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Descrição das sessões individuais com cada um dos três meninos coloridos

PARTE I – PROJETO EDUCATIVO

5. IMPLEMENTAÇÃO DO PROJETO

5.2.3. Descrição das sessões individuais com cada um dos três meninos coloridos

Depois da realização de três sessões com os três meninos coloridos, percebi que seria importante realizar mais três sessões individuais com cada um deles, a fim de aprofundar a nossa comunicação. Contudo, apesar de ser esta a minha vontade, não foi possível a realização de todas as sessões, por motivos que irei mencionar mais à frente.

Seguidamente, irei descrever os jogos e estratégias que se adequaram melhor a cada um dos meninos, assim como a descrição pessoal de cada um e a relação interpessoal que criei com eles. Esta descrição resulta da minha observação detalhada de cada um deles, ao longo de todo o projeto.

Azul

Ao longo da segunda fase do projeto, consegui perceber quais as estratégias de comunicação que melhor funcionavam com o Azul. Desta forma, nas três sessões individuais seguintes, aprofundei essas mesmas estratégias.

A segunda sessão contou com a participação do professor Paulo Rodrigues e a terceira e última sessão, com a participação da Sara.

➢ Jogos e Estratégias

A estratégia da “estátua” esteve sempre presente em todas as sessões em qualquer situação, fosse enquanto fazíamos brincadeira de imitação ou quando estávamos a tocar. No meu ponto de vista foi a estratégia que ele melhor compreendeu e que serviu muitas vezes para o acalmar ou manter a sua concentração nas atividades que estávamos a fazer. Por vezes era ele quem tinha a iniciativa de liderar o jogo da “estátua”.

“Sempre que o Azul fazia de “estátua”, ficava na mesma posição: levantava os braços a 90 graus. Assim, nós percebíamos que ele estava em “estátua” sempre que se punha nessa posição e dizia “tato” (…). Era ele que liderava o jogo.” (DB, 29 de abril).

“(…) paramos de tocar nesse momento, até que ele disse uma palavra: “cata”, como se desse ordem para continuarmos a tocar. (…) Era ele que mandava neste jogo.” (DB, 29 de abril).

Outra das estratégias muito presentes foi a imitação. Interagia com ele através da imitação das suas brincadeiras, ritmos, sons vocais e da sua linguagem tão própria.

“(…) começamos a imitar elefantes, pondo os tubos nas mãos e andando pela sala como se tivéssemos quatro patas, aqui fizemos o jogo da “estátua” que ele tanto adora e faz tão bem. (…) começou a mandar com os tubos nos balões, e sempre que o fazia dizia “aya” como um guerreiro. Eu imitei-o e comunicamos assim durante algum tempo. (…) começou a cantar e a pular, e eu imitei o que ele cantava com o saxofone.” (DB, 03 de abril).

Muitas vezes o Azul tentava comunicar verbalmente, porém ninguém percebia o que ele dizia, por isso tentávamos entrar no seu mundo e usar a sua “linguagem”.

“(…) começou a falar na “sua língua”, não se entendia nada do que ele queria dizer, porém o professor começou a imitar as suas palavras pondo ritmos e melodias às mesmas, e assim estiveram a comunicar durante algum tempo.” (DB, 29 de abril). “Depois começou a fingir que os copinhos de plástico eram bonecos e brincamos os dois assim, a “falar” um com o outro.” (DB, 06 de maio).

Tentávamos que o Azul me imitasse a mim ou ao professor, a fim de realizar as atividades que propúnhamos, porém ele tinha vontades muito próprias que por vezes impossibilitavam essa comunicação. Normalmente ele imitava-nos quando estava distraído e sentia a falta de som na sala:

“O professor começou a cantar algumas melodias com as interjeições que o Azul usava, e passado algum tempo, ele imitou-o, cantando na mesma tonalidade. Por vezes o professor parava de cantar e dizia “ai” e/ou “ui”, e o Azul, que continuava a escrever distraído, imitava-o.” (DB, 29 de abril).

Partindo de estratégias como estas, foram muitos os jogos que criámos, dando origem a novas estratégias. O Azul ia brincando e interagindo comigo de várias formas: punha um balão na campânula para ouvir o que eu tocava

através dele, fingíamos que os tubos de plástico eram espadas, cantavamos ao ouvido um do outro através de um balão, ele cantava para dentro do “saxofone mágico”, e por vezes, dançava enquanto eu tocava. Estas brincadeiras duravam sempre muito pouco tempo e nunca chegavam a ser mais desenvolvidas. Em contrapartida, houve momentos em que consegui ter a sua atenção e interagir um pouco mais com ele.

Por um lado, era muito difícil que ele percebesse os jogos sem ser através da imitação, por outro, muitas vezes era ele que tinha a iniciativa de começar um jogo. Numa dessas vezes, pôs dois balões (de cores diferentes) por cima da campânula do saxofone enquanto eu tocava, e foi alternando entre um e outro:

“(…) quando ele encostava o balão azul eu tocava um ré, e quando punha o verde tocava um sol.” (DB, 03 de abril).

Foi a primeira vez que senti que ele percebeu uma brincadeira, para além do jogo da “estátua”.

Outro momento em que consegui entrar no mundo do Azul e comunicar com ele através da música foi quando ele:

“(…) pegou no bloco de notas e na caneta, que o professor tinha levado, e começou a fazer rabiscos enquanto dizia coisas como “u a i a, tê tê”, de cada vez que desenhava um rabisco, como se estivesse a ler o que escrevia, nós começavamos a imitá-lo.” (DB, 29 de abril).

Ficava, durante imenso tempo, completamente absorvido e concentrado em escrever e ler o que escrevia, para conseguir participar um pouco mais na sua brincadeira, pedi-lhe que lesse para mim (na “sua” linguagem) o que tinha escrito. Assim sendo, toquei saxofone de acordo com o que ele me ia lendo:

“(…) se dissesse palavras curta eu tocava notas curtas, se as prolongasse eu tocava notas longas. Estivemos a comunicar assim durante algum tempo.” (DB, 29 de abril).

Para além de conseguirmos comunicar com ele desta forma, criamos música juntos.

“A Sara começou a imitar o que ele dizia (…). Entretanto, ela inventou uma melodia com as notas e palavras que ele mais utilizava e estiveram assim os dois a cantar. Eu fui buscar os copinhos de plástico, juntando ritmo, e fui imitando algumas interjeições que ele dizia, enquanto escrevia.” (DB, 06 de maio).

Sinto que mesmo quando ele está distraído e absorvido com as suas brincadeiras interage muito mais, pois está sob uma escuta ativa.

O jogo das bolinhas de papel foi um jogo que resultou bastante bem para cativar a sua atenção, mas não tanto a nível musical. O objetivo era que ele atirasse as bolinhas para dentro do saxofone:

“Quando ele acertava dentro da campânula eu tocava um slap, quando não acertava e caiam ao chão, eu fazia um multifónico.” (DB, 29 de abril).

Não consegui perceber se ele entendeu esta comunicação musical, pois estava muito concentrado e entusiasmado em acertar com as bolinhas na campânula.

No fim de as colocar todas dentro do saxofone ele:

“(…) agarrava na campânula do saxofone e começava a gritar muito forte lá para dentro (…)” (DB, 29 de abril).

Depois disso, eu virava o saxofone por cima dele e as bolinhas caíam. “Ele adorava esta parte, por isso continuou com este jogo durante mais tempo do que o costume.” (DB, 29 de abril).

Numa segunda fase, toquei diferentes notas e sons para cada cor das bolinhas, porém, ao contrário dos balões, ele não compreendeu essa diferença.

Como já referi, o Azul é uma criança com muita energia, percebemos isso na forma como ele ouve e sente a música, pois canta e dança muito. Considero que tem muito ritmo dentro dele e consegue sentir a pulsação de tudo o que tocamos.

“Começou a dançar e a associar os movimentos a um tempo fixo, pois trocava de posição sempre ao mesmo tempo, dizendo interjeições de forma cantada como: “atata”, “aiô-ô”, “ya”. (…) Pôs-se em cima dos caixotes e começou a dançar no ritmo que estávamos a tocar (…)” (DB, 29 de abril).

Sendo uma criança muito ativa, acabava por ser também muito distraída. Em alguns momentos tive de arranjar estratégias para desenvolver a sua concentração na realização de determinado jogo, noutros momentos tentei que parasse um pouco e se acalmasse.

“E, de forma a acalmá-lo, toquei uma música muito melodiosa e calma. Ele continuou a berrar para dentro do saxofone, mas eu não respondia e continuava a tocar (…) o professor dançava com ele ao colo e cantavam muito delicadamente algumas melodias na mesma tonalidade. Criaram uma melodia inventada pelos dois de pergunta-resposta (…)” (DB, 29 de abril).

➢ Descrição Pessoal e Relação Interpessoal

Com base nos dados recolhidos da entrevista com a terapeuta da fala, o Azul tem um atraso na fala que pode estar relacionado com o facto de pertencer à etnia cigana e misturar palavras em caló.

Apesar das suas dificuldades em comunicar verbalmente em português, é uma criança muito faladora, ainda que não consigamos perceber quase nada do que diz, comunica muito facilmente através de gestos e expressões corporais.

A nível de compreensão como não sabemos se ele percebe o que lhe dizemos, a comunicação verbal não é o meio mais eficaz, pois ele acaba por realizar as tarefas por associação e imitação.

“É muito engraçado que sempre que digo “estátua” ele para na mesma posição todas as vezes.” (DB, 03 de abril).

“(…) professor disse “stop”, para fazermos estátua, porém o Azul não percebeu que era para parar, pois só associava essa ação à palavra “estátua”.” (DB, 29 de abril).

Posso descrevê-lo como um artista em ponto pequeno com muita imaginação:

“(…) pois consegue arranjar sempre forma de brincar sozinho com coisas diferentes.” (DB, 03 de abril).

Tem muita energia e ritmo no corpo, adora estar sempre a cantar e dançar, o que acaba por ser uma forte característica da etnia cigana. Segundo a terapeuta da fala ele tem um comportamento um pouco complicado, pois quer que seja sempre tudo à sua maneira, daí gostar de ser o líder do grupo e comandar as atividades. Para além disso, quer ser sempre o protagonista e exibe-se muito, acabando por se tornar ciumento quando a atenção é dada a outra pessoa.

Quando está concentrado é fácil criar interação com ele, porém o seu tempo de concentração é muito curto, o que faz com que esteja sempre a mudar de tarefa, e por vezes torna-se difícil de o acompanhar. Em algumas sessões tive de retirar objetos da sala, para que ele não se distraísse, pois muitas das vezes, ficava fechado no seu mundo a brincar com o máximo de objetos diferentes que conseguisse.

“(…) é muito difícil de o manter concentrado numa só atividade durante muito tempo, está sempre à procura de coisas novas para fazer e acaba por perder o interesse com facilidade. Muitas das vezes noto que faz o que lhe peço para me fazer o favor, e depois volta a entrar no seu mundo.” (DB, 03 de abril).

A nossa relação foi muito boa, ele é uma criança muito carinhosa e amorosa e vive muito de afetos. É sempre o primeiro a ir ter comigo e a abraçar-me. Nota-se que é uma criança muito feliz.

“Numa das vezes que fizemos estátua ele deu-me um abracinho e a partir daí fizemos sempre estátuas em conjunto.” (DB, 03 de abril).

“(…) é o menino que se calhar eu tenho que tem mais dificuldades, mas se calhar é o menino mais feliz, porque ele não tem a noção das dificuldades que tem, então é um menino feliz (…) ele fala fala fala, não se percebe nada, mas é um menino feliz”. (Entrevista - Terapeuta da Fala)

Dourado

Nas três sessões com os três meninos coloridos consegui conhecer melhor o Dourado e perceber quais as estratégias de comunicação que melhor funcionavam com ele. Assim sendo, foram delineadas três sessões individuais, porém acabamos por ter uma sessão individual e outra com a participação do Azul, pois o Dourado não queria ir sozinho. A terceira sessão não se realizou porque ele saiu do CPSSMA para ir para uma escola com necessidades educativas especiais para crianças com problemas auditivos.

➢ Jogos e Estratégias

A estratégia que melhor funcionou com o Dourado foi a imitação. Atividades como a criação de ritmos através da percussão dos tubos de plástico no chão, corpo e caixotes, a imitação de momentos de silêncio, e a imitação de notas ou motivos melódicos cantados através dos tubos de cartão, foram recorrentes ao longo das sessões individuais. No meio destas atividades inventadas por mim, eu acabava por o imitar nos ritmos e melodias que ele reproduzia.

“O Dourado é um menino que tem várias dificuldades de compreensão, muito devido ao seu problema de surdez, porém

tem a capacidade de realizar as tarefas por imitação. Capacidade esta que foi melhorando ao longo das sessões.” (DB, 01 de abril).

A comunicação musical com o Dourado foi sempre muito sensorial, desde a colocação da sua mão na campânula para sentir as vibrações do som, ou a descoberta de novos sons vindos do saxofone, ao tapar e destapar a campânula com a mão, por exemplo. Apesar de não ouvir a 100%, o Dourado tem muita sensibilidade auditiva e entoa as notas que ouve na perfeição.

Na segunda sessão o aparelho do Dourado estava avariado, e assim, a sua comunicação através de sons vocais foi muito reduzida, porém tive a certeza de que ele sentia o ritmo que eu percutia no seu corpo.

Na primeira sessão conseguimos comunicar de forma a que ele compreendesse a minha interação com ele, da seguinte forma:

“(…) começou a colocar os tubos dentro da campânula. Sempre que ele retirava um tubo da campânula, eu fazia uma nota em sforzando, e quando colocava e retirava o tubo muitas vezes seguidas eu fazia notas em staccato, de acordo com a velocidade dos movimentos que ele fazia. Adorou esta brincadeira e riu-se muito. Sei que com esta brincadeira consegui interagir com ele de forma a que ele compreendesse essa interação.” (DB, 01 de abril).

➢ Descrição Pessoal e Relação Interpessoal

O Dourado é uma criança muito bem-disposta e meiga, que dá muitos abraços. Criamos uma ligação muito forte e afetiva logo desde o início.

A nossa comunicação foi sempre muito sensorial, ou seja, através do toque. Tentei que a sua ligação com a música fosse muito mais corporal, sentido as vibrações dos sons e os ritmos no corpo. Desta forma, não o queria assustar com os sons (pois não estava habituado a ouvir tantos sons diferentes), mas queria sim ter a certeza de que ele estava a experienciar algo que o deixava tranquilo e feliz.

Em conversa com a terapeuta da fala percebi que havia a suspeita de existir uma patologia cognitiva, no foro da compreensão e aprendizagem, associada à surdez. Ainda assim, informou-me que ele conseguiu evoluir a nível da compreensão.

“(…) penso que ele naquela vossa sessão, que eu acabei por ver, ele ia fazendo muita coisa até por imitação (…) mas ia-se exprimindo através de gestos e assim, mas lá está, penso que ali às vezes as dificuldades de compreensão que ele tem, se calhar, possam ter feito com que ele não percebesse o objetivo das coisas (…) Quando acabava por perceber, então lá fazia o que era pretendido (…)” (Entrevista – Terapeuta da Fala).

Laranja

No final da terceira e última sessão dos três meninos coloridos, ficamos sozinhos com o Laranja e conseguimos comunicar musicalmente, por meio de jogos e atividades musicais. Desde então, não o voltei a ver, sempre que ia à Sala Verde perguntava por ele, pois ambicionava poder aprofundar todas as estratégias que tínhamos desenvolvido. Posto isto, passado umas semanas, em conversa com a educadora, percebi que ele não ia ao CPSSMA por falta de pagamento da propina mensal. Desta forma, não consegui realizar mais nenhuma sessão com o Laranja, o que me deixou realmente triste.

➢ Descrição Pessoal e Relação Interpessoal

O Laranja sempre foi uma criança muito desconfiada, por isso, foi bastante difícil ganhar a sua confiança. Por um lado, senti que a minha ligação com ele se estabeleceu de forma muito mais lenta comparando com os dois outros meninos, por outro lado, essa lentidão fez com que eu desse a máxima importância a cada passo que dava na forma como comunicávamos. Para o fim das sessões, mostrou ser uma criança muito meiga e afetiva.

Foi um menino que me surpreendeu bastante, pois consegui ouvir a sua voz cantada e vivenciar toda a sua imaginação com os jogos que criava. Não

era preciso ele falar para percebermos o que sentia, bastava o olhar misterioso e o sorriso tímido.

Segundo o testemunho da terapeuta da fala, ela desconfia que o Laranja tenha mutismo seletivo, porém não foi realizada uma análise psíquica que o pudesse comprovar (por ter sido interrompida a intervenção terapêutica).

Quanto à sessão que a terapeuta observou, ela percebeu que estas sessões podiam ser uma mais valia para o seu processo de comunicação verbal. Para além disso, pôde ver qual seria a melhor forma para comunicar com ele por meio da música, assim como as suas competências a nível da compreensão.

“(…) é uma criança que eu nunca ouvi a voz dele, daí eu ter dito que se calhar na sessão que estava a ver, estava a aprender muito mais sobre o Laranja, do que propriamente em três/quatro sessões que se calhar tinha dado antes daquele momento (…)” (Entrevista – Terapeuta da Fala).

A nível de compreensão ela não conseguia perceber, nas suas sessões, se ele não respondia porque não sabia ou porque não queria.

“(…) na vossa sessão, consegui realmente perceber que ele compreende, pode não ter ali uma compreensão total, não é? Pode haver ali algumas dificuldades na mesma, dificuldades na aprendizagem e assim, mas consegui perceber que não está assim tão afetado quanto isso.” (Entrevista – Terapeuta da Fala).

A terapeuta acreditava que a música podia ser o meio para que ele começasse a querer falar.

“(…) eu própria cheguei ao gabinete, mesmo naquele dia, e falei com a psicóloga (…) e eu disse: “olha, fiquei maravilhada e acho que com o Laranja o que vai funcionar é a música, vou pegar nos meus instrumentos, vou… não sei” (risos) (…) ia muito entusiasmada com isso, porque acho que realmente

poderia ser uma forma. Eu vi que ele gostou. E ser algo que o desbloqueasse ali, e que começasse a falar.” (Entrevista – Terapeuta da Fala).

Porquê coloridos?

Porque dentro de cada um deles cabem todas as cores do mundo, e para cada cor há um sentimento tão diferente e tão especial, que não consegue ser explicado por palavras. Esse sentimento foi muitas vezes transmitido pela forma como se libertaram e comunicaram através da música. Foi assim que os vi e senti ao longo de todas as sessões, e é assim que os irei recordar para sempre: os “meus” três meninos coloridos.