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Desencontros e encontros: as investidas no campo

No documento marizaconceicaograssanolattari (páginas 43-48)

O encontro com os jovens para a participação na minha proposta não acontecia. Os jovens diziam que iam chamar outros colegas e surgiam cancelamentos, outros agendamentos, encontros, mas nós não avançávamos, além de conversas informais sobre assuntos diversos, como a escola, o trabalho, as amizades, enfim, sobre o dia a dia deles. Conversávamos também sobre o tema da pesquisa, que incluía minhas inúmeras explicações sobre a proposta de conhecê-los melhor e escrever sobre isso. Constatei que, com os jovens em Santa Luzia, eu não conseguiria formar um grupo de rapazes que se interessasse em participar desta investigação. A situação foi de surpresa e frustação, pois dava como quase certa a participação dos rapazes. Acreditava que se envolveriam com um entusiasmo próximo ao meu. Percebi que não seria tão simples, não havia um caminho anterior construído e estabelecido que me garantisse ter e controlar os pesquisados no campo. Tínhamos propostas diferentes, onde eu buscava formas de relacionamento que não os interessava. Eu havia sido a professora deles, isso não me assegurava ser aceita como pesquisadora. Minhas intenções e futuros êxitos precisavam de novas estratégias e de novos relacionamentos.

Em outra tentativa de iniciar a pesquisa de campo, aproximei-me de uma jovem. Ela é minha ex-aluna e, como os rapazes de que me aproximei antes, é moradora de Santa Luzia. Encontrei-a no bairro Alto dos Passos, onde moro, e local em que ela me disse trabalhar em uma papelaria. A jovem se interessou em saber o que eu estava fazendo, já que não dava mais aulas na escola no mesmo bairro em que ela morava. Falei sobre a pesquisa que havia feito no mestrado e, agora, do meu interesse na investigação de doutorado. Expliquei, brevemente e de maneira simples, como a investigação anterior ocorreu e como estava organizando a pesquisa atual. Falei do meu objetivo, sobre a necessidade de me aproximar de um determinado grupo, que especifiquei a ela, como fiz anteriormente, e que esses seriam os sujeitos desta investigação. A jovem se propôs a me ajudar e a me apresentar aos rapazes.

No momento desse encontro, recuperei as esperanças. Vi a jovem como uma possível intermediadora entre mim e os jovens do grupo a ser pesquisado. Sabia que ela conhecia muita gente no bairro, havia sido criada lá. Refleti que por ela ser mulher, talvez, nos aproximaríamos mais e, assim, ela pudesse efetivamente me ajudar. Acreditei que com ela a pesquisa avançaria no campo. Decidi investir na aproximação, indo aos encontros na pracinha do bairro, onde ela marcava para conversarmos, tentando que ela fizesse a mediação para o contato com o grupo que ela dizia conhecer. Tentei controlar minha ansiedade, mas não sei bem se consegui esse feito, não só nesses momentos com a jovem, como em muitos outros em campo e na escrita desta tese. A entrada no campo foi um momento de muitas estratégias, fracassos, decepções e reinícios até conseguir me sentir engajada nele.

Tive vários encontros com a jovem nas ruas de Santa Luzia. O local e a hora de nossos encontros eram marcados por ela. Eu telefonava para confirmar e, geralmente, conversávamos na pracinha do bairro. O bairro não me era completamente indiferente, porém o local da escola fica em uma parte mais alta, bem diferente de onde eu esperava a jovem. A região perto da escola é em aclive acentuado, tem pouca circulação de ônibus e é rodeada, em sua maioria, por casas com terrenos extensos; pelo tipo das construções mostravam serem residências elitizadas. Atualmente, em um terreno grande em frente à escola encontra-se em construção um grande prédio residencial popular, destoando das casas que citei. Essa parte do bairro onde se localiza a escola é afastada da praça, onde há comércio variado e possui pontos de maior circulação entre as pessoas.

Algumas vezes, a ex-aluna parecia esquecer nosso compromisso na praça e se desculpava pelo não comparecimento ou demora. Depois de alguns encontros, desencontros e reencontros, a jovem combinou em fazer a minha aproximação com os rapazes que eram dos grupos que me interessava em pesquisar, e que ela dizia conhecer bem. Inclusive, afirmou ser um dos rapazes seu esposo e pai de seu filho, mas não cheguei a conhecê-los. Enquanto esperava pelas apresentações da jovem aos rapazes, passei a frequentar alguns lugares de maior movimentação do bairro Santa Luzia, com mais regularidade, não somente para encontrar a jovem, mas, em outros momentos para que eu pudesse observar os espaços, as pessoas, os lugares por onde circulavam, o comércio local, enfim, sua dinâmica cotidiana própria. Eu queria ver como acontecia a realidade diária no bairro e os envolvimentos entre os sujeitos e os espaços.

Eu ficava na pracinha esperando e, às vezes, encontrava outros ex-alunos, que também se interessavam em saber o motivo de eu estar ali parada. Nessas ocasiões, contava sobre a pesquisa anterior e sobre a que estava agora fazendo, de maneira breve. Explicava, tentando

não me estender demais ou ser muito teórica ao falar sobre o meu interesse nas questões que envolvem os jovens e como procuro fazer isso. Em minhas conversas com eles procuro manter uma relação de troca e de receptividade, pergunto sobre suas vidas e respondo seus questionamentos sobre a minha. Muitas vezes, perguntam o que é uma pesquisa nos termos que desenvolvo, o que é um mestrado ou doutorado, para quê essas escolhas me serviriam, se eu já era formada. Interessam-se em saber se vou arrumar um emprego melhor do que eu tinha antes. Tento responder de maneira simples, não ser teórica demais, mas respondo. Explico que tenho grande interesse pelas questões que envolvem os jovens desde o período em que dava aulas e que, a partir desse lugar de professora, tive a oportunidade de ter uma convivência próxima a eles, percebendo que realizavam experiências que me interessavam conhecer melhor, podendo ampliar discussões que as envolvem.

Falo das práticas que vi os jovens realizarem na escola, exemplifico as relações que via acontecer entre eles como, por exemplo, com a tecnologia, pelo uso dos celulares, ou com as músicas e danças que eu observava e pude aprofundar o conhecimento desses eventos no mestrado. São realidades conhecidas dos jovens com quem converso, há diálogo nessas explicações fornecidas, senti existir uma troca, não falo sozinha. Conto a eles como fiz isso na pesquisa anterior, realizada por observações, conversas e grupos de discussão, explico que depois que os jovens concordaram em participar, realizei os procedimentos em uma escola que me autorizou a fazê-lo.

Falo do meu interesse, agora, pelas experiências dos rapazes que andam em grupos numerosos pela cidade e que minha intenção é procurar entender como isso acontece. Conhecer melhor como organizam esses movimentos de perto, estando próxima aos pesquisados, através de conversas, observações, entrevistas em grupos e individuais. Para isso, digo que tenho o apoio da universidade, a orientação de uma professora e faço leituras de outros autores que escrevem sobre os jovens. Costumo levar livros que tenham pesquisas próximas ao meu estudo para mostrar. Ofereço, sem forçá-los a leituras; apenas mostro. Alguns dão uma olhada, folheando. Mostro com isso que quero fazer um trabalho organizado sobre o tema e também vou escrever sobre ele. Dialogo com os jovens sobre assuntos diversos, não falo apenas da minha intenção de pesquisa quando estou com eles, mas gosto de apresentá-la e, nos momentos que exponho meu trabalho, tento mobilizar algum jovem para que se torne o informante e me ajude a entrar em campo.

Novamente, percebi que eu não conseguia encontrar os jovens que me interessavam investigar. Estava mais uma vez dispendendo muito tempo em contatos que não avançavam com os informantes iniciais e eu não chegava aos jovens que eles diziam conhecer. Como

disse, anteriormente, os jovens estranhavam o meu tipo de trabalho como investigadora, eu percebia que alguns deles achavam minha decisão meio diferente ou até engraçada. Eu deixava de ser professora, função bem conhecida dos jovens, para pesquisar sobre suas vidas. Como professora eu ouvia suas histórias, contava outras, ria com eles, como pesquisadora eu buscava suas histórias. No entanto, o grupo que me interessava pesquisar costumava se envolver em confrontos com outros grupos que circulavam pela cidade e se consideravam rivais. Eu percebia haver entre eles o uso da força como possibilidade a ser praticada e como um dos aspectos que poderia ser organizador de suas relações. Talvez não quisessem que eu me aproximasse desses dados.

Há outra possibilidade que considero e pode estar ligada à dificuldade em marcar os encontros com o grupo que era do meu interesse de pesquisa. O que pode ter acontecido foi justamente pela permanência dos meus vínculos anteriores como professora, dos quais, como relatei, eu me afastei na pesquisa de mestrado e acreditava que, pelo meu afastamento anos antes da escola e por ser a pesquisa fora do ambiente escolar, eles não permaneceriam. Mas agora, com os ex-alunos nas ruas, não era tão diferente assim, nem para mim, nem para eles. Os vínculos que eu pensava serem elementos facilitadores, não me ajudaram a iniciar a pesquisa, porque, talvez, se mantiveram as relações construídas. Não conseguimos modificá- las e passarmos a relações entre pesquisadora e informantes, essas marcadas por outros objetivos e procedimentos, como os que eu lhes apresentava ao dizer como se desenvolvia uma pesquisa. O meu lugar de professora em nossas relações estava mais demarcado do que eu poderia antecipar; não era só o espaço da escola que o mantinha. E assim, minha posição como pesquisadora em Santa Luzia não se consolidava.

Os jovens gostavam de me reencontrar e conversar comigo, com a ex-professora deles. Eu também gostava de estar com eles. Fora da escola as relações ficavam mais livres. Era diferente. Podíamos conversar sem o tempo e os assuntos que, na maioria das vezes, eram organizados pela instituição. Na rua, os espaços eram menos compromissados. Não quero dizer que não tratávamos na escola de assuntos diversos, não conversávamos somente sobre conteúdos escolares. Nem quero sugerir que as relações são completamente definidas pela instituição. Vejo claramente, na realização da pesquisa, não existir controle de algumas coisas que pensamos dominar e que se revelam nos acontecimentos apresentados e ocorreram no campo. Continuei buscando maneiras de me organizar, não por um controle rígido ou antecipado dos encontros e das conversas, mas por possibilidades de construir relações de interesses mútuos em nossas posições de pesquisadora e pesquisados.

Percebia que eu demorava em seguir com a pesquisa, reconheci que eu tinha cuidados demais ao abordá-los. Muitas vezes me sentia invadindo suas vidas e explicava demais meus propósitos na pesquisa. Talvez eu pudesse ter sido mais direta, esperar menos, mas eu tinha receio de ser muito incisiva e com isso afastá-los. “Logo foi possível perceber que o diálogo não seria apenas com os dados da pesquisa. Para todo estrangeiro, o primeiro passo é a conquista da confiança, através do reconhecimento” (SCHWADE, 1992, p. 45). Eu notava, no campo com os jovens, não haver garantias ou compromissos antecipados em nossas relações. A conquista para a participação tenderia a ocorrer pelo interesse dos jovens em colaborar com este estudo. Interesse que eu queria conquistar e temia perder ou nem construir.

Os rapazes sabiam do grupo que me interessava pesquisar. Sei que muitos jovens convidados para a pesquisa faziam parte desses grupos. Eu não precisava falar demais, alguns rapazes não se dispuseram por escolhas próprias, que eu tinha que respeitar, sem insistir. Eu não era alguém de “fora”, estive e estava próxima a eles desde 2005, não perdemos o contato.

Minhas falas dependiam da situação e do interesse que eu percebia neles em me ouvir. Tentava mostrar que não tinha julgamentos morais sobre eles, que queria conhecê-los melhor para escrever um trabalho a que me propunha realizar e já havia feito outro nesses termos. Algumas vezes, eu levava a pesquisa de mestrado para mostrar-lhes, dizia que eu manteria sigilo sobre suas identidades, evitando reconhecimentos futuros, caso preferissem assim. E os dados que me fornecessem também poderiam ser revistos.

Como o grupo que tenho interesse em pesquisar é formado por jovens que se envolvem ou se envolveram em questões de violência, as circunstâncias morais dos rapazes poderiam estar implícitas em nossas relações. Com os jovens em Santa Luzia comecei a pensar: teriam confiança de conversar sobre suas vidas com esses envolvimentos? Queriam fazê-lo e, talvez, modificar as visões que eu tinha deles? Eu os abordava falando com sinceridade sobre o grupo que me interessava conhecer: jovens que andavam em grupos numerosos pela cidade, revelando um estilo próprio, com marcas de grifes (nas roupas, bonés e calçados), que gostavam de funks, que podiam ou gostavam de se envolver em brigas com outros grupos.

Por esses dados e interpretações que apresentei e por outras situações que posso não ter percebido, o início em campo não foi simples. As relações com os sujeitos, e, neste caso, com os jovens, não acontecem naturalmente. São negociações constantes e essas acompanharam todo o percurso desta investigação. Decidi me afastar do bairro Santa Luzia.

Era difícil lidar com o fato de não ter a parceria dos jovens lidando e dialogando comigo nas questões que eu pretendia desenvolver. Havia cordialidade, empatia e mesmo

carinho entre mim e a jovem, como também ocorreu anteriormente com os rapazes. Sempre fui bem acolhida por eles. Mas há escolhas próprias. E a pesquisa não se realizou no bairro onde eu fui professora, Santa Luzia. Tempos mais tarde, quase dois anos após minha entrada em outro campo, que foi o local em que se deu a pesquisa, encontrei uma amiga dessa jovem que me disse que eles não quiseram se envolver com o meu trabalho por medo de que algo ruim pudesse me acontecer; o que eu queria era perigoso.

No documento marizaconceicaograssanolattari (páginas 43-48)