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ESTRATÉGIAS DE AÇÃO COLETIVA DO MOVIMENTO SOCIAL SURDO

IV. POR UMA EDUCAÇÃO BILINGUE PARA OS SURDOS

4.4 ESTRATÉGIAS DE AÇÃO COLETIVA DO MOVIMENTO SOCIAL SURDO

A contínua estruturação do movimento social surdo brasileiro baseou-se na ampliação das redes de relações sociais entre os seus membros, as quais passaram a incluir, na latência, novos espaços de interação, como os grupos de pesquisa, os eventos científico-políticos e os seus desdobramentos. As diversas e por vezes intensas interações dos ativistas surdos com intelectuais, muitos dos quais aderentes ao movimento, forneceram recursos importantes para a elaboração, pelos seus membros, dos seus quadros interpretativos e produções culturais, cada vez mais fundamentados na configuração discursiva da surdez como particularidade étnico-cultural. Esse processo de amadurecimento do movimento estendeu-se igualmente às suas estratégias de ação coletiva que ganharam em alcance social e capacidade de pressão sobre os poderes legislativos e executivos.

Passeatas como as realizadas na orla de Copacabana em 1994 e no centro de Porto Alegre em 1999 consolidaram-se historicamente como a principal forma de demonstração pública do movimento social surdo brasileiro. Tarrow (2009, p. 131) explica que os atores sociais normalmente utilizam formas de ação coletiva convencionais, como a greve e a manifestação, porque elas fazem parte de um “[...] repertório geralmente conhecido e compreendido”. Para o autor:

A demonstração, tal como a greve, começou como uma ação direta disruptiva que, no fim, foi institucionalizada. [...] As origens de seu formato encontram-se na procissão religiosa e os manifestantes o desenvolveram com o objetivo de atacar seus oponentes ou apresentar petições. [...] Desde então, a demonstração ou

manifestação em local público e de modo pacífico tornou-se um dos meios mais utilizados pelos atores sociais para exprimir uma opinião ou reivindicação. [...] As demonstrações tornaram-se assim a forma modular clássica de ação coletiva (TARROW, 2009, p. 132-133).

Pelo menos desde meados dos anos 1990, o movimento social surdo construiu e consolidou a tradição da realização de passeatas no dia 26 de setembro, data que remete ao dia de fundação do Ines, a primeira escola para surdos no Brasil. Desse modo, passaram a se concentrar nesse dia as principais manifestações públicas organizadas pelas lideranças surdas de associações, da Feneis, de outros grupos ou comissões de surdos. Por pressão do movimento, a data foi oficializada como o dia do surdo em diversas cidades e estados. Finalmente, a Lei Federal nº 11.796, de 29 de outubro de 2008, instituiu o Dia Nacional do Surdo. Na entrevista que realizamos com Nelson Pimenta, ele explicou o significado desse dia e os símbolos a ele associados:

O dia 26 de Setembro é um marco para a comunidade surda, porque é quando surgiu o Orgulho Surdo, que é para mostrar à comunidade, de forma positiva e poderosa, que o surdo é capaz, que o surdo tem orgulho de ser surdo, que ele é capaz de se profissionalizar em qualquer área. Todo ano nós fazemos essa caminhada do Orgulho Surdo [...].

Hoje, a nossa bandeira é o Orgulho Surdo. A fitinha azul simboliza o Orgulho Surdo. Isso aumentou muito a identidade surda. O surdo tem emoção em mostrar o Orgulho Surdo. Anteriormente, nós mostrávamos, explicávamos em palavras e isso não adiantava nada. Então, quando nós mudamos para teatro e para a fitinha azul isso foi muito mais forte.

Para Ferraz (2009, p. 66), as passeatas do Dia Nacional dos Surdos têm se estabelecido como espaços políticos privilegiados para a construção da identidade e da consciência política dos sujeitos surdos:

As associações de Surdos, a FENEIS e algumas escolas de Surdos divulgam sobre cultura, identidade e a língua de sinais, ajudam a construir a consciência política dos Surdos sobre os seus direitos. Informam sobre a história dos Surdos, a construção e a importância da identidade, o movimento de Surdos etc. Mas, são poucos os espaços políticos para os Surdos exercerem e lutarem por seus direitos. A passeata é um destes espaços.

Testemunhos de lideranças surdas indicam precisamente como essas passeatas tornaram-se cada vez mais momentos privilegiados de produção e visibilidade das ações coletivas do movimento social surdo. Esses depoimentos revelam ainda o modus operandi

ativista surdo pioneiro Antônio Campos Abreu recorda-se da organização da primeira passeata realizada pelo movimento social surdo de Minas Gerais, que ocorreu nas ruas de Belo Horizonte, no dia do surdo de 2001:

[...] chamamos os representantes de associação de Surdos, representante de escola, formamos um grupo para combinar, organizar tudo. Perguntei para eles “como?” e os surdos ficaram calados. Eu tive uma ideia: “é melhor na rua, passeata”. Surdos falaram: “Rua?! Duvido! Todos nos olhando e zombando por sermos Surdos, a polícia vai nos bater”. Falei: “não, pode sim! Precisamos ter coragem!”. Ok! Organizamos, entregamos pedido na prefeitura, na polícia, avisando que marcamos em um lugar principal no centro da cidade. Os surdos do grupo estavam com medo: “passeata?! Se nos enganarem e nenhum surdo for lá? como?”. Eu disse: “vamos tentar”. No dia marcado, fomos lá, estávamos esperando, às 12h as pessoas começaram a chegar e foi aumentando o grupo, tinha muitas pessoas, ótimo! A polícia estava lá, iniciamos a passeata... Tinha faixas com reclamações, sobre identidade, trabalho, escola ruim, muitas pessoas caminhando segurando as faixas. As crianças das escolas também estavam caminhando. Os ouvintes nos carros estavam buzinando, então falei: “são todos Surdos”... “todos Surdos?!”. Continuamos em passeata até a prefeitura, entregamos um documento com as pautas sobre os problemas, escola fraca, etc. Jornal e televisão foram entrevistar e tirar fotos, pronto. Continuamos a passeata até a sede do governo, falamos e explicamos novamente as pautas, deu certo, pronto! Continuamos a passeata, foi de 12 horas até às 5 horas. Os surdos estavam aliviados e felizes! No outro dia teve as fotos nos jornais, apareceu na televisão, ficamos felizes! No outro ano marcamos de novo, os surdos aceitaram. Perguntei quais as pautas, com diálogo, como no ano anterior no outro ano novamente. Os Surdos aceitam as pautas, vamos fazer festa e foi crescendo (apud FERRAZ, 2009, p. 50-51).

A Feneis, na condição de principal organização do movimento social surdo, investiu recursos para orientar as lideranças surdas locais e regionais acerca das estratégias para promover essas demonstrações públicas. O ativista surdo Antônio Carlos Cardoso, da Associação de Surdos de Pernambuco (Asspe) e Feneis-PE, recordou-se, na entrevista concedida a Ferraz (2009), da verdadeira lição sobre passeatas que recebeu quando era mais jovem. Em 2002, Cardoso viajou para o Rio de Janeiro, onde se reuniu, na sede da Feneis, com o seu presidente, Antônio Campos Abreu. Antônio Carlos Cardoso havia sido escolhido, no ano anterior, para participar da diretoria da mais nova regional da Feneis, criada no Recife. No seu depoimento, ele assim recorda-se dessa experiência:

Ele [Antônio Campos] me perguntou: “conhece a passeata?”, eu respondi que não. Ele me explicou que precisa fazer igual aos ouvintes negros, gays, mulheres... que ficam revoltados e lutando na rua. Eu falei “desculpa, também surdo?!” e ele respondeu: “Tem sim! [...] “Mas passeata? Como?”. Eu pedi para copiar os modelos, o grupo aceitou. Eu voltei para Recife e divulguei, alguém aqui ficou questionando se polícia poderia bater e eu disse que não. Eu procurei ter contato com aquele grupo que me ajudou e me mostrou o modelo, como fazer Ofício para polícia acompanhar, lugar seguro, várias informações, ser filmado, jornal etc. Eu fiquei sabendo e