• Nenhum resultado encontrado

Descrição dos espetáculos

3. Descrição e análise do registro do espetáculo A Demanda do Graal Dançado.

A versão a que tive acesso da Demanda do Graal Dançado não é a da estréia. Nessa versão posterior, Fernanda Lisboa foi substituída por Viviane Madureira, formada pelo Balé Popular do Recife, e Maria Imaculada, filha de Mestre Salustiano, integrou o elenco realizando algumas inserções nas cenas.

Claramente, há um elenco feminino que representa a formação erudita (Maria Paula, Viviane Madureira e Valéria Medeiros) e um elenco que representa a formação popular (Jaflis Nascimento, Pedro Salustiano e Maria Imaculada). O figurino segue o motivo do cenário e é composto por calça e blusa de malha, com algumas variações de adereço. O cenário ao fundo é um pano de cor ocre com símbolos que remetem à xilogravura e às artes plásticas Armoriais, criado pelo artista plástico Dantas Suassuna. No centro, há um portal oval coberto por uma cortina de tela fina e transparente, onde, nos momentos de música ao vivo, concentra-se o grupo de músicos.

Dois dançarinos entram pela platéia, enrolando um cordão da cor da sua roupa. Um enrola um cordão vermelho; e o outro, um cordão azul. Essas cores são usadas nas apresentações do folguedo pastoril, distinguindo os grupos rivais de dançarinas (pastoras). Pode-se pensar essa escolha como uma alusão ao imaginário das tradições que serão reunidas em cena.

Pela coxia esquerda (visão do público), uma bailarina vestida de vermelho, com um pano cobrindo a cabeça e o tronco, se movimenta numa seqüência, que se repete e será seguida em cânone por mais duas dançarinas, que entram aos poucos em cena. A movimentação inicia-se com um rápido deslocamento circular no espaço que termina na ponta dos pés, com os braços levantados e é rapidamente seguido por outro deslocamento lateral que termina com os braços erguidos em posição paralela, acima da cabeça. A organização dessa movimentação remete ao mergulhão do cavalo marinho, sem repeti-lo literalmente. Em seguida, são dados alguns passos com os ombros balançando horizontalmente, fazendo o tronco descer. Enquanto essa movimentação se repete, os dois dançarinos atravessam a cena, carregando um andor com uma redoma transparente vazia, que representaria o graal ou a dança procurada. A música tocada ao vivo é um solo de rabeca.

A rabeca silencia e tem início uma música de Villa-Lobos. Essa música tem quatro divisões. Na primeira, predominam elementos melodiosos, de uma certa melancolia. As três dançarinas (eruditas) acompanham a música orquestrada com movimentos que seguem suas variações. Predominam movimentos ondulados de braços e da coluna, que são eventualmente somados a saltos que remetem a movimentos de balé, como pequenos tanlevées, e rolamentos mais ligados à dança moderna. Durante toda a coreografia, os dançarinos de formação popular atravessam a cena, ora com o andor, ora com candeeiros acesos. Na segunda variação, com tom mais alegre, predominam os passos tanlevées com maior impulso e deslocamento, e, ao mesmo tempo, usando-se os braços girando, estirados. Há também movimentações em que o quadril se destaca (fugindo da convenção formal do balé, em que o quadril é sempre fixo), e rolamentos. Na terceira variação da música, todos estão fora de cena e há um foco de luz no centro do palco. O dançarino vestido de azul, Jaflis Nascimento (dançarino popular), entra segurando uma armação que está amarrada a sua cintura e cobre o seu tronco e a sua cabeça. No decorrer da seqüência, ele solta a armação que ganha contornos de uma saia de maracatu. Dança, então, movimentos do maracatu de baque virado, relidos e criados pelo Balé Popular do Recife90, alternando a dinâmica, acelerando e ralentando em alguns momentos e sem que essas dinâmicas sejam sugeridas pela música. (muitos desses movimentos não são encontrados em maracatus tradicionais, sendo recriações a partir de modos de dançar do povo que os pesquisadores do Balé Popular do Recife ampliaram e codificaram, mas que se encontram popularizados atualmente). Durante a movimentação de Jaflis Nascimento, que não segue a melodia ou o ritmo da música, acontecem entradas e saídas das dançarinas e dos dançarinos. Na quarta variação da música, duplas de dançarinos atravessam o palco horizontalmente, ligados por um pedaço de pano. O contrapeso mantém o pano esticado, enquanto as duplas atravessam o palco. Parece ser uma metáfora das conexões entre qualidades de dança opostas, em busca de equilíbrio.

Em outra cena, o dançarino canta e toca com o pandeiro, um coco de embolada. Duas dançarinas “eruditas” seguem o ritmo do pandeiro acompanhando com movimentos de partes do corpo, usando pequenos saltos e uma variação de movimentos de pernas inspirados no coco de roda. Elas brincam com o ritmo se relacionando com o pandeirista.

90

Segundo a coreógrafa, a escolha desses movimentos partiu da observação de danças do candomblé, base do maracatu de baque virado. No entanto, é inegável a semelhança do resultado apresentado com a forma apresentada pelo Balé Popular do Recife, desde a década de 1970.

Saem de cena e os músicos por trás da cortina transparente, tocam uma música de cavalo marinho. Pedro Salustiano desenvolve um solo com movimentos de cavalo marinho, enquanto acontecem novas passagens no palco (de uma coxia para outra) pelos demais dançarinos. Quando o cavalo marinho é tocado só com elementos de percussão, sem a rabeca, as três dançarinas desenvolvem movimentações que se inspiram em movimentos do cavalo marinho misturados com rolamentos no chão (ou seja, parte-se de uma partitura vertical, fundindo-a com um elemento estranho a essa dança e bastante usado na dança moderna, que é o contato com o chão). A música da rabeca retorna, e as entradas e saídas dos dançarinos continuam se alternando até a música acabar num ápice, em que o dançarino de destaque termina levantado no centro do grupo.

Inicia-se a música de Zoca Madureira, do Quinteto Armorial. Essa música apresenta elementos rítmicos do maracatu, cavalo marinho e do caboclinho, compostos através de arranjos e execução que remetem a uma composição erudita. Uma dançarina derrama água em vasilhas nas laterais do palco, enquanto os dançarinos manipulam a água derramada. Na música, passam a predominar elementos da música do maracatu de baque virado, e os dançarinos utilizam movimentos dessa dança; depois predominam elementos do cavalo marinho, em seguida, quando predominam elementos do caboclinho, Maria Paula realiza um solo inspirado em movimentos dessa dança. Em determinado momento, os dois dançarinos entram com lanças de maracatu de baque solto, interagindo com a dançarina e saindo em seguida.

No retorno da música, a coreografia reúne todos do elenco, executando o mesmo tipo de movimentação. A estrutura continua com entradas e saídas de todo o elenco, mas as duplas não seguem mais a divisão entre populares e eruditos. Podem ser identificados movimentos de diversas danças populares misturados com movimentações apresentadas nas primeiras cenas ou variações de sua lógica.

A música seguinte é de Beethoven e a movimentação é composta predominantemente de movimentos do cavalo marinho, acompanhado de movimentos de danças populares como o frevo, a capoeira e o maracatu, com ênfase na leveza na atitude corporal. Inicialmente, vêem-se os movimentos do mergulhão, que normalmente é feito em círculo, serem usados para cruzar o palco, ou seja, ao invés do círculo, apresentam-se no plano frontal. Em seguida, o mergulhão acontece em círculo, mas com todos dançando (no mergulhão tradicional, só dança a dupla que está se desafiando). A coreografia propõe, portanto, que os movimentos sejam vistos por diversos ângulos. Ao fim dessa música,

Mestre Salu sai da cortina e entrega a rabeca a um dos elementos do grupo, numa espécie de ritual.

A última música é um frevo com predominância de elementos melódicos, de autoria de Antonio Carlos Nóbrega. Na coreografia destaca-se Jaflis Nascimento, dançando frevo, enquanto o trio de dançarinas se movimenta acompanhando a música com partes do corpo. Uma das dançarinas (Viviane Madureira) se reveza entre estar em sincronia com a dupla de dançarinas e dançar frevo em sincronia com o dançarino.

A Demanda é, portanto, traduzida em dança através das tentativas de diálogo entre um repertório de movimentos de danças populares e movimentos criados a partir de uma relação entre corpo, música e tema, utilizando-se para isso referências clássicas e modernas. No início, as dançarinas que interpretam a parte da dança erudita recebem a intervenção dos dançarinos e de seus movimentos de danças tradicionais; em seguida, a predominância se inverte e destaca-se o maracatu. A próxima etapa é revelada pela tentativa de duas dançarinas criarem a sua dança, com a mesma lógica de antes, mas dialogando com o pandeirista e a sua embolada. Há um retorno à dinâmica anterior, agora com o cavalo marinho em destaque, intercalado pelas tentativas de criação das dançarinas inspiradas na música popular. E a terceira etapa começa com uma música clássica, de Beethoven, que é tema para uma série de improvisações sobre a dança do cavalo marinho, em que não há distinção evidente do papel de erudito e de popular na movimentação do elenco, apesar de isto ser claro na postura corporal individual, devido às formações diferenciadas. Realizada a demanda e encontrado o Graal, ou seu caminho, o grupo pode ser presenteado com a rabeca do mestre popular e comemorar com um frevo armorial. Em nenhuma das cenas é evocada a relação com o local ou situação de origem dessas danças; o seu olhar é sobre os movimentos e as dinâmicas, fazendo ressaltar as qualidades e as possibilidades de serem apreciados como qualquer outro movimento criado para a cena de dança.

Para além das descrições e possíveis sentidos que atribuo ao desenvolvimento coreográfico, sobressai nesse espetáculo um estudo de movimento conectado a leituras musicais. Este remete a um ambiente potencialmente ritualístico, mas se estrutura de forma evidentemente contemplativa. Quero dizer com isso que o ritual ou processo é mais encenado do que vivenciado coletivamente. O seu foco não está em apresentar tradições locais, nem na articulação de um discurso sobre as relações dessas danças com a sociedade. O foco é a construção de uma linguagem de dança própria ao grupo, um modo armorial de se mover, que passa pela elaboração não exatamente de um vocabulário de movimentos,

mas pelo estudo dos usos dos movimentos advindos de danças populares e experimentos dos próprios dançarinos. Nesse sentido, há uma ênfase no uso do peso no centro de elevação, emprestando-se maior leveza à execução dos movimentos. Os braços em geral são utilizados de forma sinuosa, trazendo também elementos de leveza e suavidade.

Enquanto fruição, o que sobressai não é a estória, mas os aspectos de composição da movimentação no espaço, recheados por símbolos da literatura de Suassuna.