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Latência e visibilidade: os dois polos de existência dos movimentos sociais

2.1 A TEORIA DA AÇÃO COLETIVA DE ALBERTO MELUCCI E O OBJETO DA PESQUISA

2.1.3 Latência e visibilidade: os dois polos de existência dos movimentos sociais

Na teoria de Melucci (1996), o sistema de ações que compõe o movimento social desenvolve-se dentro das estruturas correlacionadas de latência e visibilidade. Esse modelo bipolar de formas de agir dos movimentos sociais depende de certas condições sistêmicas para funcionar inteiramente. Elas incluem a variedade dos grupos que formam as redes submersas do movimento, a flexibilidade do sistema político na transição de um polo a outro do modelo e, finalmente, a existência, dentro do movimento, de organizações que sejam capazes de assegurar a comunicação interna – principalmente nas fases de latência – e a comunicação externa – em especial nas fases de mobilização (MELUCCI, 1989b, 1994).

As fases articuladas de latência e visibilidade têm funções diferentes na existência do movimento social. A latência é o polo invisível do movimento, consistindo de redes e nichos resguardados das pressões conformadoras dos códigos culturais dominantes, em que novas identidades, ligações de solidariedade e enquadramentos interpretativos são forjados e alimentados nas relações sociais entre os atores sociais envolvidos no movimento. Assim:

A latência permite que as pessoas experimentem diretamente novos modelos culturais – uma mudança no sistema de significados – que, com muita frequência, é oposta às pressões sociais dominantes [...]. A latência cria novos códigos culturais e faz com que os indivíduos os pratiquem (MELUCCI, 1989b, p. 61).

Submersa na vida cotidiana, a latência constitui-se como “[...] laboratório subterrâneo para a inovação e o antagonismo” (MELUCCI, 1994, p. 127, tradução nossa), onde se concretiza uma verdadeira práxis – ou seja, experiência vivida e refletida dos quadros interpretativos pelos atores sociais – cuja simples existência contrapõe-se aos imperativos sistêmicos que o movimento pretende combater e transformar. Para Chihu Amparán e López Gallegos (2007, p. 149, tradução nossa), a força efetiva dos movimentos sociais contemporâneos reside na latência:

Os movimentos sociais contemporâneos devem sua força não tanto a suas demonstrações públicas, como ao vigor das redes subterrâneas construídas, pois são elas que permitem sustentar formas alternativas de organização da vida social [...] Latência não significa inatividade.

Os dados coletados comprovaram que um dos mais importantes polos da latência do movimento surdo estruturou-se no cotidiano de associações de surdos e da Feneis (tanto na sede quanto nos escritórios regionais). Tais nichos – protegidos dos imperativos mais coercitivos do modelo clínico-terapêutico da surdez – permitiram aos surdos inventarem e experimentarem um novo modelo cultural estruturado no reconhecimento e na valorização do uso da língua de sinais.

As estruturas de latência existentes incorporaram ainda as redes de relações sociais decorrentes da participação dos surdos em grupos e projetos de pesquisa, assim como em escolas especiais, laboratórios e centros de atendimento a surdos que baseavam o seu trabalho em propostas de bilinguismo para surdos. Elas abrangiam ainda os cursos e congressos sobre Libras e educação bilíngue de surdos que eram promovidos pelas universidades, Feneis e instâncias governamentais. Ademais, várias instituições religiosas desempenharam esse papel (ASSIS SILVA, 2012).

A partir de tais estruturas, formaram-se e articularam-se as redes de troca relativas aos direitos dos surdos e ao reconhecimento da Libras, as quais serviram de fio condutor para a criação e o estreitamento de vínculos de solidariedade entre os atores sociais envolvidos na emergência do movimento social surdo. Essa dinâmica formativa corroborou a proposição teórica de que a ação coletiva não deriva de uma simples “[...] agregação de indivíduos atomizados [...]” que não têm ligações preexistentes entre si (MELUCCI, 1996, p. 18, tradução nossa). Resulta, ao contrário, de “[...] processos complexos de interação mediados por certas redes de pertencimento [envolvendo] uma estrutura articulada de relações, circuitos de interação e influência, e escolhas entre formas alternativas de comportamento” (MELUCCI, 1996, p. 18, tradução nossa).

Nesse sentido, a aplicação do conceito de latência contribui exatamente para aclarar e explicar as dinâmicas e as funções dos processos relacionais cotidianos que precedem a entrada dos movimentos sociais na arena pública durante as fases de visibilidade.

Melucci (1989b) observa ainda que a latência semeia as ações coletivas públicas que constituem o polo visível do movimento. A mobilização na esfera pública requer o sentido e a orientação dos quadros interpretativos e códigos culturais que são forjados e vividos antecipadamente no dia a dia das redes sociais previamente estabelecidas na fase de latência. A latência é a condição sem a qual não haveria mobilização. Como face visível do

movimento, a mobilização desenvolve uma importante função simbólica que inclui diversos significados:

Ela proclama oposição contra a lógica que orienta a tomada de decisão em relação a uma política pública específica. Ao mesmo tempo, ela age como um meio que revela ao resto da sociedade a conexão entre um problema específico e a lógica dominante do sistema. Em terceiro lugar, ela proclama que modelos culturais alternativos são possíveis, especificamente aqueles que a sua ação coletiva já pratica e mostra. A mobilização unifica o impulso da inovação cultural, as demandas antagônicas, e outros níveis que compõem a ação do movimento (MELUCCI, 1994, p. 127, tradução nossa).

As mobilizações públicas desempenham ainda funções de ordem mais estratégica na existência dos movimentos sociais. Primeiro, elas são o momento de contato direto do movimento com o sistema político, pois, durante a latência, “[...] apenas os núcleos profissionalizados mantêm contatos principalmente instrumentais com algum setor do sistema político” (MELUCCI, 1994, p. 128, tradução nossa). Segundo, “[...] a visibilidade reforça as redes submersas. Fornece energia para renovar a solidariedade, facilita a criação de novos grupos e o recrutamento de novos militantes atraídos pela mobilização pública que então flui na rede submersa” (MELUCCI, 1989b, p. 62).

As passeatas organizadas no Rio de Janeiro, em 1994, e em Porto Alegre, em 1999, são exemplos de demonstrações públicas proclamando a existência do movimento social surdo.44 No Rio de Janeiro, os militantes transmitiram sua mensagem de autoafirmação e protagonismo utilizando-se de elementos com forte sentido simbólico, como o logo Surdos

Venceremos desenhado nos cartazes e faixas carregados durante manifestação. Em Porto

Alegre, os militantes discutiram, votaram e entregaram eles mesmos às autoridades públicas o documento A educação que nós surdos queremos (FENEIS, 1999b), que demarcava suas principais reivindicações.

44 Tarrow (2009, p. 131) destaca que os movimentos sociais normalmente utilizam formas de ação coletiva convencionais, com a demonstração pública, porque elas fazem parte de um “[...] repertório geralmente conhecido e compreendido [...]” pelos atores envolvidos. As passeatas promovidas pelo movimento social surdo brasileiros são exemplos claros desse tipo de demonstração pública e serão comentadas mais detalhadamente no capítulo 4 deste trabalho.