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5 – SOBRE AS FRONTEIRAS: Teologia da prosperidade, guerra espiritual,

No documento DO REINO DE DEUS (páginas 193-200)

Iniciarei com uma melhor especificação dos termos em que muitas coisas são postas no interior das práticas religiosas pentecostais – principalmente as ligadas aos novos movimentos - brasileiras em linhas bastante gerais, para pouco a pouco ir distendendo os fios que ligariam tais práticas a uma determinada constelação de eventos e fatores mais extensa. Começo então com a noção de prosperidade. Ora, o que seria a prosperidade? Esta, de forma simples, é o resultado da vitória, é o obter sucesso na vida, a meta de quase todo fiel participante de um culto pentecostal, sobretudo os da chamada terceira onda. Mas, tanto o sucesso, o acesso ao objeto de desejo não é sempre a mesma coisa, como a obtenção desse sucesso só é possível se se aceitar o poder de Deus operando na própria vida. Em verdade, é Deus quem concede o sucesso. Tal aceitação resume-se, sob um ponto de vista doutrinário mais estrito, na aceitação de Cristo e no reconhecimento do seu poder enquanto único poder libertador. A libertação se dá mediante o conhecimento do saber revelado, através da intimidade dos homens com Deus, da aliança e comunhão entre ambos.

Para se compreender a configuração de tal aliança e a especificidade do contato entre os mortais e pecadores por um lado, e o sagrado, o puro e eterno de outro, torna-se imprescindível realizar uma breve e bastante seletiva escolha de quatro aspectos do que seria, em termos muito gerais, uma certa cosmologia pentecostal. Aqui, apresento características também presentes em outras pentecostais como a Igreja Pentecostal Deus é Amor, um pouco mais afeita à doutrina e que foi estudada em minha pesquisa monográfica de conclusão do bacharelado; assim, em linhas gerais, apresentam-se um pouco do que é aceito no universo pentecostal atual como um todo, mas que também se pode observar na Universal. Dessa cosmovisão retirarei algumas características:

o Uma declaração de guerra à hierarquia do mundo maligno: Há

uma grande luta no universo entre duas forças opostas. Uma representando o mal e a desordem, e a outra, a ordem e a unidade. O desenlace e objetivo final e inevitável da guerra cósmica entre o bem e o mal é a derrota de Satanás e sua legião de muitos demônios;

o Reprodução do princípio criador nos seres humanos: Homem

formado pelo Espírito divino e pela alma;

o Reprodução da guerra cósmica nas trajetórias de vida humanas:

A guerra espiritual se dá nas vidas de cada um. Deus e o Demônio lutam para “ganhar” as almas para um, ou para outro lado. Em ambos os casos, são oferecidos bens para os homens, ainda nesta vida. Todavia, o Diabo, diferentemente de Deus, ao trazer os bens, traz desordem e sofrimento, neste mundo, como também exigirá o resgate da alma do homem idólatra como pagamento, no futuro, para o inferno;

o Todos os cristãos têm o direito à vida material abundante, desejo

esse emanado de Deus, criador benevolente e senhor dos dois mundos: o mundo espiritual, mas também o mundo terreno. Nesse sentido, vale notar duas coisas: em primeiro lugar, a importância dada à experiência com o Espírito Santo, em segundo, a responsabilidade contraída pelo fiel em seu contrato de fidelidade estabelecido com o criador. A respeito da experiência com o Espírito refere-se, num plano, à experiência extática caracterizada pela possessão, mas também a certa sensação contínua da presença de Deus na vida. Nesse sentido, dá-se um valor e significado centrais para a participação humana nos mistérios divinos através da experiência de empoderamento. Essa experiência é, ao que parece, o principal canal de comunicação entre Deus e os homens, o lugar de contágio e abertura. Esta, não só dota o ser humano de um conhecimento que está além dele mesmo, como o fortalece, tornando-o melhor e mais confiante. O indivíduo através da experiência com o Espírito Santo torna-se ele mesmo algo que se ultrapassa. Portanto, torna-se capaz de identificar algum sentido neste mundo através de sua relação com Deus. Experiência bem diferente da desolação calvinista diante da vida.

Tal experiência é marcada por forte emotividade e tratada como propiciadora de muito prazer, ainda que essa dimensão não esteja sendo explicitada, ou claramente

posicionada pelos participantes. De fato, provavelmente não se freqüente um culto na IURD visando-se exclusivamente obter prazer, em si mesmo, mas o reconhecimento da validade de certas experiências, inclusive com o Espírito Santo, parece tender a se dar através da identificação de uma incursão prazerosa:

Cê sente, dentro de você, é... como é que eu posso descrever... É uma coisa assim, tem pessoas que chora, outras que dá risada, não risada escandalosa [...] Sabe quando você se

lembra de uma coisa gostosa, e dá aquela risadinha assim... Cê tá ali meu Deus, eu te amo, eu te adoro. Você só tem vontade de louvar, de agradecer a ele [...] Você não se joga no chão, você não pula, não bate, você não briga, nada [...] O Espírito Santo é de paz, é uma intimidade sua com Deus. É uma intimidade [...] Então você sente aquela presença mais

gostosa, mais íntima. Você tá falando com Deus e suas lágrimas tão descendo [...] O que você tem pra falar com ele não interessa a pessoa que tá do lado [...] Só interessa a você e a ele [...] Você fica sentindo seu corpo adormecido, sua carne, seu coração, sua carne se treme toda, as lágrimas começa a descer, seus lábios começam a tremer, porque você tá se lavando, você tá se abrindo como você nunca se abriu pra ninguém. Então você não se

sente ali. Você sabe que o pastor tá pregando, tá orando lá, que tá tocando uma música, mas quando o pastor diz amém você diz amém (risos) [...] É... quando a pessoa tá tendo relação sexual, cê sabe o que tá acontecendo ao redor... Se o vizinho gritar lá (risos) Então, é uma intimidade sua. A sua parceira sabe o que você ta sentindo? (INFORMANTE, MULHER, 42 ANOS)

Definitivamente, trata-se de uma vivência de prazer e mesmo lúdica, mas que por certo demanda concentração e condução regulada das próprias emoções na busca por felicidade e alívio. Aqui a intimidade é correlacionada ao prazer, o controle da experiência, uma posse onde a intimidade liga-se a uma experiência inclusive sexualizada. É como se definisse um espaço próprio, imune as invasões estranhas. E isto, numa relação de complementariedade com a busca de transformação e renovação da vida em torno de determinados objetivos. Basicamente os bens que se colocam como relevantes em primeira mão, seriam os referentes à saúde, à riqueza, e ao amor. Mas, generalizando um pouco, a diferença que acentuo é que justamente no pentecostalismo brasileiro, diferentemente da versão puritana como foi formulada por Weber, uma componente fruitiva deve ser incorporada enquanto acontecimento legítimo e sagrado, e não necessariamente como ameaça à salvação da alma. Assim, as idéias de satisfação e prazer associadas a um sentimento de dignidade, construção e elevação da estima estão aí inscritos. De fato, é sintomático que uma das palavras mais repetidas nos cultos que estudei é a palavra gozo, bem como a idéia constantemente atualizada de um fim do sofrimento. O “Pare de Sofrer!” da Igreja Universal. Esse pare de sofrer liga-se num primeiro momento a uma negatividade, um cessar de fatores prejudiciais à vida, normalmente ligados à presença

maligna de entidades demoníacas no corpo, ou agindo próximas ao afligido. Para em seguida, dar-se paulatinamente vazão a um sentimento e emotividade fortes de poder, libertação e positivamento. Todo o processo liga-se a construção da estima do indivíduo, que passa de uma condição de inferioridade para um estado confiante e entusiasmado de graça.

A própria provação deve ser expressa, e não apenas como um desabafo, uma experiência catártica, mas como uma forma de elaboração e aprendizado mesmo do prazer, satisfação e positividade que estão inscritas na entrega a Cristo; ao mesmo tempo, luta contra o mal e atribulação presentes na vida. É claro que nada disso acontece de um momento para o outro, sem contradições, vacilações ou conflitos. Os nós nas cadeias se afrouxam e retensionam em várias idas e vindas. Mas o argumento da ignorância não é mais válido, o fiel vê-se compelido a tentar. Provavelmente, a inserção no mundo, dessa forma, exigiria, junto à busca de prazer um forte elemento de disciplinamento e autocontrole que levariam à prorrogação do prazer, o seu adiamento, sem que com isso seja acompanhado de um esmorecimento do “espírito”. Se por um lado a vida não deixa de parecer difícil, por outro, torna-se possível desvencilhar-se das correntes do aqui e agora, faz-se premente alguma ousadia para projetos de médio e longo prazos. Ou seja, talvez haja aí um prazer na espera que se distende através de uma incessante renovação e atualização do poder de Deus, sobretudo em seus sinais discerníveis pela possessão através do Espírito Santo. E é nesse ponto que eu pretendo explorar uma relação possível entre o empoderamento e a idéia de guerra espiritual, bem como suas conseqüências para uma teologia da prosperidade.

Ora, pode-se pensar, a respeito dessa espera, numa ligação com um forte apelo presente na promessa escatológica. Ou seja, a ocasião da última espera, em que o messias retornará e eliminará todo o mal do mundo. Até lá, cada fiel se reconhecerá enquanto um soldado do Senhor, lutando no interior dessa imensa guerra cósmica entre Deus e o Diabo. Guerra essa que se dá a cada dia, nos corpos de cada criatura de Deus aqui na Terra. A percepção de vida nutrida entre muitos pentecostais assemelha-se em vários aspectos a uma conquista, um campeonato, um jogo, até quem sabe, a uma partida de futebol. Nessa arena tempestuosa e cheia de dificuldades, de provações, as únicas coisas que os homens

têm a oferecer são a fé e a oferta pela fé – uma fé a caminho de transformar-se em convicção119. Uma imagem de que me recordo, é a produzida por um pastor da Universal em um programa de TV, em que ele comparava a relação do homem com Deus, como uma relação de parceria, sugerindo mesmo uma visão empresarial e de complementariedade da coisa.

Todavia, como já foi dito a recorrência à experiência com o Espírito, se isolada, nos levaria a andar em círculos. Acredito que para que ela adquira maior densidade o seu significado precise ser colocado mais explicitamente em contraposição- complementariedade à presença dos demônios enquanto expressão do mal e tribulações na vida das pessoas e isso, principalmente, quando contando com a conivência do desconhecimento, da ignorância. Trata-se, de fato, de uma questão fundamental para o cristianismo: o problema do mal. Mas, para o trabalho, terão importância secundária as diversas perspectivas e querelas teológicas e doutrinárias. Trata-se apenas de descrever e interpretar o mal enquanto imagem e fronteira prático-vivencial encarnada e incorporada numa leitura de mundo cotidiana e rotinizada pelos indivíduos. Também, entender como o extraordinário do sagrado e do Deus em sua luta contra o mal, adquire um sentido pleno quando transborda e excede o momento encantado e por vezes extático do culto. Ou seja, quando o mito da luta original entre Deus e o Diabo, encenado em fabulosos exorcismos, orações, transes etc., é recuperado com significados renovados, infiltrando-se e inflando de sentido o mundo cotidiano. Justamente, a questão proposta para a dissertação toca na maneira como se constituiriam alguns desses sentidos.

Voltando: especificamente, se buscará aqui compreender as práticas, concepções, representações e sensibilidades relacionadas aos eventos do chamado “consumo de massa”120 e busca por satisfação no discurso e práticas iurdianas, bem como a

119 “[...] o significado de ser salvo está claro na pregação dos pastores dessa igreja de forma extremamente

simplificada, por meio de uma série de contrastes que definem claramente a movimentação do crente de um campo de realidade para outro. Não primeiramente do pecado para o perdão, mas, antes, do esvaziado para o pleno, do arrasado para o próspero, do humilhado para o respeitado, do reprimido para o feliz, da angústia para a paz, e da solidão para a vida em comunidade na Igreja [...] Salvo é ser chamado a participar em uma luta de significado global e eterno para estender o reino de Deus.” (SHAULL, 1999, p. 185)

120 Nesse ponto o debate precisa cruzar-se com certa imagem do popular, na qual precisarei tocar vez ou

outra, aliás, o mais importante para o trabalho, quando ligado ao termo consumo de massa, tanto de objetos, como de artigos culturais e serviços, é que se precisa operar com o problema da identidade por vezes implícita entre popular e práticas consumistas em oposição a produção, atividade e criação. Interessante que

especificidade das práticas, reações, disposições, interações, modos de perceber, processos de institucionalização e disputa desenvolvidos pelos grupos pentecostais para lidar com tais eventos; sempre tendo em vista, as possíveis relações com a simples presença ou mesmo transe através da possessão pelo Espírito, ou por demônios. De fato, é bem conhecida de todos a intensa aparição de entidades demoníacas na IURD. Tais aparições tornaram-se famosas através de grandes espetáculos televisivos, em que impressionantes exorcismos dão-se diante de milhares, ou mesmo milhões de expectadores, principalmente através da rede Record, de propriedade da IURD. A intimidade e cotidianidade do contato com os demônios impressiona. Também, é mais ou menos sabido que na Universal, entidades e orixás, presentes nas religiões afrobrasileiras, não só ganham expressão, como são tratados inequivocamente como demônios. Daí, a fisionomia ritualística da guerra espiritual, em uma circunstância bastante peculiar, na qual, no jogo das alteridades e acusações no campo, a construção e vitória sobre o inimigo insere-se no interior dessa imensa batalha cósmica entre o bem e o mal, entre Deus e o Diabo. Da mesma forma, a possibilidade de sucesso na vida, estaria condicionada pela adesão ao lado do bem na contenda, e pela conseqüente vitória nessa guerra, a guerra contra satanás – teologia da prosperidade.

Uma vez definido que se pretende seguir tal caminho, passo a indicar a maneira pela qual tais significados poderiam emergir, ou, dito de outra forma, de que maneira se pretende fazer com que ao se atentar para a relação que os indivíduos estipulam com as noções de bem e mal, vá se tornando plausível tratar-se de descrever e analisar uma configuração de relações muito mais complexa. Para tanto, tentarei construir a condição de adesão religiosa enquanto feixe de relações de afinidades entre fiel e culto em que a possibilidade e especificidade do êxito do encontro precisaria estar todo o tempo demarcada pela correlação com um conjunto extenso e diversificado de alternativas concorrentes, frente às quais os indivíduos estabeleceriam variadas modalidades interativas, inclusive à revelia do estipulado como legítimo por uma auto-imagem oficial,

também, no caso do Brasil, provavelmente a tematização sobre consumo não ter tido peso, ou pouco ter comparecido nos debates e utopias dos primeiros idealizadores do nacional. Sendo assim, a questão, bem como o fato de sua relativa omissão, parecem dignos de nota.

quando assim houver, dos grupos – sejam elas marcadas por negociações, trânsitos, conflitos etc.

Aqui, cabe reiterar e discernir o papel analítico que a noção de mal, sobretudo na figura de espíritos malignos, ou seja, demônios, cumpre no trabalho. Caso seja correto afirmar que tal noção indica para algo mais que um aspecto exclusivamente doutrinário ou teológico, ou ligado apenas à experiência religiosa em si mesma, trabalharei, diante do anteriormente exposto, com a possibilidade de que as entidades malignas contribuem como marcos cognitivo-perceptivos entre fronteiras de espaços relacionais, ajudando a modelar ajustamentos práticos das condutas dos fiéis. De fato, provavelmente, não seria absolutamente novidade essa imagem do demônio como habitante de uma fronteira. E, no entanto, o que mereceria futuramente maior dedicação e interesse, seria a possibilidade de se descrever e analisar um conjunto de fenômenos de fato ainda pouco estudados e relativamente desconhecidos a respeito das adesões e práticas religiosas no Brasil. Pois, se não é nova a associação dos demônios a habitantes de uma fronteira e, se é justamente dessa ancestralidade que o mito se renova e tira sua força (BASTIDE, 2006), é também dessa forma que ele adquire a feição enganadora do imutável e excessivamente familiar, travestindo de intrinsecamente e exclusivamente religioso o que, possivelmente, guarda interdependências e particularidades bem mais complexas, datadas e dinâmicas, ainda que muitas vezes credoras de aspectos relacionados do passado. Ou seja, trata-se desse lugar de sobreposições e confrontamentos em que a tensão entre continuidades e descontinuidades atravessa as sociabilidades fornecendo a elas uma dinâmica permanente. Dessa forma, a racionalização da relação entre os homens e o sagrado só é compreensível porque os homens precisavam racionalizar as relações entre si, ou, melhor dizendo, estariam como que condenados, pela própria condição de seres humanos a tal racionalização.

No documento DO REINO DE DEUS (páginas 193-200)

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