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Os depoimentos orais feitos pelos indígenas são, em algum momento, enfraquecidos por depoimentos contrários formulados por

QUESITOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

2.13. Os depoimentos orais feitos pelos indígenas são, em algum momento, enfraquecidos por depoimentos contrários formulados por

não-índios que moram na região há bastante tempo?

Os ditos “depoimentos orais”, ou narrativas orais, como melhor se conceitua a fala dos interlocutores no campo da antropologia, são dis- cursos proferidos por sujeitos políticos. Isto implica que eles veiculam interesses, expectativas e elementos registrados que entram na constru- ção da identidade social de quem produz o discurso. Daí a necessidade do pesquisador fazer a crítica interna e externa às narrativas, situando o sujeito social no cenário de interação que ele compartilha com outros sujeitos, e com os quais muitas vezes pode ter interesses comuns ou conflituosos. No caso específico dos conflitos envolvendo os Kaiowa e os proprietários de terras na área periciada, as características que apon- tamos anteriormente para as narrativas orais se evidenciam em diversos momentos dos discursos.

As narrativas dos Kaiowa que vivem na comunidade de Marangatu apresentam uma série de elementos comuns, que estruturam e dão coesão e sentido aos discursos. Estes elementos dizem respeito à memória social coletiva do grupo, à representação de sua trajetória no tempo e à explica- ção dos motivos pelos quais os primeiros proprietários teriam expulsado a comunidade da terra que tradicionalmente ocupava. Em conjunto, estes elementos se articulam para justificar a superioridade moral da comunida- de frente aos primeiros representantes da frente de ocupação agropecuária que, naquele momento, por disporem de mais poder, teriam desalojado os Kaiowa de suas terras. As narrativas orais produzem uma interpretação da história da comunidade em que ela não aparece como derrotada, mas sim como violentada e injustiçada. A auto-imagem positiva em termos éticos e morais permite, portanto, que essa coletividade encare como justa e legítima a luta para reaver as terras que ocupava e das quais somente saiu porque dali foi expulsa, conforme os índios mais idosos narraram aos peritos e assistentes técnicos. A partir da articulação desses elementos, os Kaiowa de Marangatu constroem uma imagem positiva de si mesmo;

não se veem como invasores de terras, baderneiros ou perturbadores da ordem pública, mas como uma comunidade que busca reaver a terra que lhes pertence por direito de ocupação tradicional.

Vale lembrar que os discursos indígenas não são unânimes, conforme evidencia o caso do índio Daniel Nunes, já comentado em outra parte desta perícia. Por disputas políticas na comunidade ele acabou sendo excluído das instâncias de decisão e representação políticas internas à coletivida- de indígena de Marangatu. Na compreensão dos peritos, os problemas de convivência de Daniel Nunes com as lideranças locais se intensificaram devido à negligência do órgão tutor oficial que não conseguiu e ainda não consegue se fazer presente na área. A FUNAI deveria atuar como mediado- ra na implementação das políticas públicas que atendem à comunidade, ou mesmo como mediador de conflitos internos à própria comunidade e entre a comunidade e a população não-indígena do entorno.

Registra-se, igualmente, que conflitos entre lideranças sempre ocorreram entre os Kaiowa, como acontecem em quaisquer grupamentos humanos. Entretanto, quando eles detinham o controle sobre o território e sobre as formas organizacionais de suas comunidades, possuíam uma sé- rie de mecanismos e instrumentos institucionais próprios para a resolução dos conflitos. Esses mecanismos muitas vezes se tornaram inoperantes nos arranjos organizacionais atuais, devido principalmente à limitação de recursos, sobremaneira a impossibilidade de o grupo rival mudar para uma nova localidade, e pela dependência e interferência direta de inúme- ras organizações em suas comunidades, tais como igrejas, escolas, ONG’s e instituições governamentais responsáveis pela implementação de políti- cas públicas voltadas para o atendimento da população indígena.

Todo esse amplo leque de instituições e de sujeitos políticos que atuam nas comunidades indígenas tem gerado, por conseguinte, formas or- ganizacionais que comportam problemas inteiramente novos. A resposta a esses novos problemas exige adaptação e reordenamento da organização política interna, de cunho tradicional, o que muitas vezes gera dúvidas e incertezas para os Kaiowa, assim como também para os Guarani. Acontece que é justamente ali onde a FUNAI deveria estar atuando junto às comuni- dades indígenas, apoiando-as e com elas discutindo políticas públicas que as beneficiassem, bem como ainda as orientando em busca de soluções para muitos de seus novos problemas. Contudo não é isso o que vem aconte- cendo porquanto a FUNAI tem sido omissa em muitas de suas obrigações legais e estaria, segundo alegam seus administradores, desaparelhada em termos de recursos materiais e humanos.

Os peritos levantaram ainda que com a intensificação dos conflitos, entre os Kaiowa de Marangatu e os proprietários de terra na área periciada,

alguns fazendeiros articulados na ONG Recovê teriam passado a assediar os índios que tinham problemas políticos com as lideranças indígenas locais. Assim estaria fazendo para constituir uma base de apoio da organização dentro da própria comunidade Kaiowa. As lideranças da comunidade de Ñande Ru Marangatu utilizaram-se do argumento da ligação entre Daniel Nunes e a Recovê para expulsá-lo dali, pois segundo entenderam ele estaria atuando contra os interesses da comunidade, qual seja, o de reaver a posse da terra. Daniel Nunes teve de ir morar com sua família na periferia de Antônio João, onde os peritos o visitaram. Ele estaria recebendo apoio da Recovê, solidarizando-se com os proprietários e atuando contra as lideran- ças da comunidade de Marangatu, sendo inclusive contrário aos direitos dos Kaiowa reaverem a terra. A Recovê também atua na vila Campestre, entre índios e não-índios, procurando construir uma base de apoio político local para a sua causa, que é, fundamentalmente, impedir que a área pe- riciada seja reconhecida como terra indígena. Isto se justifica, ao menos do ponto de vista econômico, pelos evidentes prejuízos financeiros que a medida provocaria para os proprietários.

Explicadas as divergências internas às narrativas dos índios envol- vendo a história da comunidade e o vínculo com a área periciada, cumpre discorrer sobre os discursos dos proprietários.

Nas narrativas dos proprietários a finalidade essencial da terra é o desenvolvimento de atividades produtivas, o que, sem dúvida alguma, eles têm assegurado na área periciada. Isto por si só já constitui um argumento econômico para a impropriedade dos índios reaverem a terra, uma vez que eles consideram que os Kaiowa dificilmente manterão os índices atuais de produtividade das propriedades, o que exige planejamento administrativo, inovações tecnológicas e capacidade de investimento.

Outro aspecto importante para entender as narrativas produzidas pe- los proprietários é a caracterização do cenário social, econômico e étnico instituído na região. Este cenário é hierarquizado, sendo que as posições de maior prestígio e poder são associadas aos proprietários de terra, o que ocorre devido ao predomínio econômico das atividades agropecuárias na região. Os índios são entendidos como culturalmente inferiores e, por isso, ocupam a posição mais baixa no sistema multiétnico regional, sendo de- nominados pejorativamente de bugres. Por isso não se reconhece a eles o direito de acesso ao poder e, principalmente, ao principal símbolo de poder local, que é a posse da terra. Daí entender o motivo das duas perguntas que não se calam entre os proprietários: Por que querem dar terra aos índios? Por que eles precisam de terra?

As ponderações até então feitas são importantes para responder de maneira segura e direta ao presente quesito, principalmente no que se refere

à pergunta se “os depoimentos orais feitos pelos indígenas são, em algum momento, enfraquecidos por depoimentos contrários formulados por não- índios que moram na região há bastante tempo”. Os proprietários e seus experts indicaram vários moradores antigos para que os peritos os ouvissem (melhor dizendo, que tomassem seu “depoimento”) sobre os fatos relativos à posse da terra e a história da região. Tal como se identificaram nas narra- tivas indígenas, as narrativas dos “não-índios” também não são unânimes em termos de seus conteúdos e na maneira de enfocar os fatos envolvendo a posse da terra na área periciada. Algumas pessoas previamente contatadas e de certa maneira preparadas pelos proprietários ou pelo assistente técnico e advogado dos Autores, apresentavam um discurso padrão, cujos elementos principais enfatizavam a inexistência de índios na área periciada, a inexis- tência de “aldeias” na região, os sofrimentos dos primeiros proprietários para tornarem as terras produtivas, a laboriosidade dos proprietários, a ín- dole pacífica dos proprietários etc. Geralmente essas pessoas são de origem e posição social humilde e desenvolvem uma relação histórica de depen- dência em relação aos proprietários na área periciada. Alguns chegaram mesmo a falar que todos os Kaiowa de Marangatu vieram do Paraguai, o que teria ocorrido a partir da década de 1980, fato este que não corresponde às narrativas de outras pessoas, indígenas ou não, tampouco às fontes escri- tas analisadas e citadas pelos peritos.

Outros “não-índios”, pela sua própria condição social, tinham maior autonomia em relação aos seus discursos. Este foi o caso de Antônio Remo Penzo, com o qual os peritos e assistentes técnicos mantiveram interlocu- ção em sua casa, no dia 06/02/2007. Ele ocupou por muitos anos o cargo de juiz de paz em Antônio João e sua família emprestava o nome ao local, denominado Colônia Penzo, até que no período do regime militar o nome foi mudado para Antônio João, em homenagem a um herói militar da época da guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (1864-1870). Ele também é proprietário rural na região e falou com desenvoltura sobre diversos temas durante a entrevista, embora sempre com o cuidado de não comprometer os interesses dos proprietários.

Antônio Remo Penzo nasceu em Ponta Porã, no dia 09/02/1924, mas em seus documentos consta a data de 13/02/1925. Ele é o filho caçula de Vitório Penzo, italiano de Gênova que migrou para o Brasil ainda quando era menino, e de Petronilha Ferreira Penzo, uma paraguaia nascida em Ca- rapeguá, filha de gaúchos que migraram para o antigo sul de Mato Grosso após a Revolução Farroupilha. Os dois, Vitório e Petronilha, tiveram ou- tros oito filhos, todos falecidos. Antônio Remo Penzo conheceu Agapito de Paula Boeira e dele possui boas recordações, reconhecendo-o como um homem altivo e honrado.

Encontrou-se ainda um outro “não-índio” de nome Carlos Zanchet, quem no ano de 1949 participou de uma tentativa de tomada posse da terra na área periciada e que, sem nenhum constrangimento, disse que a terra naquele momento era ocupada pelos índios. Chegou inclusive a nomear vários deles, como, por exemplo, o líder Manoel Bonito. Identificou ainda o local da casa de Manoel Bonito, a arquitetura da construção, o tipo de roças que cultivam, algumas práticas culturais como as rezas, hábitos alimentares etc. Disse que no final da década de 1940 a área periciada foi objeto de várias disputas entre posseiros, índios e particulares de maior posse, sendo que este último seg- mento acabou fazendo prevalecer seus interesses, retirando os índios e os posseiros e titulando grandes extensões de terras, em uma espécie de con- sórcio. Maiores informações sobre sua história de vida constam na resposta formulada a um quesito apresentado pela União/FUNAI.

Acredita-se que os parágrafos anteriores, como também outras passagens da presente perícia, deixam claro que os discursos se confron- tam porque são produzidos por sujeitos políticos que possuem interesses diversos, os quais muitas vezes são conflitantes. A questão aqui não é necessariamente dizer que um discurso “enfraqueça” o outro ao con- trapor-se a ele. No entendimento dos peritos, o fundamental é situar o discurso em relação ao sujeito social que o produz, identificando seus propósitos, interesses e ações. O operador do direito deve levar em conta a legitimidade e legalidade destas ações, interesses e propósitos. Daí a importância da realização de um procedimento pericial da natureza do que é aqui apresentado.

2.14. Como a antropologia analisa e resolve a divergência nos

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