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4.2 – Democratização dos bens de salvação: ocaso das mediações e individualismo.

No documento DO REINO DE DEUS (páginas 61-67)

outros, em direção à salvação e Aqueles que precisavam ser guiados. O leigo precisaria dessa forma, apoiar-se naqueles mais envolvidos em sua vocação monástica. Ao rejeitar a superioridade do sacerdócio diante das outras atividades, as igrejas protestantes acabaram afirmando o valor espiritual da vida leiga. No Catolicismo a ênfase na importância da igreja sugeria que os homens podiam fazer alguma coisa pela própria salvação. Também que havia lugares e momentos especiais para a ação do Senhor no mundo. Tudo isso era inconcebível para os reformadores e, neste ponto especificamente, “Ao negar qualquer forma especial de vida como um locus privilegiado do sagrado, negaram a própria distinção entre sagrado e profano, assim, afirmaram sua interpenetração.” (TAYLOR, 1994, p. 281)

Por outro lado se teria operado no protestantismo, e mais fortemente em sua vertente calvinista, uma simplificação em que desaparece uma série de seres intermediários como os pertencentes à cosmologia católica - santos, anjos, demônios, e aparições de espíritos de pessoas mortas, principalmente entes queridos. Como será dito, esse esvaziamento se dava em proveito de uma dicotomização própria a uma religiosidade ética. Entretanto, realizada essa expulsão, esvaziando-se o mundo dos sinais de um sagrado mágico, contribuiu-se indiretamente para levar os homens frontalmente àquela realidade a que Weber denominou de desencantada. Mais especificamente, iniciou-se um encaminhamento lógico para uma ruptura radical entre os dois mundos à qual, ao distanciar Deus dos homens, hierarquizou submetendo a vida terrena a uma orientação racional de uma ética religiosa unificada e unidirecional da conduta. Essa ética exigia que todos os outros valores e esferas da vida fossem submetidos às considerações de mundo da ética especificamente religiosa. Ou seja, o mundo se apresenta enquanto instrumento da vontade e obra de Deus. Mas isso depende, ao mesmo tempo em que têm conseqüências para o problema do mal no mundo. A questão era como lidar com a evidência da sua relativa imperfeição e injustiça.

Nesse processo, para se salvaguardar a onisciência e a onipotência divina, foi preciso renunciar à benevolência através da idéia que passo a esclarecer mais, de predestinação: resumidamente, se Deus é onisciente e onipotente, ele já sabia desde o início dos tempos quem seria e quem não seria salvo. Portanto, não há nada que se possa fazer pela própria salvação. Inclusive, nenhum tipo de interferência, ou mesmo a mera existência de funcionários especializados – o clero católico – e privilegiados no contato com Deus parece absurda. Todavia, impõem-se algumas conseqüências ao se adotar radicalmente essa posição.

Se mantida a onisciência, a criação de um poder de mal radical e a admissão do pecado,

especialmente em comunhão com a eternidade dos castigos do inferno para uma das próprias criaturas finitas de Deus, e para pecados finitos, simplesmente não corresponde ao

amor divino. (grifos nossos) (WEBER, 1982, p. 409)

Nesta perspectiva, apresenta-se a incapacidade de se compreender o que e como realizar qualquer ato que possa contribuir para a salvação. Não mais se acessa o significado do mundo. Fica-se só diante de Deus, todo significado que possa provir de outras esferas da vida passam a ser vistas com desconfiança – a esfera econômica – enquanto esfera autônoma -, mas também a estética, erótica, política e a intelectual. Toda forma de ação que exija uma imputação de sentido que independa das razões – inacessíveis em seu significado último - do onipotente, é rechaçada. A tal ponto, que entre os puritanos se rejeitou todos os sinais de cerimônia religiosa em ralação a morte dos entes queridos, “[...] a fim de que nenhuma superstição, nenhuma crença nos efeitos de forças de salvação mágicas ou sacramentais, pudesse ser restabelecida.” (WEBER, 1999, p. 72)

Com isso, afasta-se do modelo de vida mais caritativo, como prescrito pela Igreja Católica, sendo que a valorização de um sentimento fraternal entre as pessoas perde espaço. Inclusive, expressões de amor muito intensas em relação a si mesmo e aos amigos, podem se caracterizar como apego ao mundo e, no primeiro caso, inclusive como vaidade. No entanto, falar de valorização da vida leiga entre os reformados só é em aparência contraditório. Na verdade, o processo de valorização crescente da vida leiga que se deu entre os protestantes e que foi conseqüentemente acompanhado por uma ênfase às atividades cotidianas, não ocorreu de forma indiscriminada, ao contrário, possuía uma orientação precisa:

Deus colocou a humanidade acima da criação e fez as coisas do mundo para uso do homem.

Mas os seres humanos, por sua vez, existem para servir e glorificar a Deus (grifo nosso) e, assim, o uso que fazem das coisas deve servir a essa meta suprema. A conseqüência do pecado é que os seres humanos passam a interessar-se por essas coisas não em função de Deus, mas em proveito próprio. (TAYLOR, 1994, p. 286)

Fica indicado, essa valorização da vida deve ser acompanhada de moderação. Devem ser refreadas quaisquer pretensões a uma habilitação hedonista da vida. Uma atitude de prudência e autocontrole é prescrita para que haja a confirmação do vínculo de submissão do mundo a Deus. As coisas do mundo devem ser entendidas enquanto meios disponibilizados pelo criador, visando o nosso bem. Nosso dever é o de aproveitar e reconhecer a oportunidade que nos foi dada, como forma de glorificar o Senhor. Dessa forma, o equilíbrio entre produção e consumo torna-se foco de tensões constantes, até que a ameaça da danação comece a perder sua força, bem como o interesse pelo outro mundo vá desaparecendo, inclusive, como conseqüência lógica, ou mesmo trágica, inscrita na unidade do fenômeno, sobretudo, com o relativo enfraquecimento do poder das lideranças religiosas.

No Catolicismo haveria a idéia de uma comunidade religiosa que se estruturava coletivamente em busca de sua própria salvação. Ainda que a salvação fosse, a princípio, entendida enquanto individual, não se pode esquecer que mesmo para um leigo, se negar a contribuir através, por exemplo, de ajuda aos mais necessitados, ou de orações, pela salvação de um próximo na hora de sua morte, poderia comprometer a própria alma. Da mesma forma, seria impensável entre os protestantes, como num caso citado por Maquiavel, ao qual Weber faz alusão, que uma autoridade religiosa pudesse ameaçar uma cidade inteira – Florença - de excomunhão, como forma de pressionar a sua rendição num conflito – mesmo que no final a cidade tenha resistido à ameaça. O que leva a crer que a tradição católica compreende uma dimensão e uma elaboração um pouco mais, diria, coletiva da salvação, se comparada ao protestantismo histórico.

Interagir no mundo era como ser convidado – sem lugar para negativas – a participar de um conjunto amplo de significados e compromissos em torno do Deus único, o qual era revelado através da Igreja, sendo esta, fonte interpretadora dos seus sinais. A estabilidade do grupo era dessa forma mantida. Da mesma maneira, as possibilidades de se

ser salvo eram muito maiores, desde que houvesse arrependimento - ainda que no momento iminente da morte - e desde que se realizassem boas obras durante a vida. Os critérios de salvação podem ser comparados a um plano de contas. A certificação da salvação se dará conforme a balança penda mais para o lado do bem, das boas ações. No limite, o arrependimento, e a existência do purgatório amenizavam em muito o desespero dos homens diante da ameaça do inferno, ou seja, da perda de sua alma.

Se, por um lado, nas formas tradicionais de catolicismo romanizado Deus apresenta-se enquanto ser inacessível diretamente às pessoas, por outro, a sua vontade pode ser constantemente revelada e interpretada aqui na Terra pelos agentes especializados da Igreja. Do que se conclui também que o além mundo se dissemina e contamina magicamente o mundo terreno. A própria Igreja era quem concentrava e controlava em última instância a esfera jurídica e regulamentava - ou pelo menos podia reivindicar essa posição com mais ou menos sucesso - o Estado, inclusive em seus princípios legitimadores da dominação e poder real. Dumont sugere que a Igreja em alguns momentos foi o próprio Estado.

II.4.3 - Dualismo ascético, interiorização e solidão calvinista:

A partir da influência protestante, e principalmente sua vertente calvinista, ocorreu um impulso para um outro movimento. Toda a estrutura básica através da qual se davam e atualizavam as relações entre os indivíduos é paulatinamente desfeita e, no lugar desta, resta apenas o contato direto do homem com seu Deus. Também supremo, todo poderoso, e de infinita sabedoria, mas não mais acessível em sua vontade e, portanto, mais distante. Assim, se os homens se aproximam de Deus ao abdicarem de qualquer mediador que propicie, ou facilite o seu encontro e, ao mesmo tempo aderindo a uma ética religiosa unificada, cada um se distancia dEle, por já não se poder mais compreender suas razões últimas. Da mesma forma, os indivíduos distanciam-se, no sentido de tornarem-se e principalmente, sentirem-se inacessíveis e isolados mais e mais uns dos outros, quando colocados frente a frente sem mediação. Ao que parece, é nesse processo que Weber

identifica um caminho aberto, o qual permitiria a ele falar de uma relativa perda de sentido da vida.

É preciso reiterar, não é que o Calvinismo, enquanto religião de salvação, pretendesse desprover o mundo de sentido, isso na verdade não era desejado segundo o programa dos reformadores. Rejeitar as formas de mediação significava simplesmente realizar a vontade de Deus. Muito ao contrário, nesse aspecto o Calvinismo não se diferenciaria de outras expressões religiosas salvacionistas, para as quais:

Em todos os tempos e todos os lugares, a necessidade de salvação [...] resultou da tentativa de uma racionalização sistemática e prática das realidades da vida. [...] nesse nível, todas as religiões exigiram, como pressuposto específico, que o curso do mundo seja de alguma forma, significativo [...] essa pretensão surgiu com o problema habitual do sofrimento injusto, e, daí, como o postulado de uma compensação justa para a distribuição desigual

da felicidade individual no mundo. Daí, a pretensão tendeu a progredir, passo a passo, no sentido de uma crescente desvalorização do mundo. Quanto mais intensamente o pensamento racional ocupou-se do problema da compensação justa e retributiva, tanto menos pareceu possível uma solução totalmente interior e tanto menos provável, ou mesmo significativa, uma solução exterior. (grifos nossos) (WEBER, 1982, p. 404)

A existência do sofrimento, e sua distribuição desigual pelo mundo parecem, de certa forma, insuperáveis. É a confirmação da imperfeição e transitoriedade dele. Mas não apenas, pois: “O fato de que a morte e a ruína, com seus efeitos niveladores superavam os bons homens e as boas obras, bem como as más, parecia uma depreciação dos valores supremos deste mundo.” (WEBER, 1982, p. 405) Com a Reforma, os valores deste mundo através de um processo evolutivo, haviam passado a ser, nesse sentido, cada vez mais negligenciados, ou mesmo desprezados enquanto fins em si mesmos. Os bens culturais e a participação no mundo através da ordem e dos códigos desse mundo perdem relativamente a importância. Todavia, como foi anteriormente indicado, a solução ascética ativa não será orientada para uma rejeição absolutamente inconciliável, através da fuga, mas sim da tentativa de acomodação tensa do mundo aos propósitos divinos. E é a peculiaridade dessa solução que se constituirá enquanto via auto-destrutiva. O significado da valorização das coisas da vida liga-se a um processo radical de interiorização e individualização da experiência religiosa. Também, os frutos advindos do labor disciplinado e diligente não podiam ser gozados ou, no máximo, só podiam ser fruídos muito discretamente. Isso impunha tensões que os próprios líderes religiosos – John Wesley, por exemplo - do século XVII, ou quem sabe até antes dele, já anteviam.

Num panorama mais ampliado, Weber percebia que a racionalização – ou racionalizações - do mundo moderno havia trazido consigo um desencantamento em relação a esse mesmo mundo. O processo de racionalização - inicialmente impulsionado em boa medida pela forma singular de racionalização religiosa operada pelo ascetismo ocidental - trouxe como algumas de suas conseqüências não previstas, resumidamente, um processo caracterizado pelo grande desenvolvimento científico, por um Estado constituído de um corpo de funcionários especializados e por um capitalismo racional voltado para a rentabilidade e baseado no trabalho livre, tudo isso organizado através de leis e normas formalmente construídas. Dá-se uma reificação da vida. Nesse mundo os planos dos homens seriam organizados através de uma razão instrumental. A condução da vida perde sua orientação advinda de uma ética religiosa relativamente definida28. Nessas circunstâncias:

Uma atitude ‘consciente’ de dominação do mundo exigiria a elaboração reflexiva da tensão, típica para as formas de consciência peculiares da concepção de mundo moderna nos termos de um imanente dualismo entre orientação para o sucesso e atitude ética, (grifo nosso) ou seja, uma mistura bem temperada entre sucesso e moralidade. (SOUZA, 2000, p. 37)

Ou seja, com a saída da religião da dimensão especulativa e normativa - nos termos de Durkheim -, o tipo de ética possível seria aquela que vê no indivíduo em recurso à autoridade de sua interioridade, a fonte autônoma da própria decisão. Mais uma vez, trata- se da mesma dificuldade: como se estipular critérios que permitam aos indivíduos “confeccionar” com segurança suas relações. E, nesse caso, como se poderia constituir um tal padrão de modelação, no qual as práticas estariam balizadas por uma via “interior”? Ou, melhor dizendo, como equilibrar uma imagem de si enquanto interioridade relativamente fechada sobre si mesma, com a demanda incansável por relações com os outros, com um mundo? Como fazer isso, e ainda sustentar-se através dessa imagem, dessa barreira, em certo sentido elaboradora de uma visão autônoma e desvinculada de si mesmo? Precisamente, como indica Elias, o processo é muito longo, e não se dá de um momento

28 À longo prazo o que, segundo Weber se verificou, foi um encolhimento cada vez maior da esfera do

para o outro, mesmo em nações29 que nos parecem às vezes como que baluartes sagrados do individualismo, ou de algumas de suas formas. Nos Estados Unidos por exemplo, na época em que Weber escreve, as coisas não parecem tão simples.

No documento DO REINO DE DEUS (páginas 61-67)

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