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O mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju, do começo de século XX, registrou os índios Guarani/Kaiowa nas terras onde hoje estão

QUESITOS APRESENTADOS PELOS AUTORES

3.18. O mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju, do começo de século XX, registrou os índios Guarani/Kaiowa nas terras onde hoje estão

localizadas as propriedades dos requerentes, pretendidas pela FUNAI para criar a terra indígena Cerro Marangatu? Objetivamente, qual a conclusão que se pode tirar deste fato?

Não. O mapa elaborado por Curt Nimuendaju não registrou “os índios Guarani/Kaiowa nas terras onde hoje estão localizadas as proprie- dades dos requerentes”. A conclusão que se pode tirar dessa constatação é que seu mapa é uma representação cartográfica incompleta sobre os territórios indígenas na América do Sul, conforme o autor sempre fez questão de frisar quando estava vivo. O próprio Curt Nimuendaju re- gistrou, em carta reproduzida no texto introdutório ao mapa, que o trabalho tinha muitas lacunas e que era necessário seguir pesquisando os espaços ocupados por populações indígenas no Brasil. Até hoje esse levantamento é incompleto e muitas situações permanecem sem notifi- cação. Caso fosse um documento completo e decisivo para esclarecer se determinadas áreas são ou não terras tradicionalmente ocupadas por comunidades indígenas, por certo dezenas de milhares hectares da área de municípios como Mundo Novo, Japorã e Eldorado, no extremo sul do Estado, teriam de ser declaradas como terras indígenas. Talvez até aquelas cidades teriam de ser incorporadas a elas. Mas a questão não é tão simples assim.

33 Sobre a história da antropologia paraguaia, ver, por exemplo, Eremites de Oliveira (2003). Este trabalho ficou em primeiro lugar no Prêmio Branislava Susnik, versão 2003, um concurso que anualmente elege os três trabalhos do ano de maior relevância à antropologia paraguaia. Trata-se de um estudo sobre a contribuição científica de dois antropólogos europeus, o alemão Max Schmidt e a eslovena Branislava Susnik, para a antropologia e a arqueologia praticada no Brasil e no Paraguai.

20° 15° 50° Trópico de Capricórnio

N

0 50 100 km Escala Gráfica

Figura 15: Mato Grosso do Sul no Mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju.

O referido mapa foi feito na primeira metade do século XX e consta na publicação por título Mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju, a qual veio ao grande público de forma inalterada desde 1981, por meio do IBGE e inicialmente em parceria com a Fundação Pró-Memória. Não se trata de um documento decisivo e preciso para uma definição cabal sobre a área em litígio, haja vista a necessidade da realização da presente perícia antro-

pológica e histórica. Isto porque a questão da tradicionalidade ou não da ocupação indígena em qualquer que seja a área em litígio é um assunto mais complexo do que pode parecer em um primeiro momento.

Vale lembrar, ainda, que até a primeira metade do século XX, pe- ríodo em que foi composto o referido mapa, a área em litígio ainda não havia sido requerida e titulada por particulares. Pelo contrário, permane- cia como terra pública do governo de Mato Grosso e os índios tinham sua posse, protegidos do assédio mais direto das frentes de expansão agropas- toris, sobretudo por causa da densa floresta e pelas dificuldades de acesso ao local.

A impropriedade do mapa para o deslinde da questão em tela pode ser esclarecida em três argumentos básicos.

Em primeiro lugar, esclarece-se que o imigrante alemão Curt Unkel (1883-1945) adotou no Brasil o sobrenome Nimuendaju, palavra que em guarani significa “o ser que cria ou faz o seu próprio lar”, conforme ex- plicado pelo historiador Virgílio Corrêa Filho (1987). Recém chegado da Alemanha, ele morou por vários meses em uma aldeia de índios Guara- ni localizada no litoral paulista, tendo sido adotado pela tribo. Daí o seu nome indígena Nimuendaju. O imigrante ainda aprendeu a língua e as prá- ticas rituais daqueles índios. Após esta situação de emersão em um grupo indígena, Nimuendaju passou a se interessar pela situação dos índios brasi- leiros, entrando posteriormente para os quadros do SPI. Nunca passou por uma formação sistemática em antropologia, mas manteve correspondência frequente com antropólogos de importantes universidades do Brasil e do exterior, os quais estavam interessados nas características culturais dos po- vos com os quais ele trabalhava.

Na condição de funcionário do SPI, Curt Nimuendaju percorreu vários estados brasileiros, trabalhando como indigenista entre diversas comunidades indígenas. Também realizou algumas descrições etnográfi- cas, centradas em aspectos da vida social, de alguns povos com os quais conviveu mais intensamente. Este é o caso da clássica descrição da religião dos Guarani, fruto de sua primeira experiência de convívio com os índios, denominada As lendas de criação e destruição do mundo como funda- mentos da religião dos Apapocúva-Guarani, escrito em 1914 e publicado em português em 1987. Ele produziu ainda monografias sobre a estrutura social dos Apinajé. Por tudo isso Curt Nimuendaju é considerado referên- cia obrigatória para os estudos sobre esses povos, especialmente no que se refere aos temas por ele abordados. Entretanto, o etnógrafo nunca esteve na área em litígio ou em suas proximidades. Como disse o antropólogo Luiz de Castro Faria (1987), as “atividades de Curt Nimuendaju são adequadamen-

te designadas como de exploração”, pois ele foi um autodidata em estudos etnológicos.

Por certo a contribuição de Nimuendaju para a etnologia brasileira é inestimável, bem como o mapa por ele elaborado, dada a pouca preocupação dos funcionários do SPI em documentar a localização e as características culturais dos povos com os quais trabalhavam. Entretanto, dada à imensidão do território brasileiro e o grande número de povos indígenas aí dispersos, seu trabalho não é, e nem poderia ser, completo e conclusivo.

Deve-se levar em conta que uma descrição completa e conclusiva, a respeito da localização de todas as terras indígenas no Brasil, só poderia ser realizada a partir de um trabalho com expressivo aporte institucional e contando com uma grande equipe de pesquisadores. O próprio Nimuendaju (1987: 37-38) sugeriu que tal trabalho deveria ser realizado pelo órgão in- digenista oficial daquela época, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), mas reconheceu também que os funcionários do órgão estavam completamente despreparados para realizar um trabalho desse tipo, como atesta o trecho de uma de suas correspondências reproduzido na introdução da edição do mapa. A experiência de Nimuendaju, de inestimável mérito, portanto, foi um esforço em grande medida individual e localizado em pontos específi- cos dos territórios sobre os quais se dispunha de mais informações naquele momento.

Muitos povos indígenas somente foram localizados em data muito recente, sendo que até hoje em dia a FUNAI mantém um departamento de povos isolados sobre os quais pouco se sabe. Estima-se a existência de dezenas de povos nessa situação, todos atualmente localizados na região amazônica. Torna-se impossível, portanto, tomar seu mapa como uma pro- va cabal a respeito da ocupação tradicional ou não dos Kaiowa no atual município de Antônio João.

Em segundo lugar, o Mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju, produzido de maneira mais elaborada e corrigido em 1944, preservado no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, está em uma escala de 1: 2.500.000. Um escala tão grande assim pode gerar muitos equívocos se o mapa for interpretado como uma espécie de documento oficial sobre os processos de demarcação de terras indígenas no Brasil. Em mapas desse tipo sequer apa- recem pequenas bacias hidrográficas, como a do rio Estrela e seus afluentes, tampouco certas sociedades indígenas amazônicas recém contatadas pela sociedade nacional. Por isso mesmo, ele, Nimuendaju, quando vivo jamais imaginou publicar o mapa, muito menos que seu estudo servisse de docu- mento histórico para definir se uma área é ou não de ocupação tradicional por parte dos Kaiowa.

Em uma carta de sua autoria, o próprio autor do mapa assim escre- veu:

Pela sua natureza o Mapa não pode representar um trabalho definitivo mas apenas uma tentativa que possa servir de base para trabalhos futuros. De- via ser completado e corrigido constantemente, de acordo com os dados que vão chegando. Para muitas zonas foi-me impossível obter informa-

ções recentes, e tive de basear-me em dados de há 20 ou 30 anos atrás.

O SPI que, pela sua natureza, devia ser a fonte principal para a localização atual das tribos falha completamente, pois os seus funcionários muitas

vezes mesmo nem sabem com que tribo estão lidando: Major Amarante

em 1921 qualificou de “Tupis” uma tribo de Múra, e Jacobina em 1932 de “Guaranis” os Kamakã. Qualquer pessoa com estudos etnográficos ou

históricos regionais encontrará no Mapa erros e lacunas, e eu teria a máxima satisfação si estas me fossem apontadas (Nimuendaju 1987: 37-

38). [destaques nossos]

Ora, se o próprio SPI teve dificuldades em identificar certas socie- dades indígenas e se o próprio Nimuendaju fez autocríticas ao seu mapa, reconhecendo as limitações na extensão de sua validade, por certo não se tra- ta de uma fonte cartográfica decisiva para o esclarecimento dos fatos; muito menos é uma fonte que pode se sobrepor automaticamente aos resultados dos trabalhos de campo feitos pelos peritos do Juízo. Caso Nimuendaju contasse na época em que compôs o mapa com as informações etnográficas registradas durante toda a segunda metade do século XX, acrescentando-se os dados mais recentes, com certeza seu trabalho teria outra configuração, pois o próprio autor reconheceu suas limitações.

Sem embargo, como explicou o experiente cartógrafo Rodolpho Pin- to Barbosa:

Ao se cotejar a base planimétrica dos mapas originais de Curt com a dos mapas atuais, verificam-se algumas discrepâncias no traçado dos rios, li- nha da costa e limites. No início da década de 40, quando Curt elaborou os mapas, deve-se lembrar, pouca documentação cartográfica existia abran- gendo toda a área por ele estudada e que lhe servisse de base para compilar o tema (Pinto Barbosa 1987: 19).

Prossegue o autor:

Curt Nimuendaju não teve a preocupação de indicar a origem da base pla-

nimétrica que usou no mapa. Assim, só mera especulação pode ser feita para identificá-la. De qualquer forma, reduzindo ou ampliando, está claro que Curt usou mais de uma fonte (Pinto Barbosa 1987: 19-20).

Em terceiro e último lugar, segundo consta no Quadro das pesquisas de campo realizadas por Curt Nimuendaju, elaborado por Luiz de Castro Faria (1987: 18), em 1913 o referido etnógrafo esteve no antigo sul de Mato Grosso, entre os Ofaié-Xavante, Guarani e Kaingang. Contudo, segundo foi possível apurar, Nimuendaju não esteve na área objeto da perícia, tam- pouco em suas imediações. Significa dizer, portanto, que sem ter estado e permanecido tempo suficiente na região onde está situada a área em litígio, o etnógrafo não chegou a realizar qualquer estudo etnológico que pudesse servir para o esclarecimento dos fatos.

3.19. Entre 1946 e 1951, o Dr. EGON SCHADEN, antropólogo da

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