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2.3 – Sobre a dominação: Posições, distinções e assimetrias

No documento DO REINO DE DEUS (páginas 93-101)

Também, nem todos os espaços estão abertos54, ou abertos da mesma forma para os variados agentes em questão. Se se trata de feixes de relações, como afirma Elias, tais feixes se complexificam justamente por sua mobilidade e poder de produzir distinções (BOURDIEU, 2001, 2004; ELIAS, 1994). E, se as distinções dizem respeito às disposições dos indivíduos e grupos submetidos – de maneiras variadas – à definição de uma determinada ordem, elas também dizem respeito ao lugar do olhar possível e desejável que têm e se atribuem esses mesmos agentes e grupos. O lugar em que se é visto – ou se esconde – é também o lugar de onde se vê, e seus modos particulares e sutilezas não podem ser entendidos, se, também, do lugar em que somos vistos e olhamos, não nos

54 Talvez, numa sociedade na qual se dê uma pressão constante e ubíqua por mobilidade social ascendente,

ponha-se agudamente a dificuldade em se confrontar com a exigência de competências e um estoque de capital econômico – verdadeiras barreiras que asseguram até certo ponto a estabilidade das estratificações – cada vez mais elevados e inacessíveis. Dessa forma, as dificuldades em se ordenar a vida e enfrentar as frustrações das expectativas cotidianas tornem-se características marcantes.

ocuparmos até as últimas conseqüências das contingências dessa tensa e “(con)fabulosa” interação. Do mesmo modo, as retensões “permissíveis” nestas permutas nunca são homogêneas, mas, por outro lado, tendem a garantir e reproduzir as posições dos dominantes em relação aos dominados nas esferas específicas de interação, claro, uma vez que os dominantes estariam aptos e empenhados em sua própria defesa e na persecução dos próprios interesses. Como já foi dito, o poder de antecipar, controlar, direcionar e exibir os efeitos dos processos – também poder de legitimação e produção da memória – é um imenso privilégio, que se conquista ao longo de lutas muitas vezes sangrentas, como no caso da formação de muitos estados nacionais modernos. No entanto, nessa disputa soldados podem ser importantes, mas, normalmente, contam mais intelectuais, jornalistas, artistas, políticos e lideranças religiosas. E, seria somente mediante a apropriação dos efeitos de tais lutas que estruturas assimétricas de poder e domínio se constituiriam. Tratam-se de taxonomias que definiriam diferenciações, distinções nos espaços sociais, materializações de uma ordem, inclusive, para além dos projetos e utopias nacionais.

A “produção da crença”, nesse caso, se confunde também com a construção naturalização e imposição de uma certa memória. Memória coletiva, mas, antes de mais, memória vivida como fato natural. Este efeito de consagração no qual as agências oficiais e “figuras” consagradas procuram falar revestidas de uma aura de santidade e absoluto. Assim, mais uma vez, trata-se de pedagogias, de um tom, um estilo no falar, da produção textual e imagética em várias instâncias etc. O efeito desejado por tais pedagogias talvez possa ser entendido – para continuar um pouco na linguagem religiosa – como adesão. Parece que a intensa utilização dos meios de comunicação entre muitos dos novos movimentos religiosos no Brasil tem se valido justamente desse fator como forma privilegiada de consagração. Assim, se por um lado a utilização dos meios de comunicação de massa torna aquele que se expõe bastante frágil (HOBSBAWM & RANGER 1997; THOMPSON, 2002), uma vez que qualquer erro poderá ser visto e mesmo revisto por milhares ou milhões de pessoas, por outro, sua exposição quando bem sucedida, influenciará positivamente esses mesmos milhões ou milhares.

Sem dúvida que neste momento já está se desenvolvendo um determinado tipo de aprendizado no qual os efeitos áudio-visuais serão fundamentais. Inclusive, já vi muitas

vezes em templos evangélicos, mas também católicos, a imagem de Cristo ligado a transmissores televisivos imensos e potentes sobre a Terra. Acredito que a proliferação desses mecanismos responde a uma tendência contemporânea55. Ao mesmo tempo em que disseminam as informações audiovisuais para públicos cada vez mais extensos, ampliando assim a área de cobertura, modificam o tipo de relação religiosa tradicional no qual o face a face cumpria um papel fundamental. Ou seja, ao mesmo tempo em que ampliam-se as redes de influência, tal influência não passa mais por um controle tão estreito. Inclusive, mesmo que os aparelhos de TV só fossem utilizados para programas religiosos, o que não é em absoluto o caso. O controle sobre as reações e respostas não pode ocorrer mais de tal forma. Também, a distância possibilita expressões e práticas inovadoras, como o atendimento da IURD feito pelos programas de TV, no qual se pode ver bispos e pastores pedindo para o atendido que coloque a parte do corpo afligida, alguma foto, objeto ou imagem, próxima ao aparelho de TV para que receba a oração.

Se no Brasil a televisão começa na década de 50 com Assis Chateaubriand, será basicamente durante a década de 60 que ela será maciçamente difundida com o apoio do Estado, aliás, da mesma forma que teria ocorrido a expansão da mídia escrita e o rádio, até então, principal meio de difusão artística, política e de informações no país. A radiodifusão, por princípio seria um serviço público sobre o qual o Estado exerce controle desde 1922, quando surgiu a primeira estação de rádio no país - instalada na cidade do Rio de Janeiro - através de agências regulamentadoras (MATTOS, 2000). O planejamento e distribuição de estações de rádio e TV logo adquire pretensões de uma cobertura nacional. Também, a concessão de canais de transmissão durante o regime militar seguiu os objetivos definidos pela Doutrina de Segurança Nacional visando a “integração nacional e à integridade territorial.” Em 1922, o número de estações de rádio no país era de apenas duas, para em 1964 chegar a 1.069, crescendo ainda mais e chegando a 1.550 em 1981 e 2.938 em 1995 (MATTOS, 2000).

Em 1981 o País possuía 103 estações de TV em operação. Em 1994 existiam cerca de 257 emissoras em funcionamento. As transmissões da televisão comercial já atingiam

55 “[...] generaliza-se na sociedade brasileira um campo de comunicação marcado por intensos cruzamentos

de fluxos de caráter religioso. Neste campo, enraíza-se e confirma-se um habitus de abertura das audiências à mensagem do ‘outro’, abertura que prenuncia um tipo novo de prosperidade das próprias identidades religiosas[...]” (SANCHIS, 2001, p. 31)

em 1995 uma cobertura geográfica de praticamente 100% dos 4.491 municípios brasileiros, tendo a rede globo de televisão o maior percentual de cobertura entre os municípios do país – praticamente 100%. Em 1980 registrou-se que 55% de um total de 26,4 milhões de residências estavam equipadas com televisores. Em 1991, o Anuário Estatístico do Brasil de 1989, revela que dos 34,3 milhões de domicílios, 72,5% já estavam equipados com televisores. Em 1992, estimou-se um número de cerca de 32 milhões de aparelhos de TV. Ou seja, o projeto de disseminação dos meios áudio-visuais alcança padrões bastante altos já no início da década de 80, passando a ser parte da vida de parcelas que vão provavelmente, além da classe média urbana, alcançando ao final dessa década uma cobertura que sem sombra de dúvida passa a fazer parte da vida dos setores pobres da população. Ora, coincidência ou não, será justamente durante essas mesmas décadas que os novos movimentos religiosos no país mais crescerão.

QUADRO 1 - Distribuição percentual da verba de mídia por veículo

ANO TV JORNAL REVISTA RÁDIO OUTROS (*)

1962 24.7 18.1 27.1 23.6 6.5 1970 39.6 21.0 21.9 13.2 4.3 1980 57.8 16.2 14.0 8.1 3.9 1985 59.0 15.0 17.0 6.0 3.0 1986 55.9 18.1 15.2 7.7 3.1 1987 60.8 13.2 16.3 6.2 3.5 1988 60.9 15.9 13.9 6.6 2.7 1989 55,5 26.6 12.8 2.7 2.4 1991 56.0 27.4 9.2 5.1 2.3 1992 59.3 24.3 8.4 4.9 3.1 1993 53.0 34.0 7.0 5.0 1.0 (**) 1994 56.9 26.0 8.4 4.3 4.0

Fontes: Revista Propaganda, Meio e Mensagem, Grupo Mídia,

CCBA/Propeg, McCann-Erickson Brasil e Projeto Inter-meios e Nielsen Serviços de Mídia. * Incluindo outdoor, cinema, pontos de vendas etc.

* Inclui apenas outdoor

Fica explícito no quadro anterior o quanto cresceu, proporcionalmente aos outros meios, o investimento em jornal, mas, sobretudo, em televisão, ao mesmo tempo em que o investimento proporcional em radiodifusão diminuiu drasticamente, ainda que em números absolutos o número de emissoras de rádio tenha passado por um aumento sensível entre as décadas de 70 e 90. Acredito que esse desenvolvimento tenha motivado bastante a direção

tomada pelo modelo religioso que se configura a partir da década de oitenta, basicamente, ainda que tributário da experiência anterior, entre as décadas de 50 e 70, em que a Deus é Amor, por exemplo, já vinha se utilizando do rádio como forma fundamental de implementar a difusão da palavra. Provavelmente estaria ocorrendo aqui um processo só possível mediante a abertura relativa e maior competitividade do mercado religioso no Brasil. Ao mesmo tempo em que crescem outros cultos e denominações, eles acessam meios inauditos ou timidamente explorados pelo catolicismo, ainda que dialogando em vários níveis com esse mesmo catolicismo56. Nesse sentido, a definição de fala legítima passa a contar cada vez mais com meios – sobretudo a televisão - que já gozavam de imenso reconhecimento e interesse, ao mesmo tempo em que os meios técnicos e a mão de obra necessária para tal empreendimento se encontrava disponível e, de certa forma, arriscaria dizer que gerando uma pressão excedente de oferta.

Ou seja, ao mesmo tempo em que já estava potencialmente formado, em finais da década de 70, um público sensível e interessado no consumo dos bens espirituais em suas formas audiovisuais – inclusive, insiro aqui aquelas pessoas que se tornariam importantes lideranças –, havia a disponibilidade material e técnica de sua produção e difusão através de padrões desejáveis ou, no mínimo, aceitáveis. Dessa forma, entra-se numa espécie de círculo vicioso em que a competição, cada vez mais acirrada e qualificada entre as agências religiosas, nos termos contemporâneos da produção e consumo intenso de sons e imagens, irá demandar paulatinamente estratégias cada vez mais imbricadas e mesmo agressivas visando um público que se educava cada vez mais rápido e mais cedo através dessa modalidade de informação. Nesse sentido, se não se pode dizer, de forma alguma, que a difusão da televisão, do rádio e do jornal tenha sido a causa da expansão pentecostal no Brasil; por outro lado, não é possível entendê-la, prescindindo-se de tal expansão como contribuição essencial. Dessa forma, para aqueles agentes, predispostos a se tornarem lideranças no campo religioso e que aderissem a uma dinâmica expansionista, tornava-se naquele momento incontornável o acúmulo de um capital simbólico e material cada vez mais comprometido e tributário desses meios, para se sobreviver.

56 Nunca é demais repetir, o catolicismo muito cedo passou a se utilizar de imagens em seus cultos, ainda que

de forma e através de meios completamente diferentes. Mesmo assim, seria interessante se perguntar o quanto talvez sejamos tributários do catolicismo no sentido de que ele tenha contribuído para a formação de uma civilização que, mesmo após a reforma, continuou, por outros meios não religiosos inclusive, ou talvez, sobretudo nos países protestantes, a produzir, refinar e multiplicar imagens pelo mundo.

Se se fosse fazer a pergunta de forma simplificada e mais afunilada, ainda que se trate de uma pergunta “irresponsável” e geradora de ansiedade, mas que por certo me parece estimulante, faria a seguinte: o que teria pensado o Bispo Edir Macedo, naquela época, um simples pretendente, ilustre desconhecido, dentre milhares de outros, ao final da década de setenta, para supor que o investimento em meios mais agressivos de difusão religiosa surtiria, combinado a um particular modelo de culto, um efeito suficientemente compensador, fazendo-se valer numa relação custo benefício no mínimo aceitável, mas que num prazo curtíssimo se mostrou, provavelmente, infinitamente mais eficaz do que aquilo que se havia previsto? Ou seja, o que ele teria aprendido em sua trajetória religiosa, para poder acreditar que havia pessoas potencialmente aptas a “comprar” a sua proposta? Evidentemente que a maneira como hoje assistimos a estrutura extremamente organizada da IURD, bem como seu alto padrão material não se firmou de uma vez por todas, mesmo que na mente de seu principal idealizador; todavia, acredito que já estivesse, desde os primeiros momentos, pavimentado o caminho para alguns dos principais desenvolvimentos que a Universal veio a ter. Também, evidentemente, uso o nome do Bispo Edir Macedo aqui como ilustrativo, mas por certo que não se trata apenas dele, mas de muitos daqueles que mais ou menos numa mesma época, basicamente nas grandes cidades brasileiras, se lançaram na empreitada religiosa trazendo consigo competências bastante afins, dentre as quais o termo carisma pareceu indicar para uma boa definição. E, curiosamente, com a entrada do catolicismo nessa corrente que muitos dos católicos passavam a identificar como “irresistível”, passou a angariar ainda maior atenção por parte de estudiosos e leigos. Ou seja, se por um lado o catolicismo parece ter força suficiente para contribuir para a legitimidade do fenômeno, por outro, ele seria fraco o suficiente tanto para ceder e assimilar, mas, principalmente, para admitir não ser o orquestrante da peça, seus atos e movimentos.

Já em condições tradicionais de mercado e culto, sobretudo quando católicos nas grandes cidades do Brasil ou protestantes em outras partes do mundo possuíam pretensões à exclusividade, qualquer reação ou sinal de inconformismo ou não adequação, corria o

risco de ser tratado como desvio ou heresia57, uma vez eu se sentia possuir os meios legítimos para esse tipo de reação; na melhor das hipóteses, de subversão. E na construção e retransmissão das memórias, a presença destes desviantes e heréticos pode passar inclusive a ser um fator fundamental como demarcador proibitivo58 e contaminado, deformado ou demoníaco, sujo decaído proscrito59, uma vez que o compromisso entre as instituições especializadas e o que poderíamos chamar de uma determinada membresia, pressupunha logicamente, mas, sobretudo, moralmente e emocionalmente tal crença e entendimento de mundo. Ou seja, a produção da crença nos cânones dependia ainda de forma mais radical da referência e estipulação de determinados excluídos, mas não quaisquer excluídos. Aqui, os decaídos poderiam vir a apresentar a condição de não poderem se levantar jamais, mesmo que se faça parecer o contrário. Todavia, já no caso de determinadas modalidades e esferas da produção de bens culturais, em que o enfrentamento, por exemplo, de correntes contra-culturais pelos defensores da ortodoxia se impõe como uma constante, ou mesmo um “motor”, a dinâmica das definições das posições não se torna tão simples, exigindo, inclusive, que muitas vezes se esteja aberto a negociações e assimilações mais ou menos explícitas de parte a parte. Mas seria ainda possível no campo religioso brasileiro uma postura, mesmo que superficialmente, rígida em relação a certa diversidade?

Provavelmente não seria exagerado afirmar que o debate sobre religiosidades no Brasil tenha se iniciado como um debate sobre o catolicismo. Ao mesmo tempo, penso que mesmo hoje, não se possa, pelo ao menos, deixar de mencionar e ter em mente o catolicismo brasileiro ao se buscar entender determinados fenômenos religiosos. Talvez, a história do Catolicismo, principalmente nos últimos 500 anos, seja um pouco a história das idas e vindas entre a imposição de uma ordem de mundo total e exclusiva, e um maior

57 Ortiz aponta em seu trabalho “A morte branca do feiticeiro negro”, como esse foi o primeiro tipo de reação

católica diante do crescimento na década de 50 de outras denominações, no caso, principalmente a Umbanda.

58 Nos diz Freud: “O Demônio seria a melhor saída como desculpa para Deus; Dessa maneira, ele estaria

desempenhando o mesmo papel, como agente de descarga (grifo nosso) econômica, que o judeu desempenha no mundo do ideal ariano.” (FREUD, 1997, p. 79) Assim, por exemplo, sobre o período de colonização do território brasileiro, argumenta Laura de Mello e Souza: “Entre um e outro pólo, a colônia se confirmava na sua função purgadora (grifo nosso): Purgatório onde se purgavam penas e mazelas inerentes às tensões sociais, e onde, divinizando-se o universo produtivo, se procurava ganhar a salvação.” (SOUZA, 2002, p. 150)

59 “Proibir determinadas espécies não é mais que um meio entre outros de afirmá-las como significativas, e a regra prática aparece assim como um operador a serviço do sentido, (grifo nosso) dentro de uma lógica que,

sendo qualitativa, pode trabalhar com o auxílio tanto de comportamentos quanto de imagens.” (LÉVI- STRAUSS, 1989, p. 119)

afrouxamento e disposição para a negociação – oficial ou não – diante de seus adversários e ameaças60. A contra-reforma, os concílios – sobretudo o de Trento -, encíclicas e bulas papais, a inquisição, as deliberações no sentido de apoio a determinadas correntes ou movimentos como a dos franciscanos, que, como se sabe, viviam e valorizavam uma vida de pobreza, explicitamente em contraste com o padrão de uma “aristocracia” eclesiástica, o pouco ou nenhum controle, por exemplo, realizado em relação aos padres brasileiros no século XIX – antes da época do segundo império -, quando contrastado com a direção formalista, burocratizadora e moralizante61 tomada após a romanização que se dará, já no final do século. Logo, quando a Igreja, agora cada vez mais uma igreja, tinha que disputar mais cruamente com outros pretendentes, o direito à produção e inculcação de uma ordem de mundo considerada legítima. Ou seja, o catolicismo passava a disputar com outros cada vez mais numerosos agentes relativamente organizados, o privilégio sobre a produção dos sentidos de mundo, vendo-se também cada vez mais ameaçado e questionado em suas pretensões de controle sobre o temporal. Tudo isso, na verdade, aponta para um movimento que num prazo longo, não permite previsões, mas que parece respeitar algumas lógicas e constrangimentos. De fato, não é nenhuma novidade que o catolicismo tenha possuído, desde suas origens, um tom de adaptação e combinação próxima àquilo que passou a se chamar de sincretismo. Tendo a concordar com Pierre Sanchis (SANCHIS, 2001) que esse termo ainda pode trazer algum esclarecimento a discussão sobre as religiosidades no Brasil, caso não o tomemos em um sentido desencarnada das relações

60 E, curiosamente, a caça as bruxas não será uma característica medieval, mas, ao contrário, obra

fundamentalmente dos séculos XV, XVI e XVII. “No final do século XV, pregadores e clérigos saturavam seus sermões com um vocabulário diabólico [...] Foi, portanto, no início da Época Moderna, e não na Idade

Média, (grifo nosso) que o inferno e seus habitantes tomaram conta da imaginação dos homens do ocidente. O apogeu da ciência demonológica situou-se por volta de 1600.” (SOUZA, 2002, p. 138)

61 “Mestiços de branco, índio e negro, estaríamos como que ‘condenados’ ao sincretismo pelo fato de não

sermos uma cristandade romana: um bispado em cem anos, ausência de visitas pastorais recomendadas por Trento – que, aliás, só teria sido aplicado no Brasil no século XIX -, as Constituições Primeiras do

Arcebispado da Bahia, de 1707, representando a única legislação eclesiástica do primeiro período colonial. Mais ainda: a Monarquia - poder temporal -, imiscuindo-se nos negócios do espírito através do Padroado, pautava a evangelização antes por razões de Estado do que pelas da Alma: daí uma igreja que admitia a escravidão, imprescindível à exploração colonial.” (SOUZA, 2002, p. 87) Nesse aspecto, a reforma – reforma ocorrida no interior do catolicismo no século XIX - que, de certa forma, pretendia definir-se através de uma autonomização e especificação de suas atribuições espirituais diante do poder temporal, enfrentaria um tenso embate com o Estado: “Cresce no segundo império entre os nossos bispos um sentimento de comunhão e solidariedade à proporção que eles vão se vinculando mais profundamente com a sé romana. É bem verdade que o padroado régio em vigor continua sendo um fator de vinculação dos bispos brasileiros em torno da corte imperial. Daí, a tensão existente entre esses dois centros de influência: Roma e a corte [...] O desejo de reforma, atingindo principalmente os religiosos e a ‘classe’ sacerdotal, era uma ânsia comum da Igreja e do Governo. Mas justamente a diversa conceituação de ‘reforma’ iria levar Governo e hierarquia eclesiástica à intensificação de um conflito que se manifestava em várias áreas de atrito.” (FRAGOSO, 1992, p. 184)

assimétricas de poder a que estariam submetidos os processos de contágio, por exemplo, entre as práticas ameríndias e o catolicismo, bem como entre as religiosidades africanas e o catolicismo português.

É nessa dinâmica que o desenvolvimento de um campo religioso brasileiro em constante disputa irá se formar. Já a partir da década de 50, mas, sobretudo, após a década de 70, o catolicismo se verá pressionado por múltiplos movimentos. Desse momento em diante, as respostas tentadas não mais se inscreviam numa retórica exclusivista, mas, ao

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