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Desejo de aprender

No documento 2017JaneKelly (páginas 68-71)

Charlot (2000, p. 59) afirma que “nascer é ingressar em um mundo no qual estar-se-á submetido à obrigação de aprender” e que ninguém escapa dessa obrigação, pois um sujeito só pode se constituir e tornar-se sujeito apropriando-se do mundo, tecendo relações com ele e com os que estão nele. O autor destaca que são muitas as maneiras de aprender e que existem

muitas coisas a se aprender, de modo que essa questão é muito mais ampla, pois está diretamente ligada às relações com o mundo.

Para Charlot (2000), o conceito de relação com o saber implica o desejo, que surge quando o sujeito vivenciou experiências do prazer de aprender e saber. O desejo de aprender e de, a partir de tais saberes, transformar sua realidade social, suas relações com o mundo, com os outros e consigo, foram evidenciadas nos relatos dos entrevistados, principalmente nos relatos dos alunos bolsistas. O “desejo” de saber não é característica própria e única dos estudantes bolsistas entrevistados; no entanto, seus relatos e o conjunto de associações realizadas a partir das suas configurações familiares demonstram-se em maior intensidade em suas trajetórias do que em relação aos seus pares pagantes.

Esse desejo pode estar relacionado à sua mobilização em mudar de vida, economicamente e profissionalmente, para assim superar as difíceis condições de vida, conforme podemos observar nos trechos a seguir:

[...] eu sempre fui bem no meu ensino fundamental e ensino médio, então sabe eu tenho pavor de reprovar essas coisas, é uma cobrança minha, tipo pessoal minha e não só do ProUni entende, por que o ProUni é o mesmo porcentual que tem o FIES 75% né de aprovação, então essa preocupação meio que todo mundo teria que ter por que a maioria tem FIES ou ProUni então a cobrança de estudar e ir

bem é pessoal minha. (Bolsista do curso de Arquitetura e Urbanismo, grifo da

autora).

É sempre uma coisa nova, então você sempre tem que ta aprendendo tudo e você tem que saber de tudo um pouco porque as crianças vão chegar e vão te pedir coisas nossa que você não faz ideia, mas elas pedem. (Bolsista do curso de Pedagogia, grifo da autora).

Bom, eu desde criança sempre quis ser juiz de direito né, eu achava muito bacana a função do juiz e pra ser juiz eu precisava ter direito né, e além de tudo eu sempre gostei muito de ler sempre fui muito curioso [...] Olha eu acho que é fundamental, né, hoje em dia, não querendo repetir o bordão mas sem estudo a

gente não é nada né. (Bolsista do curso de Direito, grifo da autora).

Eu acho que o ato de aprender a base de tudo né, a gente tem que, hãm, tentar

aprender pra poder né, ter ações melhores né, ter motivações e conseguir né, ir atrás de algo né, aprender acho que é uma função básica que a gente ta aprendendo a todo momento né, acho que é isso. (Bolsista do curso de Administração, grifo da autora).

[...] eu sempre fui muito curiosa e sempre gostei muito de aprender [...] A eu acho que se a gente não aprender a gente não evolui né, no sentido conhecimento no sentido até vida né, porque tipo tem muita coisa que surge que a gente precisa pesquisar conhecer aprender pra conseguir continuar né tudo como

está, e eu gosto de aprender [...]. (Bolsista do curso de Medicina, grifo da autora).

O ato de aprender pra mim é tu ta viva, ta sempre aprendendo então o ato de aprender pra mim é tu viver, ta viva ta aprendendo sempre. (Bolsista do curso de Educação Física).

O ato de aprender, para esses alunos, está diretamente ligado à condição humana, assim como assevera Charlot (2000). Os estudantes entrevistados estabelecem relações concretas com o saber, pois, a partir de seus relatos, podemos evidenciar seus pressupostos acerca da aprendizagem e de sua importância e significação à construção de sua trajetória pessoal e profissional. Para o autor o que impulsiona relações de saber é o desejo; este é “o desejo do outro, desejo do mundo, de si próprio, de saber ou de aprender”, pois ele é “a mola da mobilização e, portanto, da atividade; não o desejo nu, mas, sim, o desejo de um sujeito “engajado” no mundo, em relação com os outros e com ele mesmo.” (CHARLOT, 2000, p. 82).

Os estudantes entrevistados mostram-se “desejantes”; possuem, em seu discurso, um desejo específico: o de superar as difíceis condições de vida que tiveram, de retribuir o esforço e o empenho realizado por seus pais a fim de que eles tivessem “sucesso”, de tornar- se um profissional exemplar – afinal, sem saber, não há prática fundamentada. Esses sujeitos veem, na Educação Superior, uma grande oportunidade:

[...] eu acho que vai ser a financeira, no curso superior eu vou poder ter uma profissão melhor um emprego melhor e automaticamente uma situação

financeira melhor, não só pra mim mas também eu acredito que pros meus pais, que eu quero retribuir isso (Bolsista do curso de Arquitetura e Urbanismo, grifo

da autora).

[...] poder retribuir pros pais tudo que eles fizeram (Bolsista do curso de Pedagogia).

[...] e também tem a questão de que eu quero dar uma vida boa pra eles. [...] se eu não tivesse ingressado no Ensino Superior, possivelmente eu não estaria trabalhando, e se não tivesse o plano de ta no Ensino Superior provavelmente eu

taria com vários colegas até hoje trabalhando como operador de balança num supermercado, né, foi a vontade de sair de lá, de trabalhar com alguma coisa

que eu precisasse ler e estudar que fez eu vir até aqui, né, então foi mais ou menos assim (Bolsista do curso de Direito, grifo da autora).

[...] e eu acho que com certeza eu vou tipo ir dum salário que na minha casa da menos de um salário mínimo e meio que é o que o ProUni exige né, dá bem menos né, por pessoa, e vou ir pra tipo ter uma vida bem estável, então tipo, economicamente com certeza vai me proporcionar coisas bem melhores [...]

mudar minha vida e eu sei que no futuro eu vou poder proporcionar uma

qualidade de vida boa pra minha mãe que tipo é uma coisa que eu quero muito,

pros meu avós até que eles sejam vivos também e vou poder ter uma família, dar uma boa educação pros meus filhos e etc. né (Bolsista do curso de Medicina, grifo da autora).

Quando Charlot (2000) trata das relações que os sujeitos tecem com os outros e com o mundo, pode-se até mesmo arriscar uma associação aos pressupostos de Lahire (1997). É nessas relações que as configurações e intervenções familiares se efetivam e consolidam; os alunos bolsistas do ProUni, sujeitos “desejantes” e mobilizados, podem carregar consigo o desejo maior de superar as condições de vida difíceis que tiveram e, assim, estão vendo a oportunidade de realização de seus desejos e sonhos na Educação Superior, por intermédio do ProUni.

Os pares pagantes, colegas de cursos dos alunos bolsistas, não obstante, também demonstram, em seus relatos, o “desejo de saber”, o qual é, segundo Charlot (2000), uma característica de sujeitos em relação com o mundo. No entanto, os estudos de suas trajetórias podem demonstrar que seus desejos, em muitos casos, estão relacionados a outros anseios não relacionados a superar suas condições difíceis, sendo a mobilização desses alunos distinta daquela presente nos discursos dos estudantes bolsistas.

No documento 2017JaneKelly (páginas 68-71)