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O MOVIMENTO SOCIAL DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E A GÊNESE DO MOVIMENTO SOCIAL SURDO BRASILEIRO

Em primeiro lugar, movimentos sociais devem ser entendidos em seus próprios termos: em outras palavras, eles são o que dizem ser. Suas práticas (e sobretudo as práticas discursivas) são sua autodefinição.

– Manuel Castells52

O governo José Sarney (1985-1989), que representou o restabelecimento da democracia depois de 21 anos de regime ditatorial militar, marcou uma inflexão importante nas relações do Estado brasileiro com as pessoas surdas e as organizações de surdos, entre tantas outras entidades de e para pessoas com deficiência. Essa guinada relacionou-se diretamente a transformações ocorridas nas estruturas e nas políticas das diversas esferas estatais que aconteceram em decorrência principalmente da força reivindicativa do movimento social das pessoas com deficiência no nosso país.53 As mudanças observadas durante o governo do primeiro presidente civil pós-ditadura militar abrangeram várias ações, sendo as mais expressivas a criação ou reestruturação de órgãos públicos que passaram a ser responsáveis pela formulação, implantação ou acompanhamento de políticas orientadas para

52 O poder da identidade (2001, p. 94).

53 Na elaboração deste texto, utilizamos as expressões pessoa com deficiência e movimento social das pessoas

com deficiência, ainda que estejamos nos referindo a contextos históricos e sociais em que outras denominações

eram empregadas para categorizar as pessoas com uma condição de deficiência, suas associações, o movimento social por elas protagonizado e assim por diante. Apesar de reconhecermos a historicidade das diferentes categorias produzidas e utilizadas no campo da deficiência, a pesquisa necessária para demarcá-las e grafá-las apropriadamente nos diferentes processos, ambientes e situações abordados foge ao escopo desta tese. Todavia, levando-se em consideração exclusivamente o período que estudamos, vale pontuar que, grosso modo, na primeira metade dos anos 1980, o termo mais utilizado era pessoa deficiente, sendo substituído, a partir de fins de tal década, nos países de língua portuguesa, por pessoa portadora de deficiência. Por razões diversas, essas expressões e outras correlacionadas a elas passaram a ser combatidas, em momentos históricos distintos, por organizações dos movimentos sociais desse segmento populacional. A rejeição à expressão pessoa deficiente deveu-se à crítica de que ela tomava a parte pelo todo, indicando que a pessoa inteira era deficiente. Já o termo

portador foi recusado por aludir à deficiência como um elemento que pudesse ser carregado pela pessoa,

quando, na verdade, é uma condição inata dela ou por ela adquirida. Por seu turno, a terminologia que preferimos utilizar foi estabelecida a partir dos anos 1990 por deliberação de tais organizações, na maioria dos países, inclusive no Brasil, e, atualmente, encontra-se consolidada em documentos internacionais e nacionais. Dentre os argumentos que a justificam, sobressai-se o de dar visibilidade à deficiência em vez de ocultá-la ou camuflá-la com neologismos, para que assim haja a valorização das diferenças e das necessidades dela decorrentes, por parte da sociedade e do Estado (SASSAKI, 2002, 2003).

as pessoas com deficiência, além da abertura de instâncias de representação política de entidades desse segmento social nos vários níveis do aparelho estatal. Ademais, como demonstramos neste capítulo, o próprio desenvolvimento do movimento social surdo brasileiro pode ser descrito como um produto derivado originalmente do movimento das pessoas com deficiência.

É assim que, nos primórdios dos anos 1980, a participação de pessoas surdas no então emergente movimento das pessoas com deficiência resumia-se a poucos ativistas vinculados a associações de surdos de alcance local. Pelo menos, é o que se depreende dos relatos de participantes e do exame dos documentos de inscrições dos primeiros encontros regionais e nacionais de ativistas desse segmento social (LANNA JÚNIOR, 2010; SÃO PAULO, 2011). Nesse momento histórico, as atividades desenvolvidas nas associações de surdos, onde conviviam pessoas surdas de diferentes faixas etárias, costumam ser descritas como sendo de cunho mais social, ou seja, de auxílio mútuo, recreação e comemoração, além de esportivas, deixando-se em segundo plano a atuação política para reivindicar direitos e enfrentar o preconceito, a discriminação e marginalização a que muitos de seus associados estavam submetidos (FERREIRA BRITO, 2003). Nessa direção, as entrevistas que realizamos com lideranças surdas dessa época, como Ana Regina e Souza Campello e João Carlos Carreira Alves, expõem as dificuldades por elas encontradas para arregimentar participantes para as primeiras ações coletivas relacionadas à luta por direitos dos surdos.

Por outro lado, ainda na primeira metade dos anos 1990, observamos uma guinada impressionante no movimento social surdo brasileiro, que aumentava exponencialmente a sua capacidade de mobilizar recursos humanos, materiais e simbólicos para produzir ações coletivas de ampla visibilidade, como passeatas e entrega de abaixo-assinados para autoridades públicas. Não há nenhum exemplo que nos pareça mais significativo da dimensão e do alcance dessa evolução do que a trajetória da Feneis, a principal organização do movimento. Em 1987, quando ela foi criada pelos ativistas surdos, representava apenas 16 entidades de e para surdos de sete estados brasileiros e do distrito federal (FENEIS, 1987). Dez anos depois, as instituições de e para surdos filiadas eram 88, situadas em 19 estados brasileiros e no distrito federal (FENEIS, 1997a). Além disso, membros surdos e ouvintes da sua diretoria ocupavam cadeiras permanentes nos colegiados de órgãos públicos federais, estaduais e municipais, assegurando a representação política do movimento nessas instâncias.

Entendemos, com base nos dados coletados, que esses e outros avanços procederam em grande parte da competência, disposição e habilidade política que uma primeira geração de lideranças surdas demonstrou na hora de se informar, se organizar e se posicionar para poder contribuir para e ao mesmo tempo aproveitar as possibilidades abertas pelo movimento das pessoas com deficiência nas estruturas do Estado, nos partidos políticos e nos meios de comunicação social.

Nascimento (2001) e Crespo (2009), ambos militantes e pesquisadores do movimento social das pessoas com deficiência, localizam o seu surgimento na passagem dos anos 1970 para os 1980, no contexto de abertura política e redemocratização do Brasil. Nessa época, o regime ditatorial-militar encontrava-se em processo de desagregação durante o governo do general João Baptista de Oliveira Figueiredo (1979-1985), que sofria os efeitos deletérios do agravamento da crise econômica do país, marcada pelo aumento da dívida externa, da inflação, da recessão e do arrocho salarial. Ao mesmo tempo, o último presidente da ditadura lidava com uma crise sociopolítica para poder manter o plano de distensão política lenta, gradual e segura que havia sido colocado em prática pelo seu antecessor, tendo que conter para isso tanto as ações da linha dura das Forças Armadas, contrária à redemocratização, quanto os avanços da oposição, representada pelos partidos políticos, entidades da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), e sindicatos do novo sindicalismo, caracterizado pelas ações coletivas contra a superexploração do trabalho (COUTO, 1998; MENDONÇA; FONTES, 2001; SILVA, 2003). Foi quando ocorreu uma reativação e expansão dos movimentos sociais de diversos setores da sociedade, tais como trabalhadores, moradores de bairros populares, mulheres, negros e homossexuais. Essas minorias sociais organizaram-se para constituir novas formas de ação coletiva para poder lutar pelos seus direitos. Posteriormente, passaram a contar com representantes nas estruturas estatais e, sem abdicar de novas ações reivindicativas, buscaram assegurar a efetivação das suas conquistas (SADER, 1995; CRESPO, 2009).

De acordo com a análise de Sader (1995, p. 27), esses diversos grupos subalternizados da sociedade civil, que haviam sido completamente excluídos dos processos decisórios do poder público pela ditadura militar, “[...] foram vistos, então pelas suas linguagens, pelos lugares de onde se manifestavam, pelos valores que professavam, como indicadores de emergência de novas identidades coletivas”. Ora, esse fenômeno social teria ocorrido dessa forma porque, de maneira simultânea à dimensão predominantemente política, a mobilização

social desses grupos incluiu também uma importante dimensão cultural. Desse modo, o intercâmbio de experiências e conhecimentos que se estabeleceu na práxis do movimento, bem longe de apenas definir uma determinada pauta de reivindicações coletivas, produziu e afirmou uma identidade coletiva entre os seus membros (SADER, 1995). Era a partir desta que as ações reivindicativas se estruturavam e se legitimavam na consciência dos militantes. Assim:

O sujeito coletivo vai surgindo na dinâmica dos movimentos sociais, entre as pessoas que vão se descobrindo uma às outras, a partir de uma identidade própria, de histórias semelhantes, de problemas e esperanças comuns. Pessoas que têm valores semelhantes e um destino comum, o que possibilita a elaboração de um projeto de futuro para mudar a realidade circundante, com base nas práticas desenvolvidas durante a mobilização. (SANTOS, 2008, p. 31-32).

No caso das pessoas com deficiência, a gênese do seu movimento social decorreu em grande parte de uma iniciativa internacional, apesar de precedentes iniciativas nacionais.54 Em 1979, a Organização das Nações Unidas (ONU) anunciou o ano de 1981 como Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD), com o lema participação plena em igualdade

de condições. As diversas ações previstas implicaram a mobilização de programas e agências

especializadas da ONU que passaram a investir recursos e expertise no delineamento, financiamento e realização de vários projetos e eventos. O objetivo principal dessas iniciativas era despertar a atenção dos governos e da sociedade civil dos países-membros para a importância de reconhecer e efetivar direitos para as pessoas com deficiência. Diversos materiais que divulgavam novos dados e concepções sobre a deficiência, assim como os direitos desse segmento populacional, foram publicados e distribuídos gratuitamente e em larga escala para vários países do mundo (CRESPO, 2009; SÃO PAULO, 2011).

No Brasil, essas publicações serviram como referência para a conscientização e a mobilização, em diferentes localidades do nosso país, de muitas pessoas com deficiência, 54 Nascimento (2001, p. 19) cita a Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes (FCD), fundada em 1972, na cidade de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, como “[...] uma das primeiras manifestações de autonomia dos próprios deficientes em busca de seu espaço na sociedade, principalmente numa época de ditadura militar, onde falar de direitos era perigoso”. No final dos anos 1970, muitos membros da FCD, vista comumente como entidade de auxílio mútuo, deram-lhe um sentido de engajamento político, aderindo ao movimento de luta pelos direitos das pessoas com deficiência (CRESPO, 2009). Outro exemplo é o Clube de Amigos (CLAM), da Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR), fundado em 1975, na cidade do Rio de Janeiro, por um grupo de pacientes internos, que, ao organizarem passeios em grupo, “[...] depararam-se com todas as barreiras arquitetônicas e humanas do mundo externo [e assim o] caráter socializante deu espaço para a ação reivindicadora” (MAIOR, 1997, p. 37).

ligadas ou não a associações, além de parentes dessas pessoas e profissionais de reabilitação. Era a origem de um fenômeno social de produção e articulação de ações coletivas para reivindicação de direitos em relação aos poderes do Estado que, conceitualmente, definimos como movimento social das pessoas com deficiência.55 Nas palavras de Crespo (2009, p. 11):

[...] o movimento começou, efetivamente, em 1979/1980, com a criação e mobilização das primeiras organizações, cuja característica era a defesa dos direitos de todo o segmento social e não apenas de seus próprios membros [...] as pessoas deficientes – até então, invisíveis para a sociedade – passaram a se organizar em um movimento nacional para reivindicar não apenas direitos e cidadania, mas, também, o reconhecimento de sua existência.

Assim como Crespo (2009), Sassaki (1997) e Nascimento (2001) sublinham o caráter predominantemente político das organizações que emergiram nesse contexto sociopolítico, cujas reivindicações perante o Estado brasileiro eram justificadas como sendo os requisitos necessários para que todas as pessoas com deficiência pudessem participar plenamente da vida social em igualdade de condições com as pessoas sem deficiência.

Além disso, de acordo com Crespo (2009), Lanna Júnior (2010) e São Paulo (2011), muitas lideranças do movimento social das pessoas com deficiência entendem que, por meio das práticas desse movimento, os seus membros foram conseguindo, com o passar dos anos, romper as amarras dos padrões culturais dominantes que, segundo elas, enquadravam esse segmento populacional nas molduras do assistencialismo e da pena. Por exemplo, Messias Tavares de Souza56, tetraplégico, e uma das lideranças pioneiras do movimento, recorda-se como ele e os demais militantes com deficiência foram mudando sua visão de mundo e suas atitudes no agir coletivo dentro do movimento:

[...] Inclusive o conceito de reivindicação não era como o de agora, com base no direito. [...] Não tínhamos consciência de cidadania. Não tínhamos! Tínhamos

55 Seguimos a denominação de Rosa e Borba (2006) e de Crespo (2009). Já Lanna Jr. (2010) utiliza o termo

movimento político das pessoas com deficiência.

56 Neste texto, fazemos uso de excertos de entrevistas de história oral com lideranças do movimento social das pessoas com deficiência, incluindo lideranças surdas, publicadas nas obras de Crespo (2009), Lanna Júnior (2010) e São Paulo (2011), as quais, respectivamente, apresentam 6, 25 e 10 depoimentos gravados e transcritos na íntegra, constituindo-se assim um acervo documental de grande valor histórico. De modo a diferenciar as citações de tais fontes orais dos textos analíticos dos autores das obras nas quais essas se encontram inseridas ou ainda de produções desses entrevistados, além do uso da expressão apud, nos referiremos sempre aos entrevistados pelo seu nome completo, sempre que utilizarmos trechos de suas entrevistas, ou pelo seu sobrenome, quando se tratar da citação de trabalhos de autoria deles.

consciência de pedintes, de alguém que pedia pelo amor de Deus. Isso foi mudando. Claro! E isso foi mudando com essas reuniões dos idos de 1979 e 1980. Nós, dentro do movimento – poucos, e depois cada vez agregando mais gente –, fomos discutindo esses conceitos. Claro que também bebemos na fonte daqueles textos de discussão da ONU que vieram por causa do Ano Internacional das Pessoas Deficientes (apud LANNA JÚNNIOR, 2010, p. 377).

Para compreender a repercussão social e cultural do AIPD, e como ele tornou-se um fator determinante da ascensão do movimento social das pessoas com deficiência, é importante destacar o papel dos meios de comunicação. O AIPD recebeu grande cobertura tanto da mídia televisiva, que se tornara o principal veículo de comunicação de massa, quanto da imprensa escrita, que, com a abertura política e revogação da censura, havia ampliado “[...] paulatinamente seus limites de liberdade e sua capacidade de propor agenda de debates e refletir a opinião pública” (AZEVEDO, 2006, p. 104).

Para Crespo (2009, p. 134), “[...] com o grande apoio da mídia, o AIPD serviu para que as organizações representativas das pessoas com deficiência divulgassem à sociedade suas reivindicações e [...] aprimorassem seu discurso [...]”. Assim, segundo Lanna Jr (2010, p. 60), “[...] as pessoas com deficiência ganharam destaque. Suas reivindicações por direitos e suas mobilizações se fizeram notar como nunca antes havia acontecido. Essa foi a contribuição do AIDP: a visibilidade”.

Foi extremamente significativo esse efeito catalizador proporcionado pelas atividades e materiais do AIPD, pois aumentou a visibilidade do movimento e os recursos disponibilizados à produção das suas ações coletivas. Por isso, muitos ativistas que viveram esse processo referem-se a um antes e depois do AIPD nas narrativas de história oral acerca de sua trajetória de militância, atribuindo a esse o sentido de um marco simbólico nas suas próprias vidas (LANNA JÚNIOR, 2010; SÃO PAULO, 2011).

É assim que o AIPD é relembrado por muitos atores sociais, como sendo uma experiência ao mesmo tempo cultural, social e política, que teria transformado mentalidades, inclusive a dos próprios ativistas, que passaram a atribuir outro significado à palavra deficiente, desvinculando-a da exclusividade das conotações de pena e doença, para assim exercitar, na realidade social, a coragem de poder ser e falar como pessoa com deficiência enquanto sujeito de direitos, protagonista das escolhas, das tomadas de decisões, do controle das situações de suas próprias vidas. Nesse sentido, o AIPD foi um dos principais elementos que ensejou o fenômeno do movimento social das pessoas com deficiência, que representou um grupo de pessoas estigmatizado e sub-representado nas suas intenções de transformações

nas leis, nas políticas públicas, nas relações mantidas com as diversas instituições da vida social.

O depoimento do ativista Canrobert de Freitas Caires exprime bem esse caráter múltiplo do impacto causado pelo AIPD na vida pessoal dos ativistas e nos rumos do movimento social propriamente dito:

Para mim, o AIPD foi um divisor de águas. [...] Naquele ano, começamos a discutir um plano muito mais profundo, uma coisa maior até do que a gente imaginava. [...]. A gente começou a falar de um país diferente e de como – de forma muito ativa e participante – a gente iria se inserir nele. Não iríamos mais esperar que as entidades que “guardavam direitinho” dos deficientes cuidassem da gente. Queríamos definir os nossos papéis e decidir o nosso próprio destino. Foi um marco. Os novos militantes – as pessoas com deficiência que estão começando agora a se envolver com o movimento – precisam ter uma noção da amplitude dos anos de 1980, 1981 e 1982. Foi uma explosão, uma fogueira [...] O AIPD fez a diferença. Se a ONU não tivesse declarado 1981 como o Ano Internacional, todo e qualquer movimento que a gente tivesse feito, naquele momento, teria sido algo localizado. Não teria a repercussão que teve, com o apoio da imprensa e a mobilização da sociedade, de autoridades nacionais e internacionais. [...] O AIPD foi um amplificador poderoso para nossas reivindicações. [...]. Por causa do AIPD, a gente saiu da discussão da calçadinha, da portinha mais larga e começamos a falar de leis municipais, estaduais e de Constituição (apud SÃO PAULO, 2011, p. 192).

Como não poderia deixar de ser, a importância do AIPD aparece igualmente nas narrativas de ativistas surdos engajados no movimento das pessoas com deficiência. Em uma entrevista de história oral cuja transcrição integral encontra-se reproduzida no livro de Lanna Júnior (2010), o ativista surdo Antônio Campos de Abreu, uma das lideranças pioneiras do movimento social surdo brasileiro, vê o AIPD como um dos fatores determinantes para o desenvolvimento da organização política dos surdos para reivindicar a garantia de direitos:

Parece que esse ano “salvou o mundo”, e isso foi muito importante porque as pessoas com deficiência começaram a se desenvolver. Houve muita divulgação, muita reunião, muitos congressos, muita organização. O surdo também fez muitos documentos. Os grupos de surdos pontuaram reivindicações [...] (apud LANNA JÚNIOR, 2010, p. 173).

O movimento social das pessoas com deficiência foi de grande importância para assegurar garantias de direitos, particularmente na Constituição Federal de 1988. Tão importante quanto essa positivação de diretos foi o modo pelo qual eles foram conquistados. Desde as reuniões preparatórias do AIPD no Brasil, as lideranças do movimento buscaram a autoafirmação e autonomia da pessoa com deficiência. Essa agência pode ser interpretada como sendo de franca oposição simbólica à lógica do modelo médico ou assistencialista da

deficiência.Rejeitou-se assim qualquer forma de tutela, seja pelo Estado, seja pelas instituições que prestavam atendimento às pessoas com deficiência, seja ainda pelas organizações da área de reabilitação coordenadas por pessoas que não apresentavam deficiência. Portanto, os ativistas do movimento não queriam nada que se assemelhasse a pena ou comiseração, tampouco queriam que pessoas que não tivessem deficiência ganhassem os direitos por eles, como bem explica, na sua narrativa de história oral, o ativista Cândido Pinto de Melo, paraplégico, militante da organização Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes (MDPD):

[...] O eixo principal [...] era a necessidade de se ter uma ação política, e não assistencial, mais aglutinadora e de maior repercussão que levasse à mobilização dos portadores de deficiência e contagiasse as entidades que lhe prestam assistência, os órgãos oficiais e governos. Como fundo destas ações estava a necessidade, por muito tempo reprimida, dos portadores de deficiência poderem ser eles próprios agentes de sua própria história e poderem falar eles mesmos de seus problemas sem se interporem intermediários, nem tutelas (apud CRESPO, 2009, p. 100).

Desse modo, a criação e sustentação do movimento deveriam ser embasadas nas ações comandadas efetivamente pelas próprias pessoas com deficiência, como elucidou uma das suas lideranças mais conhecidas, a jornalista e ativista, que é tetraplégica, Rosangela Berman Bieler (ENTREVISTA, 2004, p. 10):

Era o começo, estávamos criando uma identidade própria para a pessoa com deficiência, “nada sobre nós sem nós”. Pela primeira vez as pessoas com deficiência tomavam a frente do movimento que até então era representado por instituições. Era uma postura muito radical, um processo bem batalhado que durou muitos anos e ainda persiste.

Diante do horizonte de possibilidades auspiciosas que se vislumbrava para o AIPD, a primeira batalha das pessoas com deficiência se deu justamente para poder protagonizar as