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4 O MOVIMENTO SOCIAL SURDO E A LUTA PELA OFICIALIZAÇÃO DA LIBRAS

4.1 LATÊNCIA DO MOVIMENTO SOCIAL SURDO

Melucci (1989b, 1996) explica que os movimentos sociais desenvolvem-se a partir de dois polos reciprocamente correlacionados de latência e de visibilidade. No polo da latência, seus membros interagem na produção e experimentação direta de códigos e valores culturais alternativos aos disseminados pelos sistemas dominantes. Desse modo, eles constroem primeiro entre si um espaço social de reconhecimento, no qual elaboram uma identidade coletiva, constroem quadros interpretativos comuns acerca da sua realidade social, assim como definem e partilham os significados que atribuem às suas reivindicações perante a sociedade e o Estado (MELUCCI, 1996).

Nos anos 1980, as associações de surdos, escolas especiais para surdos e instituições religiosas, dentre outros espaços que propiciavam situações de convivência, passaram a funcionar como estruturas primordiais de latência do movimento social surdo. Tais estruturas ampliaram-se com o passar dos anos, inclusive em função da significativa criação da Feneis e dos seus escritórios regionais, e adquiriram, a partir de meados da década de 1990, ainda maior dinamismo, complexidade e alcance territorial, integrando, além dos espaços já tradicionais de formação de redes sociais entre os membros surdos e ouvintes do movimento, vários outros, tais como uma miríade de grupos de pesquisa e eventos, como congressos e seminários, vinculados a universidades e ao próprio movimento.

Na latência, antes de qualquer coisa, os membros do movimento social surdo puderam investir na construção e experimentação de um modelo cultural que não fosse tão conformado pelos padrões culturais dominantes, os quais normalmente enquadravam a pessoa surda pelo modelo médico ou assistencialista da surdez, sendo a sua forma de comunicação em sinais muitas vezes desprezada ou considerada subalterna à língua oral. Ao contrário, os novos códigos e valores culturais da latência eram estruturados na valorização, utilização e, em seguida, no reconhecimento do estatuto linguístico da língua de sinais.

Não por acaso, as associações e organizações de surdos foram os primeiros espaços a afirmarem-se como latência do movimento social surdo. Afinal, tais associações são descritas pela literatura como espaços essenciais para o estabelecimento de relações sociais entre as pessoas surdas, contribuindo decisivamente para a valorização, preservação e aperfeiçoamento da forma de comunicação em sinais utilizada pelos surdos que dependia da interação face a face para ocorrer (McCLEARY, 2004; ALBRES, 2005; MONTEIRO, 2006; SCHIMITT, 2007). Nesse sentido, Fernando Valverde (2000, p. 35), uma das lideranças pioneiras do movimento social surdo, recorda-se das associações como territórios livres do preconceito de muitas pessoas ouvintes em relação ao uso da língua de sinais:

Antigamente não havia conhecimento aqui no Brasil quanto à existência da Língua de Sinais. Usualmente se referiam à LIBRAS como se fosse mímica ou gestos e não entendiam o que significava uma comunicação através de sinais. Enquanto, em outros países, a Língua de Sinais já era conhecida. Diante da falta de conhecimento por parte da sociedade civil quanto à existência de uma comunidade que possui uma língua diferente da Língua Portuguesa usada pelas pessoas ouvintes, os surdos sentiram a necessidade de fundar associações numa forma de poderem divulgar sua língua e cultura e poderem, assim, estar livres do preconceito que sentiam na sociedade maior, onde percebiam os constantes deboches no uso da Língua de Sinais.

Leite, E. (2004, p. 29) afirma que, para os surdos, as associações são percebidas como “[...] um espaço de convívio, onde a língua de prestígio é a língua de sinais [...]” e cita o exemplo de uma das mais famosas associações de surdos existente na cidade do Rio de Janeiro que, tendo sido concebida dentro dos parâmetros culturais oralistas, foi completamente ressignificada pelos seus membros. Segundo a autora, a professora e diretora de uma escola particular que se guiava pela abordagem oralista criou a Associação Alvorada em 1956 para ser um local onde os surdos pudessem se sentir à vontade em relação à prática da língua oral, ou seja, onde não sofressem constrangimentos ou provocações em função de eventuais dificuldades de pronúncia de algumas palavras. Entretanto, com o passar dos anos, a

associação “[...] transformou-se em uma comunidade onde a língua de sinais se desenvolveu livremente e se fortaleceu como língua de prestígio para a comunidade surda brasileira, até hoje” (LEITE, E., 2004, p. 29). Vale lembrar, aliás, que importantes lideranças surdas são provenientes dessa associação, como Ana Regina Campello e João Alves.

Nesse sentido, apesar de caracterizações mais generalistas, nas quais são apontadas como essencialmente apolíticas (FERREIRA BRITO, 2003), nossa investigação evidencia que determinadas associações, como a Associação Alvorada, na cidade do Rio de Janeiro, e a Associação dos Surdos de Minas Gerais (ASMG), em Belo Horizonte, não apenas configuraram-se desde os anos 1980 como latência do movimento social surdo, como proveram muitos de seus primeiros quadros de lideranças e ativistas, bem como recursos para a arregimentação de militantes.

Klein (2005, p. 1) sublinha, nesse sentido, que um “[...] dos principais fatores de reunião das pessoas surdas é a Língua de Sinais, através da qual elas encontram oportunidades de compartilhar suas experiências e seus sonhos, e também um espaço de reafirmação da luta pelo direito ao uso dessa língua”. Já Monteiro (2006, p. 284) atribui às atividades realizadas pelas associações de surdos uma contribuição fundamental para “[...] a preservação da Língua de Sinais e da Identidade Cultural Surda e consequentemente para o fortalecimento da luta pelos direitos dos Surdos”.

A narrativa de história oral da acadêmica e ativista surda, ex-presidente da Feneis, Karin Lilian Strobel evidencia muito bem como as associações de surdos funcionavam enquanto polo da latência, no qual “[...] as pessoas experimentam diretamente novos modelos culturais – uma mudança no sistema de significados – que, com muita frequência, é oposta às pressões sociais dominantes [...]” (MELUCCI, 1989b, p. 61). Ela recorda-se que, quando era adolescente, sentia-se revoltada e angustiada com o fato de ser surda, e sua revolta interior afastava-a do convívio com outras pessoas, aumentando o seu isolamento social. Então, sua mãe tomou uma atitude que mudou a vida dela:

Ela procurou uma associação de surdos [Associação de Surdos de Curitiba], quando eu tinha 15 anos, porque eu estava muito sozinha, não tinha amigos. Eu não tinha amigos surdos porque a escola proibia amigos surdos. [...] Quando chegamos lá, foi como se uma porta se abrisse para o mundo. Eu comecei a adquirir vocabulário contextual e a compreender o sentido e o significado das coisas. Foi uma abertura para mim. A partir dali, eu aprendi, realmente, a me comunicar e me assumi como surda. [...] Na associação de surdos, eu comecei a me ver como surda e me assumir como pessoa. Comecei a construir minha identidade de pessoa surda, aprendi a Língua de Sinais, uma língua com a qual eu conseguia me comunicar. O mundo

melhorou para mim a partir daí. Ficou muito mais fácil (apud LANNA JÚNIOR, 2010, p. 261-262).

Ao lado das associações de surdos existentes em várias localidades do país, funcionavam como verdadeiras estruturas de articulação de redes de relacionamento interpessoal no polo da latência do movimento as diferentes escolas especiais, instituições religiosas, bem como os mais diversos grupos culturais e de pesquisa acadêmica. Eram espaços os mais distintos, espalhados pelos estados brasileiros, tais como o Grêmio Estudantil do Ines (Gines), a Companhia Surda de Teatro e grupos de pesquisa ligados a UERJ e a UFRJ, na cidade do Rio de Janeiro, ou ainda a Escola Especial Concórdia, a Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) e grupos de pesquisa ligados à UFRGS e à Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), na cidade de Porto Alegre. O que havia de denominador comum entre esses múltiplos espaços de convivência era que, de maneiras diferentes, e em contextos sociais distintos, eles historicamente possibilitaram a pessoas surdas recursos para poder construir e partilhar uma nova identidade com base em quadros interpretativos e códigos culturais diferentes dos hegemônicos, pois, como explica Melucci (1989b, p. 61), “A latência cria novos códigos culturais e faz com que os indivíduos os pratiquem.”

Por exemplo, os atores da Companhia Surda de Teatro87, criada na cidade do Rio de Janeiro, em 1991, escreviam, produziam e encenavam peças em língua de sinais em escolas especiais para surdos, festivais de teatros, congressos e outros eventos acadêmicos na área da surdez, ou seja, eles já experimentavam na latência uma produção cultural alternativa com relação aos padrões dominantes na sociedade (FENEIS, 1993b, p. 7). Para o ator, dramaturgo, professor de teatro e ativista surdo Nelson Pimenta de Castro, um dos fundadores dessa companhia teatral, os aspectos visuais e expressivos da linguagem teatral eram meios favoráveis à transmissão de ideias do movimento social surdo aos surdos não oralizados. Ele elucida o sentido político dessa produção cultural na entrevista que nos concedeu:

O movimento surdo foi um grande colaborador para mudar a cabeça das pessoas, porque a sociedade, os políticos puderam ver esse movimento. Os nossos militantes

87 A Companhia Surda de Teatro, originalmente chamada de Grupo Silencioso, foi criada em 1991 por um grupo de atores e dramaturgos surdos composto por Nelson Pimenta de Castro, Alexandre Luiz e Carlos Góes, além da atriz e diretora teatral Lanúcia Quintanilha. As primeiras montagens foram as peças Loucos Quadrinhos (1991), dirigida por Dartagnan Holanda e Oscar Saraiva, Sem Mais Palavras (1992), dirigida por Oscar Saraiva e Lanúcia Quintanilha, e Somos Todos Diferentes (1993), dirigida por Lanúcia Quintanilha e cujo elenco incluiu os surdos Silas Queiroz, Marlene Prado, Kelly D’Ávila e Vicente Scofano (FENEIS, 1993b, p. 7).

surdos tiveram um grande potencial para argumentar em relação a essa mudança. Antes, não havia um movimento tão forte. Então, a gente cobrava da forma que podia, com o teatro... Eu percebia que, anteriormente, nós explicávamos sobre o Orgulho Surdo, os direitos dos surdos, mas ninguém percebia nada, ninguém captava nada que nós quiséssemos falar. Mas o teatro é muito rápido, é de uma forma visual muito forte. Então eu acho que nós conseguimos mobilizar através dos nossos militantes e nossa equipe de teatro, em Niterói, em Copacabana. Nas escolas existiam as disciplinas, mas os surdos viam aquilo e ninguém explicava nada, porque o visual é mais forte para o surdo. Nós não percebíamos nada, só captávamos e compreendíamos um pouco do que era fixado. Só os surdos que tinham surdez moderada é que eram capazes de transmitir alguma coisa. Mas o surdo profundo precisava de algo mais visual. Então, nós batalhávamos por isso. A gente queria mostrar que, no teatro, a gente não precisava de fala e lutávamos em relação a isso.88

Portanto, no contexto sociopolítico dos anos 1980-1990, esses diferentes espaços que serviam à socialização e à articulação interpessoal deram origem às redes de troca entre indivíduos, grupos e organizações de pessoas surdas, fornecendo assim os fios utilizados para costurar as relações de solidariedade entre os atores sociais cuja interação constituiu o movimento surdo.