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Sem aviso, abro braços e pernas ao mesmo tempo Nesse rompante assumo a posição de combate e defesa: pernas esticadas meu pé direito, apoiado sobre

Seqüência 02 Ângelo Madureira 55 :47 a 56 :15 movimento

5.2 Procissão dos Farrapos do grupo Balé Brincantes: o criador, descrição e análise do espetáculo.

5.2.4 Poética do espetáculo e a utilização do frevo Imagem

Alexandre Macedo interpreta o mendigo em Procissão dos Farrapos

A análise do espetáculo Procissão dos Farrapos foi realizada a partir do registro, disponibilizado pelo Acervo RecorDança, da apresentação de estréia, no Pátio de São Pedro – Recife, em 02 de novembro de 1991, como parte da programação do projeto Estação Dançar. A descrição com detalhamento está disponível nos Anexos desta dissertação.

No Espetáculo Procissão do Farrapos, o frevo aparece como dança e música, após a cena de aliciamento sexual. O enredo da coreografia se estrutura como encenação de briga e perseguição dos mendigos ao casal da cena anterior. A música de Antônio Carlos

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O Bumba-meu-boi em Pernambuco é o resultado da aglutinação de vários reisados. O núcleo central é o episódio da morte e ressurreição do boi.

Nóbrega, interpretada pelo Quinteto Armorial, não é uma composição tradicional de frevo, mas uma releitura que mistura ritmos de frevo e caboclinhos. A música mantém o elemento “viril” do frevo de rua que é amplificado pelo desenvolvimento coreográfico.

A composição coreográfica dialoga com os elementos rítmicos e melódicos da música, mas, ao contrário da “alegria” e descontração das apresentações convencionais, ressalta a postura de agressividade na execução dos movimentos e enfatiza movimentos que mantêm semelhanças com golpes, tais como “rojão” e “pernadas”. O fluxo do movimento varia entre livre e controlado, sempre com o peso ativo e forte, com ênfase no centro gravitacional. Portanto, sem elementos que produzem a sensação de leveza. Ao contrário, enfatiza-se o peso, a força e a agressividade. Sem ênfase vertical, a coluna vertebral se torna côncava, em vários movimentos, distanciando-se da postura corporal desenvolvida pelo BPR e também utilizada pelo Balé Brincantes em suas apresentações convencionais.

No final da execução da música, há momento de livre improvisação em que não é ressaltado o aspecto acrobático do frevo, sendo este aspecto colocado em segundo plano. A ênfase se mantém sobre como um corpo “de mendigo” dançaria o frevo - sem “limpeza”, finalização dos gestos, nem aspectos de simetria ou verticalização do tronco. Basicamente são utilizados movimentos de frevo e de caboclinhos, com predominância do frevo. Os movimentos de frevo apresentados são:

Nos momentos em uníssono: Pernadas

Rojão

Passeio na pracinha Plantando mandioca Tesoura com bailarina Parafuso Pernada embaixo Chutes Nas improvisações: Tesoura Pernada Tramela Pisando em brasa Parafuso Alegria do salão Abre alas Rojão Ponta de pé calcanhar Festival de bailarinas Caindo nas molas

A utilização espacial é feita de forma indireta e, apesar de manter como referência o plano frontal, se organiza, em geral, de forma não-simétrica, apresentando momentos de utilização livre do palco, quando se apreende a sensação de tumulto e de confusão. No final, aos poucos, os dançarinos caem no chão usando o movimento de frevo chamado “caindo nas molas”.

A ênfase na agressividade diverge da interpretação que o Balé Popular do Recife difundiu do frevo, em cujos espetáculos tradicionais o frevo é apresentado com alegria eufórica. Difere também da compreensão do frevo difundida por Valdemar de Oliveira ⎯ que afirma que este não herdou a agressividade da capoeira ⎯ e dos discursos que ligam o frevo apenas a uma identidade alegre e positiva.

Ao contrário, Procissão dos Farrapos apresenta uma abordagem do frevo que o conecta à situação de exclusão social dos criadores do frevo – “a canalha das ruas”, na descrição de Valdemar de Oliveira - o povo pobre do Recife. Nessa operação, não há variação dinâmica ou criação de novos movimentos, em relação ao que já era apresentado pelo BPR. A semelhança com a estrutura do Balé Popular do Recife, no que diz respeito à relação dos movimentos com a marcação rítmica da música, amplifica a diferença de leitura sobre o fenômeno frevo e denuncia o quanto a construção da corporeidade do dançarino modifica a compreensão do movimento. Nesse espetáculo, pode-se entrever a descrição do frevo feita por Benjamin Lima: “Tão original mesmo que logra ser uma expressão do belo, mediante o cultivo proposital, sistemático, intenso, do feio.” (apud Oliveira, 1993: 95).

Assim, a abordagem do frevo interrompe as narrativas convencionais que garantem que o frevo representa a alegria e o heroísmo do pernambucano. A polissemia promovida é o aspecto performativo da coreografia, pois não se trata de qual versão é mais legítima, mas da abertura para possibilidades de interpretação do frevo e das expressões culturais. Outro aspecto performativo diz respeito à encenação da questão da definição de povo, quando se fala em dança popular. À pergunta quem é o povo que produz a cultura popular, entendida como legítima expressão da cultura brasileira, o espetáculo responde: são miseráveis, olhem como eles vivem. Através de análise descritiva, contagiada pelo fluxo do espetáculo que não se subdivide em quadros, apresento como os elementos do cotidiano dos mendigos dialogam com danças populares. Os personagens estão sempre em cena e as mudanças são organizadas praticamente sem intervalo.

O espetáculo inicia-se com o palco vazio e a música instrumental e minimalista cria um ambiente de suspense que perdura por alguns minutos. Aos poucos vai se notando que um grupo de pessoas está vindo do final da rua, empurrando uma carroça. Passam pelo meio da multidão até que chegam à frente do palco. Nesse momento, dançarinos com roupas esfarrapadas e com o rosto maquiado na cor branca, e com os olhos marcados por um largo contorno preto, entram no palco e ajudam a subir a carroça da platéia para o palco, junto com os demais que a empurravam e algumas pessoas do público. Os aplausos fazem a música ficar menos audível por alguns segundos. Então, vêem-se as figuras em cena: são homens e mulheres com roupas esfarrapadas, vestidos como mendigos e moradores de rua. Seus rostos estão pálidos e os olhos, destacados, ganhando com isso um contorno expressionista, em contraponto ao figurino realista. Representam personagens mendigos: alguns estão mancando, outros têm tremores nas mãos, uma mulher carrega uma criança que chora, um outro homem se arrasta como um aleijado.

Após alguns desdobramentos narrativos e coreográficos80, inicia-se a primeira seqüência de coreografias inspiradas nas danças populares:

A primeira música é do Quinteto Armorial e utiliza elementos do maracatu de baque virado, acrescentando instrumentos melódicos e harmônicos. Seguindo o ritmo do maracatu, o grupo se movimenta, um homem abre um guarda-chuva que simula a umbrela que no maracatu protege o rei e a rainha. Ou seja, estrutura-se um cortejo que remete ao maracatu. O público parece identificar a sugestão, pois aplaude. O grupo dança movimentos “recriados” a partir desse folguedo, grupos de quatro pessoas estão em sincronia, mas, ao serem espalhadas pelo palco, a sensação que prevalece é de um tumulto, propositalmente construído. A música torna-se mais agitada e sugere uma releitura da música do caboclinho. O grupo, agora todo em uníssono, utiliza movimentos da dança caboclinhos e avança em direção ao personagem que cheirava cola, que pega um cabo de vassoura para se defender. Após um período nesse desenvolvimento coreográfico, usando basicamente movimentos da dança caboclinho, o mendigo se coloca no centro do palco, com o cabo de vassoura prendendo os braços nas suas costas. O ritmo da música se torna lento, o que, junto à ausência de movimentação, gera um certo suspense. O grupo anda em direção ao mendigo e o toca, simulando estar comendo a sua carne, numa referência a outro folguedo popular – o bumba-meu-boi. O mendigo se levanta, agora os braços presos fazem referência ao próprio

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boi, do folguedo, e o grupo dança ao seu redor com passos da dança do bumba-meu-boi, transformando a cena numa grande festa.

Portanto, três elementos de danças populares são utilizados nessa coreografia. O primeiro, o maracatu, compõe uma cena em que se expõe a distância gritante entre o desejo de ser uma corte de rei negro e a situação de pobreza que envolve os agentes daquela brincadeira. A substituição das roupas com brilho e rendas por farrapos e a rica umbrela por um guarda-chuva furado ratificam essa sugestão. Em seguida, o caboclinhos, uma dança que remete a uma herança indígena e retrata um auto de guerra. A dinâmica agressiva própria dessa dança é usada como componente dramático que aponta um conflito do grupo com relação ao mendigo que está em destaque. No terceiro momento, o mendigo caído no chão é motivo de apreensão e curiosidade; os demais se aproximam e, nos seus gestos, relatam o ato de comer da carne do homem no chão. Quem conhece o bumba-meu-boi já entende que se remete à cena em que se reparte o boi para saciar a fome dos demais - o boi que é, ao mesmo tempo, elemento espiritual, poético e o animal, cuja carne é tão almejada por quem não pode comprá-la. No contexto do espetáculo essa compreensão é reforçada. Ali, tal qual a sereia cantada por Gilberto Gil, na música “A novidade”: “alguns a desejar seus beijos de princesa, outros a desejar seu rabo pra ceia”, poderia ser retomada a exclamação “oh mundo tão desigual, tudo é tão desigual! Ah! De um lado esse carnaval, do outro a fome total!”. O mendigo-boi se move e a dança é retomada com alegria própria da festa-teatro-vivência que é o bumba-meu-boi.

A segunda seqüência da coreografia inspirada nas danças populares aparece ligada a situações do cotidiano. Assim, vendedores-ambulantes se tornam lutadores de maculelê e capoeira. Em seguida, as mulheres dançam samba e alguns movimentos da dança dos orixás, a música é um toque de pomba-gira e podemos ver trejeitos de prostitutas. Essa idéia é reforçada pelo jogo de disputa entre elas, pela forma como tocam o próprio corpo e pela repetição da seqüência de movimentos por homens com saias, remetendo a travestis. Ainda como elemento cotidiano, é encenada a sedução de um personagem criança por um personagem mendigo. Em sua sedução, o mendigo faz ela cheirar cola e a cena indica que a menina está sendo abusada sexualmente. No entanto, a plasticidade dada à cena não deixa clara uma repulsa por parte da menina. O grupo de mendigos, no fundo do palco, percebe a situação e se coloca em posição de ataque. É quando se desenvolve a coreografia do frevo descrita acima.

A finalização do espetáculo acontece com a retomada de elementos do início, transformados:

Retorna a mesma música que inicia o espetáculo. Agora, o palco não está vazio. Os mendigos se levantam virando de costas e, aos poucos, vão encarando a platéia. O mendigo ⎯ personagem principal ⎯ aparece puxando a carroça junto com a mulher com a criança de colo. Em seguida o grupo executa uma seqüência de movimentos, que pode ser apontada como produzida por uma forma de coreografar criada pela dança moderna que se desdobra em uma corrida ao redor da carroça, sua maneira de correr, às vezes de frente, às vezes de lado ou de costas para a platéia, sugere estarem sendo levados por uma força maior, como se estivessem no meio de um furacão. Em seguida, movimentos das danças apresentadas são executados em câmera lenta; depois, o grupo anda em direção ao centro do palco e repete o gesto de pedir esmola e em seguida girar sobre o círculo formado pelos bailarinos com as mãos estendidas. Esse gesto repetido, após a exibição de tantas danças e da situação de miséria, gera novas conexões. Agora, ligado ao uso das danças populares, o pedido pode ser visto também como denúncia, ou pedido de reflexão sobre o tratamento dado à cultura popular, que muitas vezes é usada de forma “folclorizada” e em detrimento de uma mudança social dos seus criadores e executores. O grupo se dissolve novamente, espalhando-se pelo palco até formar um desenho coreográfico semelhante ao do fim da primeira cena, que congela, anunciando o fim da apresentação.

Portanto, o espetáculo rearticula o vocabulário conhecido pelo público e, ao subverter o figurino e criar um contexto único para todas as danças apresentadas, o Balé Brincantes se inscreve na História da dança da cidade do Recife, problematizando um dos seus elementos mais marcantes. Ele interrompe o imaginário onírico e idealizado do povo e, assim, interrompe a narrativa linear da nação homogênea em que o Povo, como representante da nação, pode ser tratado como elemento indivisível. As disparidades de acesso aos meios de consumo e produção assumem destaque, assim como as diferenças de classe não são apagadas.