (2003)

Em seu trabalho, a autora propõe uma releitura, via OT, da análise proposta por Motta (1996), com base em dados de desvios fonológicos. A análise propõe que as crianças que apresentam desvios fonológicos possuem uma maior dificuldade na demoção de restrições conjuntas, criadas com base nas subhierarquias universais – proposta desenvolvida no capítulo 4 desta tese.

Dos 25 sujeitos analisados por Motta (op.cit), todos apresentaram exemplos das quatro classes de sons quanto ao modo de articulação, 4 não apresentaram nenhuma produção de fricativas e 6 não apresentaram realização de líquidas.

Com base na aquisição dos segmentos consonantais dos referidos sujeitos, a autora propôs um quadro de relações implicacionais de marcação de traços.

Traços não marcados

Traços marcados Classe de som

[-sonoro] [+sonoro] plosivas

[+sonoro] [-sonoro] fricativas

[-contínuo] [+contínuo] obstruintes e soantes [+anterior] [-anterior] fricativas, nasais e

líquidas [-aproximante] [+aproximante] soantes

[coronal] [dorsal] obstruintes e soantes

Labial [dorsal] plosivas

Quadro 03 – Traços marcados e não marcados de acordo com classes de som (Mota, 1999)

Tendo em vista uma relação implicacional entre os traços, a aquisição do traço marcado implica a aquisição do traço menos marcado. Bonilha (2003), tendo por base os achados de Motta (1996), classifica a marcação do sistema consonantal em quatro níveis, conforme o quadro 04:

1º nível 2º nível 3º nível 4º nível Segmentos não

marcados parcialmente Segmentos marcados

Segmentos

marcados Segmento muito marcado

/p/ /b/ /g/ /x/ /t/ /d/ /S/ /m/ /k/ /Z/ /n/ /f/ /¥/ /v/ /r/ /s/ /z/ /ñ/ /l/

Quadro 04 – Classificação de níveis de marcação para o sistema consonantal do PB

Aplicando a OT aos dados de Motta (1996), Bonilha (2003) propõe que a hierarquia inicial, que responde pela aquisição dos segmentos não marcados /p, t, m, n/, é constituída conforme (1):

(1)

H1={Marcação} >> {Fidelidade} >> {*[+sonoro], *[-sonoro], *[+vocóide], *[-vocóide], *[+aproximante], *[-aproximante], *[-contínuo], *[+contínuo], *[coronal], *[labial], *[dorsal], *[+anterior], *[-anterior], *[+soante], *[-soante]}

Observe-se que essa hierarquia já apresenta a demoção de restrições como *[dorsal] e *[+aproximante] porque a autora não considera a atuação de diferentes restrições para vogais e consoantes, como *Place Dorsal V e *Place Dorsal C, utilizadas por Bernhardt & Stemberger (1998)50.

Na verdade, a própria configuração fonética dos traços, que lhes deu origem, sugere que os mesmos traços se referem a segmentos vocálicos e consonantais. A diferença parece residir apenas na combinação dos movimentos articulatórios no aparelho fonador.

A utilização da geometria de traços proposta por Clements & Hume (1995) fazia necessária essa distinção, uma vez que, conforme a proposta, havia uma configuração de traços para os segmentos consonantais, com o nó Ponto de C, e outra configuração para o sistema vocálico, com a associação do nó vocálico ao nó Ponto de C.

Sob o enfoque da OT, vogais e consoantes possuem a mesma representação, ou seja, restrições de marcação de traços demovidas abaixo de restrições de fidelidade; são também representadas pela existência de subhierarquias universais que constituem a gramática. Com esse pressuposto, a produção de uma palavra infantil como tatá [ta´ta] envolve a demoção da restrição *[coronal] – para a emergência de [t] – e *[dorsal] – para a emergência de [a]. Conforme Bonilha (2003), a princípio, não se concebe que as restrições de marcação estejam voltadas apenas a um tipo de segmento, é o conjunto dessas restrições, na verdade, que constituem os segmentos na OT.

Considerando a demoção precoce das restrições individuais, para que os estágios de aquisição do sistema consonantal possam ser estabelecidos, Bonilha (2003) propõe que restrições conjuntas51 estejam militando na aquisição, proibindo a realização de segmentos mais marcados, conforme (2):

50 *Place Dorsal V: vogais não devem apresentar ponto de articulação dorsal; *Place Dorsal C: consoantes não devem apresentar ponto de articulação dorsal.

(2)

[*[+sonoro] & *[dorsal] & [-vocóide]](seg)

[*[+contínuo] & *[labial] & [-vocóide]](seg)

[*[+sonoro] & *[labial]& [-vocóide]](seg)

As restrições, exemplificadas em (2), estariam ranqueadas, conforme (3)52, proibindo a realização de segmentos como /g/, /f/ e /b/, enquanto as produções de /p/ e /t/ são efetivamente realizadas:

(3)

Input/output [*[+sonoro] & *[dorsal]](seg)

[*[+contínuo]& *[labial]](seg) [*[+sonoro] & *[labial]](seg)

Fidelidade *[+sonoro], *[-sonoro], *[+vocóide], *[-vocóide],

*[+aproximante],*[-aproximante], *[-contínuo],

*[+contínuo], *[coronal], *[labial], *[dorsal], *[+anterior], *[-anterior], *[+soante], *[-soante] /pa/ [´pa] * [´ta] *! /baba/ [´ba.ba] *!* * [´ta.ta] ** * /faka/ [´fa.ka] *! [´ta.ka] * *

De acordo com a autora, as restrições demovidas em (3) apresentam relação de dominância, pela existência de subhierarquias universais. Essas amparam o aspecto não-marcado de alguns segmentos, garantindo que, apesar de diferentes inputs, a ordem de aquisição entre alguns segmentos seja a mesma para línguas distintas. Observe-se (4): (4)

H1={Marcação} >> {Fidelidade} >> {{*[+sonoro]>> *[-sonoro]}, {*[+vocóide]>>*[-vocóide]}, {*[+aproximante]>>*[-aproximante]}>>{*[-contínuo]>>*[+contínuo]}, {*[coronal]>>*[labial]>>*[dorsal]}, {*[+anterior]>>*[-anterior]}, {*[+soante]>>*[-soante]}}

Observe-se que a proposta da existência de subhierarquias universais poderia ser questionada pelo fato de, nas primeiras produções, o traço [dorsal] já se fazer presente na realização do segmento vocálico /a/, assim como o traço [+contínuo], por exemplo. É

52 Nesse tableau, assinalou-se apenas uma marca de violação no último estrato, tendo em vista que são muitas as restrições violadas por cada candidato analisado. Como o número de violações desse estrato não altera a

preciso, pois, um mecanismo que corrobore, de fato, a existência dessas subhierarquias na gramática. O acionamento de restrições conjuntas constituídas por restrições que estão ranqueadas acima nas subhierarquias universais parece uma possibilidade. Note-se que as primeiras plosivas a serem adquiridas - /p/ e /t/ - apresentam os traços [coronal], [labial] e [-sonoro], não acionando, desta forma, a criação de uma restrição conjunta do tipo *[[labial, -sonoro]](seg) e *[[coronal, -sonoro]](seg), que não são constituídas por restrições ranqueadas acima nas subhierarquias.

As subhierarquias universais ficam evidentes, pois, pelo acionamento das restrições conjuntas que, justamente, ativam restrições ranqueadas mais acima nas subhierarquias universais, ou seja, uma vez constatada a militância de uma restrição conjunta como [*[+sonoro] & *[dorsal]](seg), pode-se inferir subhierarquias universais conforme (5).

(5)

{*[+sonoro]>>*[-sonoro]}

{*[dorsal]>>*[labial]>>*[coronal]}

Com base nessa proposta, Bonilha (2003) explicita o ordenamento na aquisição segmental de sujeitos com desvios fonológicos, referidos por Mota (1996), utilizando a Teoria da Otimidade. Observe-se (6):

(6)

1º) aquisição de segmentos não marcados - /p, t, m, n/ Restrições conjuntas não militam na aquisição dos mesmos.

2º) aquisição de segmentos parcialmente marcados - /b, d/, /k/, /f, v, s, z/, /ñ/ e /l/

Restrições conjuntas que militam na aquisição desses segmentos apresentam uma restrição que está ranqueada acima nas subhierarquias universais.

3º) aquisição de segmentos marcados - /g/, /S, Z/, /¥/ e /r/

Restrições conjuntas que militam na sua aquisição apresentam duas restrições que estão ranqueadas acima nas subhierarquias universais.

4º) aquisição de segmentos muito marcados - /x/

escolha do candidato ótimo, considerando as restrições que estão ranqueadas mais acima, optou-se por assinalar apenas uma marca *.

A restrição conjunta *[+aproximante, +contínuo, dorsal] é constituída por três restrições que estão ranqueadas acima em suas respectivas subhierarquias.

Portanto, (6) vem confirmar a proposta de que as crianças com desvios fonológicos apresentam dificuldades na demoção de restrições conjuntas constituídas por restrições que estão ranqueadas acima nas subhierarquias universais.

Conforme já salientado no capítulo 4, a proposta de que restrições conjuntas são potencialmente universais mantém a similaridade existente entre o sistema fonológico de uma criança com aquisição normal e de uma criança com desvios fonológicos. A diferença entre os dois sistemas reside no fato de que determinadas restrições conjuntas permanecem ranqueadas acima na hiearquia da criança com desvios por mais tempo do que permanecem na aquisição fonológica normal.

Cabe referir aqui uma outra visão dada ao funcionamento de restrições que envolvem traços fonológicos na aquisição da linguagem. Conforme Matzenauer (2003), a aquisição das fricativas coronais pode ser explicitada ao se considerar a criação de restrições de coocorrência de traços que estão latentes na GU. A criação dessas restrições não possui, pois, relação com restrições que estejam ranqueadas acima nas subhierarquias universais, mas se constitui em um desmembramento de uma determinada restrição a qual a autora classifica como cardeal. As restrições de coocorrência *[coronal, - anterior] e *[coronal, + anterior] estariam latentes na GU, vinculadas à restrição cardeal *[coronal]. Ainda, conforme a autora, também haveria uma subhierarquia entre as restrições de coocorrência que são latentes na gramática, ou seja, restrições que existem como uma subdivisão dentro da subhierarquia universal, constituindo uma nova subhierarquia. Observe-se a diferença existente entre a proposta de Matzenauer (2003) e a defendida no capítulo 4 do presente trabalho, em (7).

(7)

Restrições latentes (Matzenauer, 2003)

Subhierarquia universal de ponto de articulação

H’ = {*[dorsal]>>*[labial]>>[*coronal]} Restrições de coocorrência latentes em H’

H’ = {*[dorsal]>>*[labial]>>{*[coronal, -anterior]>> *[coronal, +anterior]}}

Restrições potenciais Subhierarquias universais

H’ = {{*[dorsal]>>*[labial]>>[*coronal]}, {*[-anterior]>>*[+anterior]}, {*[+sonoro]>>*[-sonoro]...}}

Restrições de coocorrência potenciais53

H’ = {*[dorsal, +sonoro], *[coronal, -anterior], *[labial, +sonoro], *[coronal, -anterior, +sonoro]...} >> {{*[dorsal]>>*[labial]>>[*coronal]}, {*[-anterior]>>*[+anterior]}, {*[+sonoro]>>*[-sonoro]}}

A proposta de Matzenauer (2003) implica considerar a existência de outras subhierarquias universais compostas pela restrições latentes, como {*[coronal,-anterior]>>*[coronal, +anterior]}. Considerar a existência de restrições cardeais que são desmembradas em restrições de coocorrência de traços que apresentam uma subhierarquia universal faz com que o mecanismo de desligamento das restrições conjuntas, proposto no capítulo 4, seja impossível de ser aplicado.

Considere-se, por exemplo, a aquisição de /S/ em um estágio posterior à aquisição de /s/. Conforme a autora, tal fato seria explicado com o surgimento, no sistema, da subhierarquia universal composta pelas restrições latentes {*[coronal, -anterior]>>*[coronal, +anterior]}, conforme (8):

(8)

1º estágio: o sistema apresenta a fricativa coronal [+anterior]

H’=Marcação>>Fidelidade>> {{*[dorsal]>>*[labial]>>*[coronal]}}

53 De acordo com Bonilha (2003), restrições de coocorrência de traços devem ser entendidas como restrições conjuntas atuando no nível do segmento.

2º estágio: o sistema apresenta as fricativas coronais [+anterior] e [-anterior] H’’ = {*[dorsal]>>*[labial]>>{*[coronal, -anterior]>> *[coronal, +anterior]}}

A proposta defendida no capítulo 4, do presente trabalho, entende que a aquisição de /S/ pode ocorrer em um estágio posterior à aquisição de /s/ pelo acionamento da restrição potencial [*[-anterior & coronal]](seg) acima das restrições de fidelidade. A restrição conjunta que, conforme Smolensky (1997), proíbe o pior do pior, seria criada porque as restrições de traços *[coronal] e *[-anterior] já foram demovidas no sistema da criança, permitindo tanto a emergência de /s/ como de /S/. Este seria adquirido com a demoção da restrição conjunta abaixo das restrições de fidelidade, a qual seria desmembrada por não cumprir mais papel na gramática.

Ao contrário, para Matzenauer, a restrição de coocorrência é criada na aquisição de /S/, constituindo uma subhierarquia universal com seu par *[coronal, +anterior]. O processo de aquisição desse segmento passa a funcionar não pelo reordenamento de restrições, mas pela ativação de restrições de coocorrência latentes, já demovidas na hierarquia, que passam a não ter papel na interação das restrições do sistema alvo. Pode-se pensar que o papel de *[coronal, - anterior] seria, justamente, garantir que /S/ faça parte do sistema, mas e quanto à restrição *[coronal, + anterior], que automaticamente é ativada na aquisição de /S/, qual seria o seu papel na gramática se /s/ já estava adquirida?

Outro ponto a ser salientado é que, de acordo com Bernhardt & Stemberger (1998), o padrão de aquisição em que /s/ é adquirido antes de /S/ não pode ser considerado universal, tendo em vista que as palatais podem ser adquiridas antes das alveolares54. Como, então, explicar, pelo modelo proposto por Matzenauer (2003), a aquisição de /S/ em um estágio anterior à aquisição de /s/ se a subhierarquia universal das restrições latentes é acionada com um ordenamento fixo?

As restrições latentes, portanto, diferem das restrições potenciais, propostas no presente trabalho, fundamentalmente em três aspectos: (i) não são acionadas com base nas

54 Os autores referem os estudos de Pye.et.al (1987) em que foi constatado que /S/ foi adquirido antes de /s/ em quatro sujeitos analisados, em um total de cinco.

subhierarquias universais; (ii) constituem subhierarquias universais; (iii) surgem na gramática, abaixo das restrições de fidelidade, quando o segmento é adquirido.