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2.2 – O fenômeno reticular e as interdependências

No documento DO REINO DE DEUS (páginas 36-38)

Coisa alguma nas maneiras à mesa é evidente por si mesma ou produto, por assim dizer, de um sentimento ‘natural’ de delicadeza. A colher, garfo e guardanapo não foram inventados

como utensílios técnicos com finalidades óbvias e instruções claras de uso. No decorrer de séculos, na relação social e no emprego direto, suas funções foram gradualmente sendo definidas, suas formas investigadas e consolidadas [e] [...] não apenas as maneiras à mesa, mas também formas de pensar ou falar, em suma, do comportamento em geral, são moldadas de forma semelhante em toda França [...] [e para terminar] [...] Um curto exemplo do processo de ‘civilização’ da fala poderá servir como aviso de que a observação das maneiras e suas transformações expõe apenas um seguimento muito simples e de fácil acesso, do que é um processo de mudança social muito mais abrangente. (grifos nossos) (ELIAS, 1994, p. 116)

Elias já estaria nesse trabalho bastante seguro sobre a importância – do ponto de vista teórico e metodológico - em se enxergar os processos sociais sob a ótica do que ele passaria a chamar de interdependências:

Ela vive [a pessoa], e viveu desde pequena, numa rede de dependências que não lhe é possível modificar ou romper pelo simples giro de um anel mágico, mas somente até onde a própria estrutura dessas dependências o permita; vive num

tecido de relações móveis que a essa altura já se precipitaram nela como seu caráter pessoal. (grifos nossos) (ELIAS, 1994, p. 22)

Assim, penso - para começar a fechar o tópico - que uma das maiores dificuldades ao se tentar dar conta dos processos sociais resida nos movimentos que o pesquisador se exige realizar entre uma questão e um interesse de pesquisa, a construção de uma especificidade empírica, e a decisão e explicitação em relação a uma orientação teórico- metodológica em particular. Tal dificuldade, provavelmente, só tende a acrescer quando os fenômenos aos quais se pretende descrever e analisar são entendidos enquanto em permanente movimento, mas os movimentos não possuem uma direção e sentido que dependam apenas de um fator isoladamente. Ou seja, que a pré-condição de uma compreensão mais rica de determinados processos precisaria articular analiticamente uma ampla gama de interdependências e correlações, nas quais, movimentos realizados por variados indivíduos não poderiam ser entendidos em separado, mas apenas em ligação com toda uma rede na qual os movimentos do conjunto seriam fundamentais para se compreender os movimentos e posições de cada um. Outros termos e abordagens poderiam ajudar a compreender os processos, por exemplo: intersubjetividade, interações,

dialogismo etc. Todavia, o termo interdependência e a maneira como é teoricamente articulado impõe-se com mais força. Ela parece dizer algo a mais. Além de abarcar o que pretende sugerir termos como intersubjetividade e interação, acrescenta algo de mais difícil retenção conceitual. Falo das assimetrias e coordenações de força num dado espaço de sociabilidades. Ou seja, quem fala de dependência, supõe - do ponto de vista de um interesse “sociologicamente motivado” - que as relações humanas compõem condicionamentos, limitações. Nem tudo é possível quando e como queremos; existem sempre outros com os quais travamos relações e mediante os quais também aprendemos a desejar coisas específicas. Estamos com os outros, mas nem sempre com quem queremos e do modo que queremos. É a isso que Elias se refere como reticularidade: “[...] justamente esse fato de as pessoas mudarem em relação umas às outras e através de sua relação mútua, de se estarem continuamente moldando e remoldando em relação umas às outras, que caracteriza o fenômeno reticular em geral.” Trata-se do ponto em que o arbitrário se impõe como se fosse natural, ao mesmo tempo em que torna possível a percepção de sua fragilidade.

Nesse sentido, não haveria como se pensar uma possibilidade de um indivíduo enquanto “grau zero” a espera da sociedade para moldá-lo, pois é só através das redes que os indivíduos poderiam existir e, nunca, anteriormente a elas. Assim, o autor apresenta uma crítica a perspectivas que pretendam fornecer um indivíduo desencarnado sem, no entanto, abrir mão da idéia de indivíduo, estabelecendo a possibilidade de se pensar esse indivíduo através das circunstâncias sociais e culturais de sua existência desde a inserção primeira no mundo. Talvez, nem se possa corretamente falar de inserção no mundo, pois o mundo seria, para Elias, essa rede relacional particular e anterior as existências individuais, mas em constante transformação. Aqui, não haveria uma noção de sociedade como homogeneidade, mas diversidade de posições ocupadas nas redes, resultados de processos os mais variados e de variada sensibilidade aos esforços mútuos no sentido de transformá- la.

E - para concluir - considero ser esse um caminho viável ao se buscar compreender e aceitar um pouco do desafio da disciplina sociológica no que tange as suas origens. O que seria uma especificidade sócio-histórica, o que a define? Como apreender a mudança

ou a permanência de dadas configurações humanas? O que seria mais importante para esse olhar, o que muda, ou o que permanece? Em que medida tal disciplina nos exige um dobramento constante, uma inflexão; ida em direção a si mesmo – do ponto de vista de um saber que se quer saber, mas também como individualidade e “drama” psíquico e ético de cada um dos seus pretensos especialistas? Se há mudança, e se ela interessa, como estar equipado para identificar um movimento como dotado de sentido. Também, em relação à questão da ordem, como estipular sua singularidade e sua lógica interior? Como estabelecer a relevância de determinado evento numa cadeia que pode se nos apresentar imensa, aberta mesma ao infinito?

Acredito identificar essas e outras questões nas formulações elisianas. E, nesse sentido, seria preciso não tratá-lo como um historiador, mas como dotado de uma preocupação eminentemente sociológica. Acredito, grosso modo, resumir assim: por quê, em determinado momento e em determinadas condições, alguns homens puderam e quiseram perceber o mundo e desenvolver suas ações de uma determinada forma? Assim, se nos voltarmos para o período chamado moderno e levarmos até as últimas conseqüências essa questão, tratar-se-ia também de perguntar: como foi possível essa determinada civilização? Mas também: como foi possível a Sociologia?

No documento DO REINO DE DEUS (páginas 36-38)

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