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FUTURO SÍMBOLO

3.4 Dentro do reflexo literário

O fragmento inicia-se com a menção da cicatriz em forma de raio na testa de Harry Potter, que adquiriu ainda quando bebê na noite em que seus pais foram assassinados por Voldemort. A cicatriz foi gerada quando o bruxo tentou matar o garoto com a maldição imperdoável da morte (conhecida pelo feitiço Avada Kedrava), porém isto foi impedido porque Lilian Potter tentou salvar seu filho. Por este ato de amor da mãe, Harry Potter sobrevivera à maldição imperdoável.

Ao longo de toda a saga literária, quando Harry Potter sente dor em sua cicatriz, o garoto interpreta esse sinal como uma forma de alerta para o perigo ou da presença de seu principal inimigo. No momento do fragmento, a escolha do léxico “estourou” para explicar a sensação de dor que surgiu de repente desperta no leitor essa presença do inimigo seguida por uma sofrida dor.

Na descrição “Então a cicatriz de Harry estourou e ele sentiu que estava morto: era uma dor que superava a imaginação, uma dor que superava a capacidade de sofrer...” (Rowling, 2003, p. 660) compreendemos que aquela não era uma simples dor, semelhante àquelas sentidas em momentos anteriores da série literária. Esta era uma dor que superava o que Harry acreditava ser o limite do que se pode aguentar, era uma dor que superava os limites físicos do corpo do garoto. A presença de reticências ao final do parágrafo representa esta dor infinita, indescritível por meio de palavras. É uma dor tão intensa que palavras não são capazes de reproduzir a sensação, vai além do que é descrito, dá a sensação de não ter fim.

Em seguida, é narrado que Harry é tirado do espaço em que está por uma criatura: “Ele foi levado do saguão, preso nas espirais de uma criatura de olhos vermelhos [...].” (Rowling, 2003, p. 660). Há um destaque da cor dos olhos da criatura, que são vermelhos. A cor vermelha na literatura, tendo destaque à literatura fantástica, é associada ao que é mágico ou ao irreal. Na antiguidade, o vermelho era a cor dos mantos que cobriam túmulos, pois havia uma crença que acreditava que, assim, aqueles mortos poderiam ter uma vida póstuma. Segundo Pedrosa (2010), o vermelho remete ao perigo. A cor vermelha também simboliza o orgulho, a violência,

No caso desta criatura, o vermelho está compenetrado no olhar, dentro da criatura, esta que arrasta Harry Potter para uma condição de violência cada vez mais intensa, tão intensa que seria capaz de suprir as barreiras da própria vida, como se a criatura estivesse levando Harry Potter para uma condição em que sentiria dor mesmo após a morte, assim como os mortos da antiguidade também teriam a possibilidade de ter uma vida pós-túmulo, Harry Potter teria que continuar a sofrer mesmo pós a morte. Em seguida, é descrita uma sensação de corpo único: “[...] preso nas espirais de uma criatura de olhos vermelhos tão apertadas que ele não sabia onde terminava o seu corpo e começava o da criatura, estavam fundidos, unidos pela dor e não havia saída.” (ROWLING, 2003, p. 660). Harry Potter está preso à criatura por meio de espirais, ou seja, preso por um mecanismo que dificulta a saída ou qualquer movimento. Ao ler esta descrição, o leitor poderá, inclusive, ter uma sensação sinestésica de desconforto ao imaginar um mecanismo espiral intrínseco à pele humana, permitindo sentir o mesmo desconforto ou parte da dor sentida pela personagem naquele momento. Preso pelo mecanismo espiral de modo tão apertado, Harry Potter e a criatura que o arrasta agora são apenas um único corpo, envolvido especialmente pela dor que está sentindo.

Tal descrição da criatura pode remeter também à figura de uma cobra, animal muito citado na saga Harry Potter. Voldemort pertenceu à casa Sonserina quando estudou em Hogwarts, e o símbolo desta casa é uma cobra. Os alunos desta são astutos e audaciosos, como a índole do animal que a representa. Quando se torna poderoso, Voldemort criou Naggini, uma cobra que, na verdade, abriga parte de sua alma e marca presença em alguns momentos na série literária e cinematográfica, sempre acompanhando o Lord das Trevas. Harry Potter, por sua vez, também consegue falar a língua das cobras, bem como Voldemort, e quando entrou em Hogwarts, o Chapéu Seletor induziu que o colocaria também na casa Sonserina, porém não o fez por pedido do garoto. Com o decorrer da série, figuras de cobra estão presentes na obra. Em Harry Potter e a Ordem da Fênix, quando Voldemort possui a mente do garoto pela primeira vez, ele manipula o sonho para que o garoto não veja o ataque e sim ataque uma pessoa, Arthur Weasley, porém não como ser humano, mas como uma cobra. Deste modo, a figura de cobra pode representar o lado mal que Harry Potter abriga dentro de si: o fato de que ele também abriga uma parte da alma de Voldemort consigo. No caso da criatura que o cerca nesta passagem, podemos

afirmar que pode representar o conflito e combate que enfrenta ao lutar contra o seu inimigo dentro de si próprio.

Neste mesmo sentindo de junção de dois corpos em um só, no fato narrado seguinte entendemos que a criatura agora está falando, e está utilizando o corpo, a boca de Harry Potter como um instrumento para se comunicar: “E quando a criatura falou, usou a boca de Harry, fazendo com que, em sua agonia, o garoto sentisse o queixo mexer.” (ROWLING, 2003, p. 660). Neste momento, percebe-se que há a perda do arbítrio, ou seja, há a perda do domínio próprio, a criatura toma posse do garoto que passa a agir em função do dominador. A fala dita no momento seguinte “– Me mate agora, Dumbledore...” (ROWLING, 2003, p. 660) pode ser considerada ambígua, aqui não há a certeza exata de quem está falando, podendo ser levantadas duas opções: a primeira pode ser a fala de Voldemort, que possui agora Harry Potter, induzindo o bruxo Dumbledore a matar o garoto, fazendo-o pensar que é um pedido do próprio Harry Potter, e a segunda pode ser a fala do próprio Harry Potter implorando e rendendo-se à própria morte para que aquela dor e aquele sofrimento acabem.

No momento seguinte, a súplica para aquela dor parar é renovada em “[...] cada parte do seu corpo gritando por alívio [...]” (ROWLING, 2003, p. 660). Aqui ocorre uma personificação do corpo: ele grita, ele sofre (assim como Harry Potter sofre), ele pede para que aquilo pare.

Ainda na ideia de posse, a criatura usa o garoto mais uma vez, dizendo: “ – Se a morte não é nada, Dumbledore, mate o garoto...” (ROWLING, 2003, p. 660). Desta vez fica claro de que é a voz de Lord Voldemort através do menino que é possuído, fato que nos permite compreender que no momento anterior também é a voz do inimigo de Harry Potter manifestando-se. Há uma aproximação entre a dor e a morte. No caso, a morte seria capaz de acabar com aquela dor, a dor da morte é mais leve se comparada ao sofrimento daquele momento. Logo em seguida, como se fosse uma continuação da construção da fala de Voldemort no corpo de Harry Potter, ocorre a narração vinda de seu pensamento: “Faça a dor passar, pensou Harry... faça ele nos matar... acabe com isso, Dumbledore... a morte não é nada em comparação...” (Rowling, 2003, p. 660). A expressão da partícula “nos” permite

Aqui há um sentimento de redenção, de desistência, Harry Potter não tem mais forças para continuar lutando contra aquela posse ou contra aquela dor, ele estaria disposto a se render à própria morte se este fosse um meio de escapatória do sofrimento e também para a derrota de seu inimigo: ao encerrar sua dor por meio da morte, haveria, assim, a possibilidade de derrotar Voldemort, uma vez que os dois, ali, eram um só. A morte é novamente remetida quando é afirmado que “ [...] a morte não é nada em comparação...” (ROWLING, 2003, p. 660), ou seja, a dor e o sofrimento eram muito mais intensos do que a morte seria.

Em seguida, há uma pausa na descrição do sofrimento: “E reverei Sirius.” (ROWLING, 2003, p. 660). No momento anterior, a morte seria uma porta de saída do sofrimento que Harry estava passando, ou seja, ao alcançar a morte escaparia da dor. O sentimento de desejo de morte agora acometeu um novo pensamento a Harry Potter, esta também traria o seu padrinho recém-morto de volta e faria com que os dois estivessem juntos novamente. Sirius Black, padrinho de Harry Potter, assassinado momentos antes pela bruxa Bellatrix Lestrange, era o que Harry Potter compreendia como o que sobrou de sua família, dizia que sua entidade familiar resumia-se apenas a ele. Na presença de Sirius Black, Harry Potter sentia-se feliz, acolhido, tratado com o carinho que seus tios Dursleys nunca lhe haviam dado. A descrição seguinte, “E o coração de Harry se encheu de emoção.” (ROWLING, 2003, p. 660), logo estabelece uma quebra do sofrimento do garoto, o que passa a ser ressaltado é seu coração, que agora não está mais dominado com dor, com sofrimento e pensamentos ruins, agora ele está cheio de emoção. O autor C. S. Lewis (1996, p. 24) revela-nos uma definição do termo emoção: “Emoção [...] pode ser definido como alternância de tensão e relaxamento da ansiedade imaginada”. A palavra emoção remete ao sentimento de comoção, vinda aqui no caso a partir de um abalo afetivo, pois Harry Potter sentia muito carinho por Sirius Black, sentia-se feliz e confortável com sua presença e, ao remeter a recente morte do mesmo, o garoto tem essa agitação dos sentimentos bons e ruins.

Quando a figura de seu padrinho toma conta da mente de Harry Potter, o sofrimento passa, ou seja, a cura disto pode ser esclarecida pelo sentimento de amor delineado entre Harry Potter e Sirius Black. Ao ver Sirius Black em seus pensamentos, a criatura afrouxa-se, agora a sensação de que são apenas um só passou, ou seja,

Harry Potter volta a ter arbítrio e encontra-se deitado, sem os óculos, como se tivesse acabado de despertar de um sono.

Harry Potter buscou reconhecer o ambiente ao seu redor, já que este passou de um espaço apertado, ambiente fechado, justo, em que dois corpos estariam ocupando o mesmo lugar, para, novamente, o saguão do Ministério da Magia. Quando reconhece o espaço em que se encontra, percebe alterações nele: a estátua que antes o guardava agora está caída, quebrada, como se algum tipo de violência tivesse passado por ali: a violência que o atingiu dentro de seu corpo, que causou- lhe toda aquela dor, também foi manifestada no saguão.