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O desafio simbólico na luta por identidade e pelo direito à diferença

2.1 A TEORIA DA AÇÃO COLETIVA DE ALBERTO MELUCCI E O OBJETO DA PESQUISA

2.1.1 O desafio simbólico na luta por identidade e pelo direito à diferença

Segundo Melucci (MELUCCI40, 1980 apud LARANA; JOHNSTON; GUSFIELD, 1994, p. 10, tradução nossa), a construção e a defesa de uma identidade é a principal motivação para a formação dos movimentos sociais nas sociedades contemporâneas: “[...] O que os indivíduos estão reivindicando coletivamente é o direito de entender sua própria identidade: a possibilidade de dispor de sua criatividade pessoal, sua vida afetiva, e sua existência biológica e interpessoal.”

Para o autor, certos movimentos sociais das décadas de 1960-80 – tais como os movimentos de mulheres, gays, ambientalistas e jovens – têm objetivos comuns voltados ao reconhecimento do direito à diferença e à construção de uma identidade coletiva. Ou seja, esses movimentos expressavam mais uma luta por bens culturais do que uma luta predominantemente por bens materiais ou transformação do sistema sócio-político- econômico, que tinham sido os fatores que sustiveram os movimentos operários e outros movimentos centrados nas relações de produção da sociedade capitalista industrial.

De acordo com Melucci (1996, 2001), ao contrário dos antigos movimentos sociais, derivados de contradições estruturais do sistema capitalista e que normalmente envolviam a ação coletiva apenas de atores de uma dada posição social, os novos movimentos sociais mobilizam atores normalmente pertencentes a diferentes extratos sociais, os quais exprimem demandas mais voltadas à dimensão cultural, especialmente a questão da identidade. Assim:

Esses movimentos se encontram associados com um conjunto de crenças, símbolos, valores e significados relacionados ao sentimento de pertencimento a um grupo social diferenciado, com a imagem que seus membros têm de si mesmos e com as novas atribuições, socialmente construídas, de significado para a vida cotidiana. [...] os fatores de motivação tendem a ser temas culturais ou simbólicos associados com sentimentos a um grupo social diferenciado (CHIHU AMPARÁN; LÓPEZ GALLEGOS, 2007, p. 141-142, tradução nossa).

Melucci (1989b) refere-se, como exemplo desse tipo de movimento que posteriormente redefiniu como MSC, ao movimento de mulheres cuja simples existência representou um desafio ao sistema simbólico dominante. “[...] Ser reconhecida como uma 40 MELUCCI, A. The New Social Movements: a theoretical approach. Social Sciences Information, London, UK, v. 19, n. 2, p. 218, 1980.

mulher é afirmar uma experiência diferente, uma percepção diferente da realidade [...] O objetivo [...] não é apenas a igualdade de direitos, mas mais o direito de ser diferente.” (MELUCCI, 1989b, p. 63, grifo do autor).

Essa explicação sobre o desenvolvimento de uma dimensão de identidade e desafio aos códigos culturais dominantes encaixa-se com aquela que foi a orientação preponderante da ação coletiva do movimento social surdo a partir de meados dos anos 1990: a reivindicação pelo direito à diferença embasado no reconhecimento, pelo Estado brasileiro, da Libras, antes de tudo um bem cultural, posto que os surdos passaram a ser descritos pela ideologia preponderante no movimento como uma minoria linguística e cultural. Nesse sentido, os dados pesquisados demonstraram que, a partir desse momento histórico, o movimento social surdo, à semelhança dos MSC estudados por Melucci, formou-se e exprimiu-se publicamente “[...] através do discurso do direito à diferença. Ou seja, o direito à autonomia frente aos imperativos sistêmicos” (CHIHU AMPARÁN; LÓPEZ GALLEGOS, 2007, p. 138, tradução nossa).

A dimensão de desafio simbólico desenvolvida pelo movimento social surdo brasileiro residiu, por conseguinte, na ação coletiva de contestação aos códigos culturais dominantes que se encontravam então assentados no modelo clínico-terapêutico da surdez. Tais códigos funcionavam então como elementos mediadores das relações entre os atores sociais e sistemas sociais complexos, como o sistema educativo e o de saúde, que empregavam recursos simbólicos para estruturar as interações no seu interior.

Em outras palavras, a ação coletiva desse movimento, pelas suas características morfológicas, desafiou e modificou certos imperativos sistêmicos, que consistiam em valores, crenças e práticas que se desenvolveram ao longo do tempo com base no modelo clínico- terapêutico da surdez. O movimento social, quando defendeu a valorização e divulgação da Libras, da identidade e cultura surda, ofereceu outros códigos culturais aos seus militantes e para a sociedade como um todo, em contraposição aos códigos até então predominantes. A aprovação de lei de Libras incluiu, nesse sentido, um conteúdo de subversão da lógica cultural hegemônica em certos sistemas.

Além das questões de epistemologia e da natureza da ação coletiva, a opção pela teoria de Melucci considerou o recorte temporal do objeto de pesquisa. Os MSC estudados pelo sociólogo italiano localizaram-se nas décadas de 1960-80, enquanto as origens do movimento social surdo encontram-se justamente na década de 1980, quando ativistas surdos passaram a

participar de encontros nacionais e demais iniciativas organizadas pelo movimento social das pessoas com deficiência no contexto da redemocratização brasileira.

A ação coletiva dos surdos desenvolveu-se, então, dentro da cronologia das sociedades complexas contemporâneas, em que as formas de organização e ação dos movimentos não são mais suficientemente explicadas, segundo Melucci (2001), pelas referências conceituais elaboradas para compreender os sistemas da sociedade industrial que se estruturaram entre o século XIX e os anos 1950. Para o sociólogo italiano, as sociedades complexas contemporâneas se distinguem das sociedades capitalistas precedentes pelo fato de que nelas:

O desenvolvimento capitalista não pode mais ser assegurado pelo simples controle da força de trabalho e pela transformação dos recursos naturais para o mercado. Ele requer uma intervenção crescente nas relações sociais, nos sistemas simbólicos, na identidade individual e nas necessidades. As sociedades complexas não têm mais uma base “econômica”, elas produzem por uma integração crescente das estruturas econômicas, políticas e culturais. Os bens "materiais" são produzidos e consumidos com a mediação dos gigantescos sistemas informacionais e simbólicos (MELUCCI, 1989b, p. 58).

Essas características gerais alteram o campo onde normalmente se desenvolve o sistema de ação dos movimentos contemporâneos, afetando suas características morfológicas. Assim:

Os conflitos sociais saem do tradicional sistema econômico-industrial para as áreas culturais: eles afetam a identidade pessoal, o tempo e o espaço da vida cotidiana, a motivação e os padrões culturais da ação individual. [...] Eles surgem naquelas áreas do sistema que estão ligados aos investimentos informacionais e simbólicos mais intensivos e expostos às pressões maiores pela conformidade (MELUCCI, 1989b, p. 58-59).

À época da luta pela oficialização da Libras – décadas de 1980-2000 – devido a um conjunto de processos sociais relacionados ao modo de interação da sociedade majoritária ouvinte com relação às pessoas surdas, os surdos continuavam expostos às pressões maiores

pela conformidade dentro de certos sistemas sociais, como os sistemas educativos e de saúde,

os quais eram orientados e perpassados há várias décadas por discursos e procedimentos científicos de padronização social e integração cultural do surdo ao mundo ouvinte41.

41 Empregamos a expressão mundo ouvinte no sentido de uma realidade social onde os sons são vitalmente importantes e cujo processo de construção – desenvolvido por meio das interações que ocorrem nas atividades diárias da vida social – tem sido amplamente dominado e controlado pelos ouvintes que baseiam suas ações na premissa de que “[...] os surdos não são seres humanos totalmente competentes [...]”, a qual se aplica, sobretudo, ––––––––––––––

O desafio simbólico a esses imperativos sistêmicos constituiu-se um dos produtos mais significativos da ação coletiva dos surdos, atingindo áreas diversas da vida social, nas quais o embate cultural se reproduz. Deste modo:

Os conflitos se movem, então, rumo à apropriação do sentido contra os aparatos distantes e impessoais que fazem da racionalidade instrumental a sua “razão” e sobre essa base impõem identificação. As questões antagonistas não se limitam a atingir o processo produtivo em sentido estrito, mas consideram o tempo, o espaço, as relações, o si-mesmo dos indivíduos. [...] Nessas áreas [...] se manifesta, também, uma reação difusa às definições externas de identidade, surgem questões de reapropriação que reivindicam o direito de ser eles mesmos (MELUCCI, 2001, p. 81).

Para Melucci (1989a, 2001), MSC podem trazer mudanças ao mundo. Eles operam predominantemente “[...] na esfera dos códigos simbólicos [fornecendo] definições alternativas de alteridade e de comunicação [e transmitindo] para o resto da sociedade a mensagem de uma possível diferença” (MELUCCI, 1989a, p. 95, tradução nossa). Deste modo, desafiam e modificam o domínio dos imperativos sistêmicos nos vários sistemas a que o MSC se refere, como o sistema político, o sistema organizacional, o sistema educativo, as instituições médicas e de saúde mental, e assim por diante, gerando novos códigos culturais e o reconhecimento de novos direitos e responsabilidades.

Essa linha de raciocínio nos posiciona diante de uma realidade social, construída historicamente, na qual os surdos aparecem submetidos a poderosos códigos e recursos simbólicos empregados pelas instituições sociais que interagiam com eles para moldar suas mentes e seus corpos de acordo com certas premissas sobre a surdez e a comunicação humana. Como analisamos nos capítulos seguintes deste trabalho, os ativistas surdos, organizados entre si, desenvolveram uma ação coletiva para reivindicar direitos com base em certas oportunidades sistêmicas providas por um dado contexto sócio-histórico. Tal ação teria significado – na sua forma da ação e na sua orientação – uma forma de contestar e reinterpretar os códigos culturais dominantes.

Embasados na teoria de Melucci (1996), pudemos perceber a natureza, as razões e os significados para a ação coletiva dos surdos. Todavia, como explicar a sua formação e a sua

a quem “[...] nasce surdo ou se torna surdo em uma idade precoce, especialmente se não pode falar” (HIGGINS, 1980, p. 23, tradução nossa).

manutenção no tempo? Como entender e explicar o processo de transformação das motivações e queixas dos indivíduos surdos, suas reclamações e ações coletivas difusas e aleatórias, em uma forma de ação coletiva capaz de se manter no tempo e se constituir como um movimento social?

Melucci (1996) utiliza o conceito de identidade coletiva para compreender como as pessoas decidem se envolver em ações coletivas. Segundo Bartholomew e Mayer (1992, p. 144, tradução nossa), o conceito preencheria a lacuna, não convincentemente elucidada pelas outras teorias de ação coletiva, “[...] entre as bases estruturais para a ação e ação coletiva em si [...]”, explicando o processo intermediário de construção social pelo qual os atores definem as orientações e as circunstâncias da ação comum.

De acordo com Melucci (1996, p. 70, tradução nossa), o conceito de identidade coletiva deve ser compreendido como um processo interacionista, permanente e não linear, por meio do qual os indivíduos e/ou grupos envolvidos em um dado movimento criam e negociam uma “[...] definição interativa e compartilhada [...] relativa às orientações de sua ação e ao campo de oportunidades e restrições em que ela ocorre”. Tal definição explica os fins, os meios e o campo da ação coletiva, que se apresenta incorporada a “[...] um dado conjunto de rituais, práticas e artefatos culturais [e] não necessariamente implica enquadramentos interpretativos unificados e coerentes” (MELUCCI, 1996, p. 70-71, tradução nossa).

O processo de formação da identidade coletiva depende de uma rede de “[...] relações

ativas entre atores que interagem, comunicam-se, influenciam-se uns aos outros, negociam e

tomam decisões [...]” e requer “[...] certo grau de investimento emocional [...] que permite aos indivíduos sentirem-se parte de uma unidade comum” (MELUCCI, 1996, p. 71, grifos do autor, tradução nossa).

O conceito de identidade coletiva permite explicar como um conjunto de indivíduos produz uma ação coletiva. Melucci (1996) nomeia e ilumina os processos por meio dos quais os atores envolvidos definem a si mesmos – construindo um nós –, delineiam um enquadramento teórico comum da sua realidade social e avaliam as suas relações com um dado contexto sociopolítico – outros atores sociais, oportunidades e restrições políticas, recursos existentes para mobilização e assim por diante. Tais elementos sustentam as decisões individuais de adesão ou não à ação coletiva, na medida em que permitem que os atores

envolvidos calculem juntos os custos e benefícios da ação coletiva de acordo com as definições cognitivas e os sentimentos compartilhados dentro do movimento social.