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5.1 – Dois corpos possíveis

No documento DO REINO DE DEUS (páginas 139-145)

Pelo que percebo, há duas imagens do corpo que se afirmam, basicamente no último quarto do século XX, e, ao menos tangencialmente no argumento de alguns dos autores estudados: correlativamente ao declínio do valor da atividade produtiva, surge um corpo solícito por lazer, entretenimento e diversão – tudo isso, sobretudo, através do consumo de objetos e serviços -, em contraposição a um corpo modelado pela prática produtiva; mais rígido e disciplinado através de operações rotineiras e padronizadas. Este, um corpo “adormecido”, também consumidor, mas pouco disposto a maiores aventuras; direi que se trata da oposição entre o que chamarei de corpo prazeroso e um corpo domesticado. Este último estaria próximo do antigo corpo explorado pelo capitalismo do século XIX, mas também, daquele mais recente, relativamente bem cuidado e alimentado bastante característico do pós-guerra, mas que já era alvo das políticas assistencialistas e hospitalares da Inglaterra do século XIX.

Já pela perspectiva do declínio da esfera pública, surge um corpo-imagem, um corpo celebrado e celebrizado como fonte de poder e sucesso através de sua exposição nos meios de publicidade e comunicação de massa – e dos investimentos necessários para sua modelação e longevidade -, mas mesmo através dos relacionamentos mais íntimos, tudo isso em contraposição a um corpo invisível dentro do possível, quando não, apenas tolerado por todos os limites e inconvenientes que ele suscita quando já não “funciona”

perfeitamente88 – em oposição ao “velho” corpo funcional, surgiria um corpo espetáculo. Talvez seja revelador o fato de que, para explicar a transição, a ênfase recai totalmente na compreensão do que teria se tornado a dimensão corpórea no presente, ficando o passado muito mais relacionado a uma moralidade do trabalho e das realizações na vida pública. É como se a crítica endereçada a uma espécie de obsessão e enjaulamento contemporâneos pelo aqui e agora, retornasse inadvertidamente para o algoz. Pois só se reconhece o corpo quando ele nos aponta uma arma. Destarte, há uma perda analítica de percepção da continuidade e do significado amplo dessa dimensão, já que o corpo seria desmemoriado, incapaz de retensões durávies.

Embora seja bastante valiosa e necessária a exploração do argumento de que a constituição de um modelo de sociedade baseado exclusivamente no consumo e na busca por prazer numa economia de mercado capitalistamente orientada, possa vir a trazer conseqüências, no mínimo preocupantes, para a tessitura dos afetos, da vida em comum, da relação que estabelecemos com os outros e como equilibramos tudo isso com uma imagem de um nós e um eu em busca de oportunidades, tendo a duvidar – embora não seja o caso de tratar disso aqui - de que padrões distintos de moralidade não estejam surgindo e, principalmente, tem-me intrigado essa imagem do corpo identificada quase que a um vilão

88 Em relação a Foucault, por exemplo, apesar de entender sua contribuição como fundamental, não posso

deixar de apresentar um ressalva que acredito ser necessária no que diz respeito ao seu modo de pensar. Ainda que a percepção do autor quanto à relação entre o corpo e os controles, seu reconhecimento do corpo como “realidade bio-política”, pareça contribuir em muito para o debate e reconhecimento do estatuto do corpo, inclusive como uma espécie de nó no qual poderiam e deveriam se concentrar muitas das pesquisas em humanidades, Foucault talvez ofereça um argumento restritivo sob determinado ponto de vista: o corpo, ao emergir insistentemente em sua análise como resultado de modelações opressivas, controladoras etc., - ainda que seja também retransmissor numa cadeia - parece cada vez mais se contrapor a um outro local no qual existiria a liberdade e a subversão, através, claro, da redefinição e reposicionamento desse próprio corpo diante dos efeitos das tecnologias científicas e institucionais que nele incidem. A dificuldade então, ao meu ver, estaria no seguinte: ao mesmo tempo em que sorrateiramente começam a se constituir dois lugares analíticos opostos - o da liberdade e o da opressão –, também começa a ficar difícil qualquer interpretação em que se pretenda considerar as formas de expressão e mesmo àquelas subversoras - essas regiões de “liberdade” - enquanto dependentes de práticas modeladoras e constitutivas, processos pedagógicos formativos, inclusive, disciplinares, se estendermos a expressão. Ao que parece, a relação entre liberdade e opressão tende a se absolutizar como dois lugares estanques. O corpo, embora desconstruído, pois subordinado a processos que ele não controla e que não são jamais naturais, corre o risco de se naturalizar enquanto síntese corpo-poder, substância e efeito exclusivo de um poder que tende a ser, em última instância, sempre repressor. Não posso deixar de repetir, os caminhos que se abrem a partir daí são muitos, e o argumento do autor não é em absoluto tão simples; mesmo assim, acredito que seguindo-o com excessiva fidelidade, incorre-se no risco de não se respeitar o fato de que a própria idéia abstrata de corpo, essa noção tão controversa, é também resultado de um processo histórico constitutivo de várias mãos. Nem sempre, e nem em todos os lugares as pessoas puderam se reconhecer como possuidoras de corpos, ou mesmo enquanto parte de um corpo, ou um corpo-poder, “bio-político”. Fazê-lo agora não garantiria, necessariamente, qualquer certeza de um avanço.

– ao menos, no que seriam as suas particulares e atuais modelações por parte da “cultura”. De fato, nenhum dos autores até agora citados – talvez à exceção de Bauman - dá uma atenção específica ao corpo. Mas em todos eles, o corpo aparece subrepticiamente, e quase sempre associado a imagens destrutivas ou pejorativas, no mínimo egoístas e individualistas89. A importância desses autores, entre outras coisas, estaria no fato de que apontam para um olhar particular sobre o consumo, a moralidade e sua relação com as emoções e pulsões que, no meu entender, continua adentrando na análise das chamadas “sociedades do consumo”. Inclusive como, ao se pensar as porosidades presentes no campo religioso, esses novos fenômenos jogam um peso fundamental. Destarte o corpo, sua exibição excessiva e fútil seria expressão acabada de um tipo de caos moral e social, um tipo de crise de nossa época que estaria contaminando todos os domínios da vida.

Assim, o que me parece mais revelador não é o fato de que o esforço resida em desmascarar esse vilão, mas sim, pretende-se apontar para os malefícios perpetrados pela perda e esfacelamento de determinadas modalidades interativas – a perda de valores. E, insisto, ao que parece, quando tudo desaparece, resta apenas uma imagem relativamente restritiva do corpo, condicionada por um consumismo compulsivo, uma certa imagem hedonista – também ideal irrealizável - do mundo, e uma conversão do espaço público numa arena de espetáculos nos quais as metas individuais dizem respeito ao aproveitamento máximo das oportunidades disponíveis de celebrizar-se no mercado das celebridades. Não rejeito a coerência e valor analítico de muitas dessas asserções, inclusive, compartilho com parte delas. Todavia – não obstante o mérito dessas e de outras muitas contribuições -, o risco incorre em não se precaver do fato de se tratar de uma leitura bastante datada, e de um recorte particular, em que características específicas foram adquirindo ênfase de acordo com os contrastes e rupturas que se queria localizar. A cautela relaciona-se com a possibilidade de que ao se abraçar um tanto quanto exclusivamente uma perspectiva “crítica” em relação ao consumismo compulsivo, por exemplo, uma via

89 Ao que parece, muitos dos autores que vieram, ou mesmo vêm perseguindo esse vinco analítico, estariam

de certa forma em busca da Sociedade como via possível. Estranhamente, ao mesmo tempo em que encaram os processos que descrevem como sociais, interpretam seus efeitos e desdobramentos como não sociais, ou mesmo anti-sociais. Diz Daniel Bell: “[trata-se] da satisfação do impulso como modo de conduta” (grifo nosso). Mas se o impulso é o inespecífico, não modelado e, portanto, não social, como se sair do paradoxo? É como se o indivíduo contemporâneo padecesse de um isolamento agonizante e irremediável. Tal isolamento e solidão apresentar-se-iam então como ameaças à segurança e bem estar humanos, constituindo-se, paradoxalmente, enquanto entraves à própria auto-realização destes indivíduos em sua busca “egoísta” - e, em última instância, irrealizável - por felicidade. O quadro é por certo desesperador.

analítica que valorize a dimensão do corpo de modo mais abrangente seja, ironicamente, sacrificada.

Em primeiro lugar, muitos dos trabalhos que vieram alardeando os riscos de um tipo de sociedade consumista, “egocentrada”, e, até mesmo hedonista, não conseguiriam estar sensíveis ao fato de que tal ideal de mundo, embora dotado de um forte apelo e capacidade em se impor, precisaria todo o tempo estar delimitado e, portanto, negociando com outras ordens e lógicas de vida, através das quais, o valor mercado e a busca indiscriminada por prazer e satisfação não seriam bem-vindos. E, ainda que múltiplas esferas da vida venham se “contaminando” por tais orientações práticas, transbordariam algumas questões. Ou seja, mesmo que se admita ser indesejável e deletéria a construção de uma sociedade na qual as práticas consumistas comporiam parte fundamental, elas não participariam sozinhas na definição das hierarquias de valores pessoais e das estimas.

Assim, em segundo lugar, perguntar-se-ia: mesmo que esse processo esteja acontecendo, não seria coerente pensar que na complexidade e variedade das trocas, os resultados e efeitos das interações seriam, a rigor, imprevisíveis, muitas vezes inclusive jogando contra qualquer “tendência” exclusivista e totalitária do mercado, aqui, essa entidade abstrata e supra-individual? E, terceiro, para continuar, o próprio “mercado” talvez não se assemelhe a um projeto, ou resultado de um projeto tão claro. Suas agências e agentes talvez – principalmente numa circunstância de transnacionalização intensa do capital, trabalho, consumo e fluxos especulativos - trabalhem em graus de organização e perspectivas, bem como na definição de objetivos diferenciados ou mesmo conflitantes e que eles não controlam, não só do ponto de vista de uma concorrência por consumidores, mas também do ponto de vista de um modo de entender e se definir nesse espaço, em um nicho específico, ou em vários. Por exemplo, provavelmente, há uma diferença de perspectiva sobre o que deve ser o mercado e sua relação com o Estado e os consumidores – reais ou possíveis – entre os principais representantes do setor industrial no Brasil, e alguns dos agentes da especulação financeira – ainda que muitos transitem entre os dois locais de atuação.

Também, tais argumentos parecem menosprezar um dilema delicado. Ora, ao tratar da dificuldade que uma certa desvalorização do trabalho, alinhada as conseqüências que um progressivo desenvolvimento de uma busca consumista desenfreada traria, os autores dão a impressão de desconsiderar o fato de que a esfera do trabalho, para a maioria da população constituinte do modo de produção capitalista - mas mesmo antes dele - seria um espaço de opressão, controle, disciplinamento, e mesmo de várias formas de violência física e simbólica. Caracterizou-se assim em suas origens, mas, ainda hoje se caracteriza, a depender da atividade e da região do mundo em que é exercida. Não bastaria falar-se de uma fuga da monotonia, pois o trabalho nem sempre é monótono, ou apenas monótono e a monotonia não é um estado. Provavelmente, sob o ponto de vista – principalmente os mais jovens - dos que viveram as chamadas décadas de ouro, muitas coisas também pareceriam estar mudando muito mais rápido e intensamente do que as gerações de seus pais e avós poderiam ter vivido, ou sequer imaginado. Ou seja, a mudança só seria lenta ou rápida de acordo com o que fomos preparados para aceitar, assimilar e entender.

Também, atualmente penso que haveria uma tendência nas ciências humanas e sociais a se considerar – em boa medida com base nas relações travadas com as gerações anteriores – que o passado de uma forma geral foi sempre mais lento e estável em quase todos os sentidos, quando comparado ao presente; claro, uma vez consideradas as atuais condições de vida, troca, produção, consumo, afetos etc., de muitas das regiões atuais do planeta. Muitas descrições sociológicas e antropológicas tendem a facilmente corroborar uma leitura afeita à substancializar a relação entre mudança e estabilidade – seja ela correta ou não. Todavia, aceitá-la sem prevenção seria apoiar inadvertidamente a velha mitologia do progresso. Algo só é monótono quando contrastado com alguma outra coisa que possa se afirmar como valor sob o ponto de vista dos agentes implicados. O “monótono” não é monótono90 em si, mas apenas diante da demanda e abertura para algum tipo de mudança

90 Mas, não se deve negligenciar, a busca por formas variadas de excitação, bem como a sua exibição pública

não seriam novidades, aliás, muitas vezes associadas a atividades especializadas, como as dos gladiadores romanos e os participantes dos jogos medievais. Ou seja, ainda que de forma peculiar, inclusive, muitas das sociedades modernas continuam, a despeito das longas campanhas e itinerários civilizadores de pacificação, reunindo centenas, milhares, ou mesmo milhões de expectadores ao redor de explicitamente sangrentos – ou, ao menos, sob a suposição da morte ou descontrole iminente, como na fórmula 1, o circo, “esportes radicais” etc. – espetáculos. Sejam eles em forma de esporte, ou na exibição visual, e, secundariamente auditiva, mas nunca tátil e olfativa, dos corpos das vítimas de acontecimentos trágicos, sobretudo os resultantes de ações humanas deliberadas. Inclusive, a estetização em forma de espetáculo público dos riscos e da morte, talvez seja parte fundamental da nossa formação, lugar tradicionalmente atribuído aos homens e agora cada vez

que se antecipe - e não qualquer mudança, apenas as que aprendemos a enxergar, desejar ou rejeitar. E, sempre, para uns mais cedo, para outros mais tarde, estendendo-se ao revés do horizonte de um possível; fora isso, o que haveria? O que variaria e bastante, seriam as formas de lidar com tipos de mudança que não controlamos, de que forma nos afeta, e, nesse caso, quase nada, individualmente ou isoladamente controlamos. E, quanto a isso, parece valiosa a percepção de Sennett de que se estaria vivendo um tipo de rotinização dos riscos e das incertezas no interior das atividades produtivas e – nos avisa Bauman – em vários outros setores da vida. E, da mesma forma, fica por ele indicado que nem todos possuiriam meios idênticos e aufeririam vantagens ou desvantagens idênticas diante do desenrolar dos acontecimentos. Ou seja, seriam assimétricos os equipamentos afetivos, morais, econômicos e cognitivos para responder as demandas que se põem.

Inclusive, os relacionamentos que se podem constituir em ambientes de trabalho considerados agradáveis muitas vezes adquirem prioridade, ou mesmo diluem conseqüências indesejáveis advindas da repetição, monotonia e aspereza atribuídas a uma determinada atividade: “[...] e a linguagem nasce, como a consciência da carência, da necessidade de intercâmbio com outros homens.” (MARX, 1999, p. 43) Todavia, argumentos mais estreitos parecem desconsiderar, ou ao menos secundarizar o fato de que para bem poucos, os efeitos drásticos e opressores de suas atividades eram – e ainda o são – permeados por condições assimétricas e normalmente indesejadas de poder; inclusive, mesmo quando é ou foi possível o desenvolvimento de microresistências, subversões, irreprimíveis, sutilezas e “heresias”; mesmo, inclusive, quando se abre a possibilidade do conflito aberto e organizado, seja ele pacífico ou não, utópico, herético ou subversivo.

mais partilhado pelas mulheres – esteja-se no lugar do “guerreiro(a)” ou expectador(a). Todavia, acredito que a disposição ao risco não se restringe ao espetáculo; ora, é preciso que haja muitos dispostos a participar de determinadas atividades como protagonistas e, eu duvidaria de que o desejo em espetacularizar-se, por exemplo, seria motivação exclusiva e suficiente, ainda que participe em vários momentos da vida, desde a infância e em várias circunstâncias para além da modalidade do espetáculo midiático, estrito senso, este, forjado, pela espacialidade opositiva: produtor (a Atividade – muitas vezes manipulatória) x espectador (a Passividade – basicamente ôca). Os responsáveis pela produção do espetáculo, e não apenas os esportistas, nesse caso, mas também os profissionais da televisão e dos jornais, publicitários, fotógrafos, comentadores e “formadores de opinião” etc. Estes últimos são normalmente experts, pessoas de idade mais avançada – relativamente ao que permite e exige uma dada modalidade – e que já abandonaram a carreira, são preferencialmente reconhecidas como capacitadas em função de um passado de glórias e respeitabilidade pessoal.

Ainda que o trabalho – e isso não pode ser negligenciado –, ou, melhor dizendo, a atividade produtiva, possa sim ser responsável por parte fundamental da nossa vida e dos nossos valores, não se pode esquecer, ou, melhor dizendo, operar por fora das continuidades, só perceptíveis em durações bastante longas, como nunca deixou de fazer Marx, que em dadas condições do desenvolvimento histórico tal atividade passa a se definir também como espaço de estranhamento e fragmentação e, portanto, dependeria da elaboração e manutenção das assimetrias de posições definidoras de estruturas particulares de dominação. Tais transformações, embora sujeitas a crises de tempos em tempos, só ocorreriam mediante a acumulação de processos sociais mais lentos e anteriores – fundamentalmente, a divisão do trabalho. Seriam essas as condições do desenvolvimento de um tipo particular de relação com a própria atividade – basicamente, relações sociais produção -, bem como com o tipo de vida a ela relacionada, que no sistema capitalista entendido enquanto modo de produção histórico específico, definiriam o que o próprio Marx denominou de alienação. A alienação estipularia, portanto, uma sensação de apartamento do mundo, de oposição, de ausência de integridade. No meu entender, Sennett, por exemplo, percebeu bem isso, todavia sua dificuldade residiria em conseguir coordenar a expressividade dos seus “casos” com uma compreensão histórica.

No documento DO REINO DE DEUS (páginas 139-145)

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