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Desafios à Integração da Espiritualidade na Prática

No documento TESE FINAL Patricia Pacheco (páginas 36-41)

1. ESPIRITUALIDADE, ENFERMAGEM E DESENVOLVIMENTO

1.4. Desafios à Integração da Espiritualidade na Prática

Diversos estudos e autores apresentam a dificuldade na inclusão da espiritualidade na prática de saúde e muito mais no processo de desenvolvimento. (Beek, 2000; Chuengsatiansup, 2003; Holenstein, 2005; Leão, 2007; Sá e Pereira, 2007) Chuengsatiansup refere que tal se deve ao facto de o pensamento científico tradicional ser dominado por uma visão reducionista e materialista do mundo, pelo que um todo complexo, seja um sistema ecológico ou um organismo vivo, é visto como redutor e pode ser explicado por um exame objetivo e medido pelos seus componentes. (Chuengsatiansup, 2003) A espiritualidade exige uma outra abordagem mais aprofundada e integrada numa visão holística da pessoa, o que contraria a máxima “ele pensa, por isso ele é…” (Chuengsatiansup, 2003, s. p.) Entender a vida espiritual não é possível somente através da contemplação cognitiva, mas é possível através das práticas, da integração em determinada realidade que se deseje estudar.

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Para além de focar o modelo biomédico que permeia a tecnologia e o tecnicismo e ainda impera na grande maioria dos serviços de saúde, Leão (2007) refere que os próprios profissionais de saúde têm sido pouco preparados para lidar com a espiritualidade. O mesmo autor reconhece que ainda existem dificuldades na manutenção dos aspetos psicossociais e muito mais em relação à espiritualidade, o que se observa concretamente na dificuldade social de lidar com a morte.

O advento da evolução técnico-científica deu maior importância à máquina do que ao ser humano como referem Sá e Pereira (2007), não dando espaço à manifestação das reais necessidades do mesmo. Concluem que os discursos dos profissionais surgiam sempre com a mesma mensagem – a dificuldade de agir na esfera da espiritualidade, alegando “falta de tempo” ou de “formação específica para oferecer esse tipo de suporte”. (Sá e Pereira, 2007, p. 233)

A análise sobre como a eficácia da prática do desenvolvimento, de acordo com Kurt Alan Ver Beek (2000), deve incluir fatores que influenciam a visão do mundo das pessoas, como a questão do género, o conhecimento indígena ou a estrutura social ou étnica. Contudo, como alerta o mesmo autor um aspeto tão determinante e constitutivo da vida das pessoas não tem sido olhado de frente e refletido – a espiritualidade.

Até se clarificar as razões porque a espiritualidade tem estado ausente da agenda dos PD, esta não receberá a atenção devida dos responsáveis pelas organizações que trabalham no desenvolvimento. Beek (2000) apresenta algumas razões:

1. O medo de impor ou parecer impor uma perspetiva externa (seja religiosa, científica ou materialista), como já aconteceu no passado as pesquisas das ciências sociais tendiam a desvalorizar a religião e a espiritualidade como um sistema de crenças baseado em mitos obsoletos, dando à sociedade uma perspetiva negativa.

2. A visão da maioria dos países do Norte que separa o sagrado e o secular, o que dificulta a compreensão e aceitação de outras culturas, onde o sagrado e o secular estão integrados, não há separação.

3. O medo do conflito. Os conflitos na Irlanda do Norte, no Médio Oriente ou nos Balcãs têm sido exemplo na manipulação da religião por parte de homens com intenções de ordem política ou social. Se por um lado, o silêncio não tem ajudado a resolver os conflitos, como se sabe tende a aumentá-los. Por outro lado, o diálogo está na base de qualquer resolução de conflitos como o género, o ambiente ou os grupos étnicos.

4. A inexistência de modelos e teorias que integrem a espiritualidade. Esta ausência pode convencer alguns de que a espiritualidade não tem legitimidade para ser estudada e muito menos integrada nos PD, evitando assim conflitos com supervisores, financiadores ou participantes dos projetos.

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A ausência de reflexão da espiritualidade por respeito à cultura local ou medo de imposição não deixa a população indiferente, como defende Beek (2000). O silêncio não é indiferente, deixa sempre alguma mensagem. Esse pode levar à adoção inconsciente de métodos “científico-materialistas” na agricultura, na saúde ou na ação social. As pessoas são privadas de descobrir por elas próprias se determinadas escolhas estão ou não em conflito com a sua espiritualidade ou se e como ambos podem coexistir e complementar-se mutuamente (Beek, 2000) Devem ser as pessoas a estabelecer as suas prioridades, alega Sen (1999, cit. por Holenstein, 2005), afirmando que o modo tradicional de vida tem de ser sacrificado para se escapar à pobreza é da responsabilidade das pessoas diretamente envolvidas que devem ter a oportunidade de participar na decisão que devem tomar. Deste modo, respeita-se a autodeterminação das populações, evitando-se atitudes de paternalismo que podem conduzir a uma menor eficiência dos PD. Será apenas pelo diálogo que as pessoas que envolvem os PD poderão compreender como a espiritualidade dá forma às suas vidas e decisões, como afeta e é afetada pelos diferentes caminhos do desenvolvimento, e como as pessoas podem tomar decisões informadas sobre o seu próprio caminho. (Beek, 2000)

Assim se tem vivido com a ambivalência da religião e espiritualidade, pois envolve riscos e potencialidades. Se por um lado, pode ser usada de forma abusiva pelo poder e instrumentalização, por outro lado a religião e a espiritualidade são fontes de motivação, inclusão, participação e sustentabilidade das populações em geral. Por isso, os dilemas da religião e da espiritualidade “belongs to the human condition and without a willingness to take risks, there will

be no inclusiveness or creativity”. (Holenstein, 2005, p. 22)

O desafio de integrar a espiritualidade na prática permanece em muitas organizações e instituições tanto de saúde, como na prática da cooperação para o desenvolvimento. Craigie (1998) tentou facilitar esse processo, identificando três dimensões da espiritualidade nos cuidados de saúde: 1. O bem-estar espiritual dos pacientes e famílias, como os profissionais de saúde com capacidades desafiam as pessoas a cultivar o sentido nas suas vidas e a desenvolver as suas potencialidades; 2. o bem-estar espiritual dos trabalhadores, como os profissionais de saúde cultivam o seu próprio sentido, consciência, equilíbrio e a “consciência do Todo” nas suas vidas; 3. o bem-estar espiritual da organização, como as crenças, valores e normas da organização suportam e promovem o bem-estar espiritual dos indivíduos e das equipas.

Estas dimensões são interdependentes, sendo que, como explica Craigie (1998), o cuidado espiritual dos doentes e suas famílias depende do bem-estar espiritual dos trabalhadores e grupos da organização. O cuidar requer, mais do que clínicos competentes, requer uma força de trabalho espiritual saudável e uma cultura e ambiente de trabalho que promovam o bem-estar, a criatividade e o compromisso organizacional.

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Por seu turno, Beek (2000) apresenta três passos básicos para se explorar a espiritualidade perspetivando a prática do desenvolvimento, especialmente em contextos culturais diferentes. No primeiro passo, os investigadores devem aprender e compreender, o melhor possível, o sistema de conhecimento local, que é obtido através do reconhecimento e discussão das crenças locais, observação e participação nas práticas locais. No segundo, devem ser criados momentos de reflexão sobre os objetivos da comunidade local e como as suas práticas e crenças, assim como as novas alternativas podem dificultar ou ajudar no seu alcance. Por fim, no terceiro passo, as pessoas da comunidade devem por elas próprias decidir sobre quais os objetivos que desejam atingir e como o vão fazer, qual a assistência externa de que precisam e qual o papel das suas tradições tem em todo o processo, onde a espiritualidade é fundamental.

Para incorporar as três dimensões na prática das organizações de saúde, Craigie (1998, p. 27-28) disponibiliza treze recomendações, a saber: a importância de se definir claramente espiritualidade; a separação entre espiritualidade e medicina complementar; a distinção entre espiritualidade e Capelania; partir daquilo que as pessoas já fazem; focar no “copo meio-cheio”; considerar uma pessoa de cada vez, numa relação pessoal; modelar a espiritualidade a partir do exemplo dos líderes; desenvolver a espiritualidade na missão; medir e avaliar; criar uma visão sobre a incorporação da espiritualidade na organização; enfatizar o apoio e suporte dos pares e colegas de trabalho; incluir todos na organização e manter o diálogo. Por seu lado, no contexto da cooperação para o desenvolvimento, Holenstein (2005) apresenta oito pontos importantes a ter em conta como clarificar e comunicar o ponto de vista da organização; estar consciente do contexto sociocultural e religioso da área de intervenção; estar consciente dos efeitos dos programas de desenvolvimento no ambiente sociocultural; diálogo com organizações locais; uma base comum entre organizações parceiras; estímulo para a gestão das instituições; questões que conduzem ao diálogo o perfil religioso da organização e às relações de cooperação; e lidar com o risco relacionado com a polarização e instrumentalização.

A maioria dos estudos nesta área tem sido baseada em instrumentos dirigidos à religião e não tanto à espiritualidade, como também Williams e Sternthal (2007) concluíram quando desenvolveram um estudo comparativo nos EUA e Austrália. Através da sua revisão sistemática de literatura, apresentam sugestões importantes para novos estudos. Assim, sugerem que a pesquisa devia procurar maior rigor na conceptualização e medida das variáveis da religiosidade/espiritualidade, por exemplo: 90% dos americanos rezam, mas não sabemos o tipo de oração que realizam, que tipos de experiências têm durante a oração, o seu significado e satisfação ou a frequência. As pesquisas devem ter o cuidado de distinguir os aspetos espirituais daqueles que se referem mais às questões sociais e culturais. Mais revisões sistemáticas devem examinar como um leque maior de indicadores de práticas de saúde, sistemas de crenças, papéis

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de identidade, o apoio clerical, social e fontes psicológicas podem mediar a relação entre o envolvimento religioso e a saúde. (Williams e Sternthal, 2007) Os mesmos autores alertam, ainda, para uma maior atenção para os mecanismos biológicos através dos quais a religião se manifesta no organismo, considerando-se não só indicadores como a tensão arterial e o pulso, mas muitos outros que afetam o sistema nervoso central, parâmetros metabólicos e o sistema imunitário. Por fim, a maioria das pesquisas tem sido feita a partir de populações com afiliações judaico-cristãs e ocidentais, por isso:

“[d]espite the challenges of cross-cultural comparison, research on diversity in religion orientation and geography is necessary to determine the generalisability of current findings on the association between religion and health. (…) research has neglected specific subpopulations, such as Hispanics, Asian Americans, Native American sang groups of low socioeconomic status.” (Williams e Sternthal, 2007, p. S49)

Partindo do facto de que a crença judaico-cristã tem tido uma maior influência sobre a sociedade ocidental e contribuído mais para a investigação, Narayanasamy (1999) advoga que se deve transcender qualquer tradição religiosa para considerar a espiritualidade como uma função humana universal. Este autor apresenta vários estudos onde a evidência sugere que as religiões orientais desenvolveram igualmente a espiritualidade. Por exemplo, é na Índia que está instalada a Universidade Espiritual Mundial Brahma Kumaris. Assim, reforça mais uma vez a importância de se construir conhecimento transversal a diferentes culturas e credos, de modo a transcender a tradição religiosa e alcançar a universalidade da espiritualidade.

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No documento TESE FINAL Patricia Pacheco (páginas 36-41)