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PARTE I – PROJETO EDUCATIVO

3. REVISÃO DA LITERATURA

3.3 Importância do Contacto com a Música na Infância

Para além das perspetivas genéricas apresentadas nos pontos anteriores há razões intrinsecamente musicais que justificam que o contacto com a música se faça o mais cedo possível. O desenvolvimento das capacidades de fazer, entender e apreciar música alicerça-se em experiências que devem ser iniciadas nas idades mais precoces. Autores como Gordon, Dalcroze e Orff propuseram ideias que explicam a forma como se vai construindo o pensamento musical, propondo estratégias e atividades pensadas especificamente para esse desenvolvimento. É hoje geralmente aceite que o contacto com a música deve ser uma realidade presente no quotidiano das crianças, desde o seu nascimento, tanto em casa como na escola. Embora as orientações curriculares do ensino pré-escolar e o currículo do primeiro ciclo do ensino básico prevejam a existência de atividades musicais o facto é que, para muitas crianças, a iniciação à música acontece apenas no 2º ciclo (5º e 6º ano).

A articulação de várias ideias e estratégias propostas pelos autores mencionados anteriormente, e outros, pode ser complexa, mas é importante não perder de vista que aspetos como “fazer” música e brincar pretendem, no fundo, colocar as crianças no centro do processo de aprendizagem e permitir o desenvolvimento das capacidades inatas que todas têm. “A playbased, child- centered early childhood music curriculum can nurture the innate musicality of young children so that they become and remain music makers throughout their

lives” (Niland, 2009, p. 20). A perspetiva de centrar na criança o processo de aprendizagem encontra eco nas ideias construtivistas:

“Construtivismo significa isto: a ideia de que nada, a rigor, está pronto, acabado, e de que, especificamente, o conhecimento não é dado, em nenhuma instância, como algo terminado. Ele se constitui pela interação do Indivíduo com o meio físico e social, com o simbolismo humano, com o mundo das relações sociais; e se constitui por força de sua ação e não por qualquer dotação prévia, na bagagem hereditária ou no meio, de tal modo que podemos afirmar que antes da ação não há psiquismo nem consciência e, muito menos, pensamento.”(Becker, 2009, p. 2).

Sendo assim, caso o educador se reveja neste ponto de vista e tenha a teoria construtivista como referência, então deve procurar conhecer o aluno, dar-lhe importância como ser individual e saber como interage com os outros (Becker, 2009).

Na música, as tomadas de decisões como os materiais musicais a usar, a estética da performance, e a escolha de sons e ritmos, podem ser feitas com a ajuda das crianças. Desta forma, é possível permitir que elas demonstrem os seus interesses musicais e sociais no seu meio de aprendizagem. Dar esta possibilidade às crianças é fundamental para o seu desenvolvimento (Niland, 2009).

É importante perceber que o objetivo de tornar a criança o centro da educação musical não deve colidir com a essência da prática musical, que se baseia na partilha de elementos de comunicação sonora entre indivíduos. Ou seja, a criança deve ser encarada enquanto indivíduo que “faz” música em conjunto com outros. Small (1998, p.8), criou o conceito de “musicking”, para dar relevância ao “fazer” música em conjunto. O autor explica que a ideia de “musicking” pretende retirar a carga e importância que, nas sociedades ocidentais, se dá à performance musical finalizada, para poder enfatizar o carácter social e comunitário da prática musical, isto é, dando relevância aos atos de criar, partilhar e expor a música em conjunto.

A ideia de “fazer” música na infância é considerada fundamental por vários autores, tais como Gordon, Dalcroze e Orff. Cada um deles expõe teorias e estratégias de aprendizagem que desenvolvem esta prática de “fazer” música.

Assim que nascemos, antes de começarmos a falar, começamos por ouvir. Segundo a teoria da aprendizagem musical de Gordon (1997) (in Rodrigues, 2000), esse processo também devia acontecer na música: antes de aprendermos a ler e a escrever música, devíamos compreendê-la auditivamente, e a esse processo musical ele apelida de “audiação”. A “audiação” é a capacidade do indivíduo para ouvir e compreender a música sem que o som esteja presente fisicamente. Este processo é a base para que o indivíduo fique apto para pensar musicalmente e formular as suas próprias ideias musicais, como a execução, a audição, a improvisação, a composição, a leitura e a escrita musical.

Desta forma, a “audiação” preparatória (logo após o nascimento) pode ser de três tipos: aculturação, imitação e assimilação1. O educador deve criar

estímulos e interações musicais e este processo deve ser natural, rico, variado e diversificado, para que as crianças adquiram melhor compreensão do pensamento musical (Gordon, 1997 in Rodrigues, 2000). É importante referir que cada criança se desenvolve ao seu tempo.

Na perspetiva de Gordon (1997) (in Rodrigues, 2000, pp. 33-34), a voz é central para todo o processo de desenvolvimento da “audiação”. Desta forma, ele propõe as seguintes orientações musicais:

• Repetição e contraste: uso de diferentes métricas, modos e tonalidades, sendo que o mesmo exemplo deve ser apresentado e repetido sempre com as mesmas características;

1 Segundo Gordon (1991) (in Rodrigues, 2000), a aculturação, imitação e assimilação são os três tipos de “audiação” musical na infância. A aculturação ocorre até aos 2 anos de idade e é a fase em que as crianças reúnem experiências musicais no seu meio envolvente, e começam a responder a estímulos musicais de forma aleatória (sem relação direta entre o estímulo e a resposta) ou intencional (responde consoante o estímulo). A imitação ocorre dos 2 aos 4 anos ou dos 3 aos 5, nesta fase as crianças ganham consciência das suas limitações e conseguem imitar com precisão padrões rítmicos e tonais. A assimilação ocorre dos 3 aos 5 anos ou dos 4 aos 6, nesta fase as crianças são capazes de se ouvir e autocorrigir, para além disso, ganham coordenação em cantar e movimentar o corpo em simultâneo.

• Silêncio: permite que a criança assimile, ouça interiormente e imagine o som;

• Audição do todo e das partes: dar a ouvir uma canção toda e depois só partes, sendo que podemos fazer agrupamentos de sons com diferentes alturas e sem alteração rítmica, e vice-versa; • Movimentação: devem ser movimentos relaxados e fluidos, que

permitem a consciencialização corporal, a exploração do espaço e a noção de tempo;

• Interatividade humana: a relação entre o educador e a criança parte do contacto e da imitação de respostas, uma vez que a música é considerada uma forma de comunicar.

Para além destas linhas orientadoras, Rodrigues (2000) apresenta as atividades musicais sugeridas por Gordon:

• Ouvir música gravada: as músicas devem ser curtas, contrastantes a nível tímbrico e de intensidade, diversificadas no género, estilo, instrumentação, métrica e tonalidade, e devem captar a atenção das crianças;

• Cantar canções sem texto: devem-se cantar canções sem texto com as crianças, pois a letra faz com que o interesse se centre no poder da palavra e não nas características musicais. Assim sendo, Gordon privilegia a voz cantada e sugere o uso de sílabas neutras como “ba”;

• Entoar cantos rítmicos: devem ser lentos ou rápidos e com diferentes métricas, usando sílabas neutras;

• Movimentar e explorar no espaço: executar jogos que permitam ganhar noção de tempo, espaço e sentido rítmico, usando movimentos corporais fluídos;

• Utilizar padrões tonais e rítmicos: criar padrões tonais e rítmicos que possam ser facilmente repetidos pelas crianças.

Tal como Gordon, Dalcroze privilegia a escuta ativa antes da realização de atividades teóricas. Assim sendo, propõe um sistema de educação musical que liga a escuta consciencializada ao movimento corporal (Fonterrada, 2008).

Para Dalcroze, o corpo e a voz são os nossos primeiros instrumentos musicais, daí ser necessário tirar o máximo partido deles, estimulando as crianças a “fazer” música. O autor dá importância às atividades musicais em contexto escolar e à relação entre indivíduos, defendendo que as aulas devem ser feitas em grupo, visto que, através da música é possível expressar sentimentos comuns e interagir com outros indivíduos (Fonterrada, 2008).

Desta forma, o sistema de educação musical de Dalcroze é caracterizado pelo seu conceito de “rythmique”. A “rythmique” desenvolve a escuta ativa, a voz cantada, o movimento corporal e o uso do espaço. O objetivo principal é que todo o corpo “ouça” e se expresse consoante o que ouve, ganhando uma consciencialização natural do ritmo (Del Picchia, Rocha, & Pereira, 2013).

Os exercícios propostos por Dalcroze envolvem liberdade de expressão através do movimento corporal e improvisação: correr, andar, marchar, saltar, arrastar-se, deslocar-se em diferentes direções livremente; ou seguindo uma estrutura rítmica: bater palmas nos tempos fortes, interromper ou recomeçar subitamente um movimento e criar um movimento correspondente para uma frase musical. Assim sendo, o movimento corporal estimula a memória, a concentração, a audição interior, a rápida reação corporal a um som e a exploração do espaço em diferentes direções, trajetórias e planos. Deste modo, o autor defende que conseguimos chegar à compreensão, fruição, precisão e rapidez do movimento, consciencialização e expressão da música (Del Picchia et al., 2013; Fonterrada, 2008).

Assim como Dalcroze, Orff defende que a educação musical deveria basear-se no ritmo, movimento e improvisação. Orff desenvolveu o conceito de “música elementar”, que advém da fala, dança e movimento, e serve como

base para a educação musical infantil. Para Orff o ritmo provém do movimento, e esse ritmo é a base sobre a qual se desenvolve a melodia, tendo em conta que esta nasce da fala. A improvisação tem um papel fundamental no ensino e pode ser realizada através de atividades como o eco (repetir o que se ouve), pergunta-resposta (responder musicalmente a um estímulo) ou “ostinatti” (improvisar sobre frases rítmicas ou melódicas repetidas) (Fonterrada, 2008).

Para além disso, o autor adaptou um conjunto de instrumentos de percussão, cordas e flautas de bisel, ao qual chama: “Instrumental Orff”2, para

que as crianças possam tocar e improvisar em conjunto, sem se preocuparem com as técnicas instrumentais, e permitir a assimilação de diferentes sons através da prática instrumental. As crianças começam por imitar e repetir o que ouvem, depois são incentivadas a responder a estímulos sonoros de forma contrastante ou semelhante, e por fim improvisam livremente. Esta é uma forma fácil e motivadora de tocar em conjunto e desenvolver a improvisação musical (Fonterrada, 2008).

O contacto com instrumentos musicais na infância é algo que vários autores consideram importante. É questionável, contudo, que essas experiências se devam restringir à afinação temperada (escala diatónica) e à altura definida das notas, sobretudo se a questão lúdica, a experimentação e descoberta forem tomadas em consideração. Existem várias alternativas para a criação de recursos sonoros instrumentais de baixo custo e de fácil construção. Além disso, a sua construção pode ser uma atividade interessante para desenvolver com as crianças em sala de aula. Como exemplo, o caso dos instrumentos criados por Bart Hopkin3 e o Super-Sonics4, que pretendem

divulgar instrumentos alternativos e não-convencionais, de fácil construção,

2 Estes instrumentos são ajustados às crianças e reproduzem as notas da escala diatónica. 3 O instrumental encontra-se no sítio da internet oficial: http://barthopkin.com/.

4 O Super-Sonics, é um dos fascículos do Manual Para a Construção de Jardins Interiores criado pela Companhia de Música Teatral e editado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Tem como objetivo divulgar instrumentos de fácil construção, feitos com materiais do quotidiano, criados e testados em projetos como o Opus Tutti. As ideias de Super-Sonics encontram-se também disponíveis em acesso livre no endereço: http://super-sonics.blogspot.com/.

realizados com materiais do quotidiano. Estes instrumentos permitem que as crianças tenham contacto com outras texturas sonoras, brinquem e sejam criativas nas diferentes possibilidades de reprodução de som.

“Young children engage with music in a range of ways. They engage physically as they move, dance, dramatize, or play instruments. They engage vocally as they sing, chant, or make vocal sound effects and socially as they observe, imitate, lead, engage in dialogue, and take turns with others. (…) All these forms of engagement, which are also forms of play, can lead children to developing musical understandings and skills.” (Niland, 2009, p. 19).