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Em meados da década de 1940, novamente a questão da cultura popular volta a tomar o centro das discussões sobre a arte convencional no Recife. O contrário do que acontece, na mesma época, no eixo Rio-São Paulo, onde as marcas da política nacionalista do presidente Getúlio Vargas criaram forte repulsa ao tema nacional, na arte brasileira pós- segunda-guerra e pós Era Vargas, principalmente no âmbito das artes plásticas. O movimento modernista brasileiro, da década de 1940, recusa qualquer relação com a Semana de Arte Moderna de 22 e investe no abstracionismo e no conceitualismo.

Em Pernambuco, ao contrário, tanto nas discussões da arte convencional quanto na incipiente indústria cultural, a cultura popular centraliza atenções. Nesse período, o frevo encontra o seu ápice, ganhando destaque nacional com canções do compositor Nelson Ferreira. O principal meio de legitimação da dança do frevo, fora do carnaval, eram os concursos de passistas realizados nos auditórios das rádios locais. No entanto, para Flávio

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Teixeira (2007), essa nova fase de ebulição artística do Recife tem no teatro um ponto de convergência, através da figura do teatrólogo Hermilo Borba Filho. Segundo ele:

Entre os anos 40/50, a produção teatral foi, seguramente, a que aglutinou em torno de si uma maior variedade de outros artistas que não apenas dramaturgos e atores, como muitos dos artistas plásticos que estavam à procura de um espaço para realizar experimentos e divulgar seus trabalhos, mas também várias outras modalidades de escritores, literatos de um modo em geral, artistas gráficos, futuros escultores, etc., que na falta de opção, encontraram na movimentação teatral uma oportunidade de compartilhar preocupações, debater propostas e paradigmas de criação estética, fortalecer convicções, exercitarem-se enfim, junto a um coletivo de aspirantes a artistas de um novo tipo. (2007:98)

É no Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP), que a discussão sobre o popular retorna ao centro dos debates artísticos, através da figura de Hermilo Borba Filho, líder do grupo. As ações e reflexões do TEP são singulares no debate nacional, tanto do ponto de vista do seu programa artístico quanto da compreensão sobre a cultura popular, visto que o debate nacional sobre esse tema estava fincado nas perspectivas folcloristas. Portanto, torna-se fundamental mergulhar na especificidade das discussões que são base para futuros desdobramentos.

As reflexões do TEP guardavam proximidade ao modernismo-regionalista, no entanto, nasciam embebidas das reflexões sociais que marcaram os romances sociais da década de 1930, das urgências humanísticas pós-segunda guerra mundial e também da reflexão sobre a arte teatral (Teixeira, 2007). E nesse âmbito, o que se pretendia era criar “uma nova linguagem teatral”, atuar contra o teatro realista que imperava e atualizar as discussões teatrais. No entanto, a relação com as representações populares para isso advinha mais do reconhecimento das qualidades artísticas dessas, do que de um programa nacionalista. É nesse sentido que o TEP se enquadra nas produções que inauguram o teatro moderno no Brasil, como explica Teixeira, em dois momentos:

Cumpre registrar que essa ruptura que fundamenta a proposta de Hermilo para o TEP não está muito distante daquele movimento que, para tantos, define o aparecimento do teatro moderno. De fato, é moeda corrente entre os estudiosos a caracterização do nascimento do teatro moderno a partir da emergência da figura do encenador na qualidade de autor do espetáculo. Seria ele que faria convergir à representação teatral seu caráter de obra autônoma. (2007: 123-124)

Continuando com o pensamento de Teixeira:

Especificamente no que diz respeito ao teatro, a iniciativa do TEP por uma dramaturgia calcada numa expressão cênica popular foi da mesma forma pioneira. E agora, já não apenas no âmbito local, mas nacional(...) o

que o TEP traz como contribuição é sua resoluta opção de encontrar um modelo nacional de expressão cênica. (2007: 146)

Uma das relevantes contribuições do TEP a respeito da concepção da cultura popular está no fato de que sua proposta tendia a rasurar as hierarquias do campo da arte, ao reconhecer o caráter artístico das produções populares. Um exemplo disso foi a promoção de uma apresentação do Boi Misterioso de Afogados, em 1947. Tal apresentação provocou grande entusiasmo e foi considerada pelo jornalista do Diário de Pernambuco “o melhor espetáculo teatral de 1947, aqui no Recife”20. Ao invés de o espetáculo popular ter como função servir de inspiração para os artistas do teatro, o próprio Boi de Afogados era referendado como produção artística. Tomando as palavras de Flávio Teixeira (2007: 138), “não há hierarquização de subgêneros, hierarquicamente subalternos. É teatro e ponto. Do bom, do melhor. Em exata sintonia com as concepções partilhadas pelo TEP.”

Portanto, conclui que no TEP,

tais manifestações são vistas como expressões da criatividade artística popular. São espetáculos dotados de poder encantatório, de comunicação, da beleza que arrebata e enreda os circunstantes da “brincadeira”. Inventividade e criação. Espetáculos, no sentido pleno da palavra, com os quais muito haveria com o que se aprender: em seus artifícios de enredo, em suas soluções “cenográficas”, em sua capacidade de improvisar e interagir com o público, enfim, no seu aproveitamento das circunstâncias e condições de vida dos estratos populares. (2007:136)

Segundo Teixeira, no âmbito de suas criações teatrais, Borba Filho defendia um teatro conectado com a construção da democracia e por isso não podia deixar de estar em contato e refletir sobre seus problemas e aspirações, conforme explica:

O aggiornamento que Hermilo propõe implicava romper com o teatro estabelecido em dois planos — o sócio-político e o estético. No plano sócio-político, significava superar em definitivo o “teatro burguês”. Filho de sua época, há no “manifesto” de criação/lançamento do TEP reiteradas alusões ao momento pós-guerra, visto sob a ótica de quem acabava de presenciar um Estado de exceção. Auspiciando a democracia, Hermilo esperava ver a acompanhá-la uma maior valorização das causas populares. (2007: 117)

Vêem-se quais necessidades fazem a arte popular estar no centro das discussões: o reconhecimento de suas qualidades artísticas e não apenas de resguardo de “pureza”

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perdida; um desejo de reorganização da democracia, que como o próprio nome revela está ligada ao aumento do papel do povo na tomada de decisões. Há ainda mais um elemento que o põe em oposição ao teatro vigente na época: a necessidade de renovação do fazer teatral, defendendo um teatro despojado de suas intenções de mímese da realidade. Buscava-se um outro tipo de relação com o público que o tornasse mais ativo, consciente do caráter de artifício da arte:

O espectador deve assistir a uma representação teatral ciente de que está diante de uma manifestação artística e não como se fosse uma continuação da vida. Aí está outra iniciativa que caberá ao teatro do estudante: quebrar os padrões estabelecidos por uma rotina que mecaniza o espetáculo em vez de torná-lo coisa viva, palpitante. O teatro deve transbordar o sentido vital do conceito popular, o popular deve surgir como conseqüência do meio e converter-se em instrumento poético. (Hermilo Borba filho. Teatro: arte do povo: 62-63 apud Teixeira, 2007: 122)

E, o seu instrumento para isso era aprender com o teatro popular, que já possuía várias dessas características, ou seja,

(dar) ênfase ao despojamento, à máscara, à quebra da ilusão, à improvisação, à roupa”, fazendo com isso, sobressair suas “marcas de distanciamento, anti-ilusionismo, crítica, didática. (Hermilo: Vida e Obra de Hermilo Borba Filho. Ed Comunicarte 1981 apud Teixeira, 2007: 121)

Vê-se, de outra forma, um caminho já antes desejado: encontrar na arte e nas formas de fazer brasileiros não apenas temas, mas elementos artísticos para criação de uma arte que não parecesse indiferente à realidade local. O TEP manteve suas atividades por seis anos e se dissolveu pela inviabilidade financeira. Mas sua herança se desdobra de diversas formas, em diversas áreas. No teatro, na década de 1960, parte dos seus integrantes, entre eles Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna, retoma alguns dos seus preceitos, criando o Teatro Popular do Nordeste (TPN).