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Ordem moral doméstica

No documento 2017JaneKelly (páginas 57-60)

Há casos de famílias cujas intervenções e configurações não se operam no investimento propriamente econômico e pedagógico, mas sim nas condições morais, incluindo as questões religiosas escolhidas pela família, as quais estão diretamente relacionadas à socialização de seus filhos e também aos conceitos de ética e moral.

Lahire (1994) destaca que:

Uma parte das famílias das classes populares pode outorgar uma grande importância ao “bom comportamento” e ao respeito à autoridade do professor. Como não conseguem ajudar os filhos do ponto de vista escolar, tentam inculcar-lhes a capacidade de submeter-se à autoridade escolar, comportando-se corretamente, aceitando fazer o que lhes é pedido, ou seja, serem relativamente dóceis, escutando, prestando atenção, estudando e não brincando. (LAHIRE, 1994, p. 24).

Isso pode ser observado no trecho do relato do bolsista do curso de Arquitetura e Urbanismo, filho de agricultores com baixa escolaridade:

A eles sempre tipo me chamavam atenção pro melhor, sabe tipo tu tem que estudar tu tem né, quando fazia alguma coisa errada eles sempre chamavam atenção, ou se eu ficava vendo TV de mais, a tu tem que estudar, tu tem teu tema pra fazer, nesse ponto eles sempre foram bem.. é eu acho que como eles não tiveram estudo sabe eu acho que eles me puxavam pra que eu pudesse ter o que eles não tiveram né, acesso à educação. (Bolsista do curso de Arquitetura e Urbanismo).

Portes (2000) afirma que o esforço contínuo para inculcação de uma ordem moral doméstica no filho, desde muito cedo, é suficiente para balizar os procedimentos sociais; é uma espécie de esforço contínuo que não tem como alvo especifico o “sucesso” escolar, mas sim uma educação mais abrangente, para a vida.

Lahire (1997) também relata, em seus perfis, a forte presença de conceitos oriundos do contato e da vivência com a religião, em que os traços morais, de honestidade e respeito, fazem-se presentes na formação das crianças. Em suas entrevistas, destaca a moral instituída nas famílias estrangeiras que, mesmo com a dualidade da língua francesa e a sua língua de origem, não deixavam de lado o hábito de ler o Alcorão, devido ao seu engajamento muçulmano.

A esse respeito, os estudantes entrevistados, declararam ser importantes a presença da religião e de seus preceitos em sua trajetória escolar; assim, os alunos dos cursos de Arquitetura, Administração, Educação Física e Medicina testemunham tal fato:

Da personalidade sim, acredito que sim, por que tipo ensinamentos de valores como pessoa essas coisas. (Bolsista do curso de Arquitetura e Urbanismo).

[...] acho que a fé da gente né, motiva muita coisa e quando a gente tem um

objetivo e coloca em prática eu acho que quando a gente tem, segue né, um

caminho isso ajuda muito eu acredito que ajuda muito na realização pessoal, profissional. (Bolsista do curso de Administração, grifo da autora).

Ah de honestidade sim, ética também, eles nunca me cobraram assim ah tu tem que fazer tal coisa porque isso, não eles sempre me disseram tu vai fazer e vai ter

consequências e tu vai arcar com as tuas consequências sempre deixaram bem

claro, minha mãe sempre foi assim. (Bolsista do curso de Ed. Física, grifo da autora).

Eu acho que sim no sentido porque até uma certa idade assim a minha mãe, a gente, um pouco de disciplina porque a gente todo dia rezava ela também tipo falava bastante que a gente tipo a gente tinha muito medo logo assim que o pai faleceu que ela falecesse também e tal e daí isso tipo ajudava um pouco, confortava a gente ela dizia que ele tava lá esperando e bla bla bla, acho que ajudou bastante nesse sentido e também tipo a ter aquela os ensinamentos assim de valores sabe que querendo ou não são baseados na religião então tipo hoje eu vejo que teve bastante assim coisa positiva que talvez não seja assim não seja ai acredita em deus e tudo que aconteceu ta escrito na bíblia não mas tipo é uma

coisa que ajudou criar o caráter assim e os valores. (Bolsista do curso de

Lahire (1997) salienta que o aluno que vive em um universo doméstico material e temporalmente ordenado (não caracterizado apenas pela moral relacionada à religião) adquire, sem perceber, métodos de organização, estruturas cognitivas ordenadas e predispostas a funcionar como ordenação, fator importante ao seu desenvolvimento por um todo, integralmente.

Já em outras trajetórias, a ordem moral doméstica não foi tão marcante, incidindo sobre os bolsistas outras formas de intervenção familiar. Os alunos dos cursos de Direito, bolsista e pagante, e o entrevistado pagante do curso de Educação Física exemplificam tal questão:

[...] nunca foi algo muito presente. Eu acho que na verdade eu cobrei deles, né, teve vários momentos, o meu ele pai passou por bastante aperto inclusive antes de se tornar empresário de quebrar né, e ele acabou desenvolvendo uma via do jeitinho brasileiro muito complicado então era daquele tipo de pessoa que se alguém cerrava o troco ele não devolvia né, minha mãe também eles se apertaram e começaram a exercer esse tipo de conduta e eu vendo isso várias vezes briguei com eles inclusive hoje em dia quando meu pai faz isso pego ele pela mão coloco no carro a gente vai lá e a gente devolve, né, mas acho que foi meio inverso assim, né, meio que a minha ideia de moral se formou com eles em determinado momento só que depois disso eles acabaram desvirtuando e daí meio que a gente se ajudou assim, acho que foi mais ou menos assim que funcionou. (Bolsista do curso de Direito).

Eu não sei... porque os princípios da religião são muito aqueles princípios morais né, que tu sabe que é errado não por causa da religião, então acho que se influenciou foi pouco, porque eu tinha muito a visão do certo e do errado pelo que os meus pais né, ensinavam a religião acho que não afetou muito a minha

visão de mundo assim. [...] ensinavam ‘ó filha isso é errado faz tal maneira né’,

sempre de um jeito bem calmo né, bem, eu cresci sabendo que isso era certo isso é errado, sem ser imposto né. (Pagante do curso de Direito, grifo da autora).

Eu acho que foi bom pra eu entender um pouco o que eles pensavam mas por outro lado hoje eu não consigo mais tomar tipo ver aquele lado bom da igreja católica porque eu vejo mais coisas ruins do que coisas boas então eu tenho um pensamento totalmente diferente que talvez pra eles não seja o mesmo, entendeu?! (Pagante do curso de Pagante Ed. Física).

A ordem moral doméstica é, muitas vezes, marcante na ação socializadora dos meios populares. Lahire (1997) destaca que, se ela pode ter uma importância na escolaridade dos filhos, é porque indissociavelmente apresenta-se uma ordem cognitiva. Está ligada principalmente a bom comportamento, aceitação de regras, moral do esforço e da perseverança, os quais são traços que podem preparar, segundo o autor, uma boa escolaridade,

sem que seja consciente ou intencionalmente visada, no âmbito de um projeto ou de uma mobilização de recursos.

No documento 2017JaneKelly (páginas 57-60)