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Mundos diferentes no mundo da comunidade

No documento marizaconceicaograssanolattari (páginas 125-131)

Outros reconhecimentos, não diretamente vividos dentro do grupo de rapazes pesquisado, mas que fazem parte de suas relações cotidianas e são vistos quando falam, por exemplo, de suas relações com os jovens que frequentam o morro e que eles reconhecem como os “de fora” e são chamados por eles de “mauricinhos” ou de “playboys”. De forma simplificada, digo que são os jovens de classes mais privilegiadas. Os “mauricinhos” não frequentam o morro, têm relações mais distantes que os “playboys”. Estes convivem e mobilizam reflexões do grupo pesquisado, variando de acordo com a “atitude” que o “playboy” pode ter em suas relações com eles. Mais à frente, voltarei a essas importantes categorias surgidas em campo e às reflexões que surgem por suas proximidades com o grupo

pesquisado. Reflexões que tratarão de questões de preconceito, de estilos de vida, de roupas preferidas, de desigualdades econômicas e sociais, e de violências.

Em uma entrevista, pergunto sobre a categoria dos “playboys” a um dos jovens (digo que tenho percebido o termo ser discutido entre eles de maneira diversa), mostrando que não tem uma única definição, diferente do que acontece com o “mauricinho”. Esse, segundo eles, é o jovem que tem dinheiro e fica mais afastado, não costuma subir o morro em busca de amizades ou drogas, fica no próprio bairro elitizado, entre os seus. A similaridade entre “playboys” e “mauricinhos” é pelo fato de ambos serem jovens bem nascidos, terem cabelo liso, comprarem o que querem e terem carrão, como dizem. Assim, tento conhecer melhor o “playboy” e suas nuances definidoras, por ouvir falas sobre eles, por ele ser alguém que interage mais cotidianamente com os jovens pesquisados, para além das representações construídas, participando de suas vidas.

Eu: O que seria então o “playboy”... Existe uma diferença entre o “playboy”, aquele “playboy” que é de dentro e aquele “playboy” que é de fora?

R: O “playboy” de dentro é aquele “playboy” que mora aqui ou o “playboy” que conhece a gente desde pequeno e anda com a gente. É o que tem muito aqui, entendeu?

Eu: Como é o “playboy” de dentro? Eu vejo questões de estilo do “playboy”. Ele tem uma roupa específica ou um jeito específico?

R: Não. É a questão financeira. Tipo assim, tem mais condições que a gente, entendeu? É igual a gente, é “playboy” só pela condição financeira. É amigo da gente, coisa e tal... É o “playboy” de dentro. Entendeu?

Eu: Ah, entendi. E o que é o “playboy” de fora?

R: O “playboy” de fora é o que normalmente vem para usar droga ou vê o nosso estilo de vida, acha que é maneiro para caramba, gosta e quer entrar nesse meio, entendeu? Força a barra... Às vezes começa a trocar ideia com a gente, entendeu? E tem os que não gostam.

Eu: Esse que quer se identificar, como é que você acha que ele procura se identificar? Como você observa? Ele tenta colocar uma roupa parecida ou ele quer o jeito de falar?

R: De começo ele quer andar igual a gente. Quer andar com a gente, entendeu? Quer andar com a gente de cima para baixo, entendeu? Fazer as coisas que a gente faz, porque acha maneiro... Depois vai se adaptando. Tipo assim, a roupa que a gente compra, vai querer comprar roupa igual a gente, o corte de cabelo também, entendeu? Quer mudar o corte igual a gente. Você lembra do cara (não diz o nome)? Ele era “playboyzão”, de repente ficou “funkeirão”. É, ficou “funkeirão”.

Eu: Como assim? Como é essa mudança? R: Ficou doidão.

(risos)

Eu: Mas o jeito é diferente? Por exemplo, porque ele, o de fora, não é nascido aqui. Mesmo que ele tenha querido ser... (sou interrompida)

R: É diferente. É diferente. Até em coisa de atitude, também é diferente. Até o jeito de falar é diferente. Tudo é diferente. E em relação também, sabe? Das coisas. Saber lidar com a situação, saber lidar com certas coisas... Eu: Porque não viveu as coisas, né?

R: É. Ele não viveu. E não tem como, ele não tem culpa de nada. Ele não entende às vezes, entendeu?

Eu: Tinha o “playboy” de dentro, tinha o “playboy” de fora e tinha um outro “playboy” que vocês tinham falado.

R: É o “playboy” que não gosta de ser igual a gente, é. É... Eu: Ah...

R: Só quer a droga. Tipo assim, ele é “playboy”... Não quer ser igual. É. Ele gosta do estilo dele de vida, entendeu? Se sente por cima da gente, mas ele gosta de droga para caramba.

Eu: Se sente por cima? R: É.

Eu: É o cara que quer ser “playboy”.

R: Gosta de ser “playboy”, entendeu? É o “playboy” assumido. É, assumido. Eu: E dá para ter um relacionamento com esse cara ou não?

R: Não.

Eu: Ele fica fora, né?

R: O ZO é um de dentro. Ah, mas o ZO foi... É o “playboy” que convive no meio da gente. É isso.

Eu: É o que convive no meio?

R: Ele só é “playboy” porque tem que ser mesmo. Porque a família tem dinheiro. É, porque a família tem dinheiro. Mas de resto ele é igual a gente. Eu: “Playboy” pode ou não estar envolvido com drogas?

R: Pode. Pode ou não. Não tem muita diferença assim, de lidar, de falar, é pouquinha diferença.

Eu: Mas agora, o cara que vem, querendo se identificar, que ele anda no morro, que ele é “playboy”, ele vem para querer participar do grupo? Ele vem por causa da droga? Ou ele vem para estar com o grupo?

R: Pode ser os dois. Ah, pode ser os dois. Às vezes a pessoa quer droga ou às vezes é um “playboy” que quer ficar junto com a gente só. É. Às vezes pode ser os dois. Às vezes a pessoa vem porque se identifica com a gente... Eu: A música teria alguma relação com essa identificação?

R: É. Às vezes gosta da gente, às vezes vira amigo de uma pessoa e acaba entrando no nosso mundo e tal. Às vezes a pessoa só se identifica com a gente e não usa droga, às vezes a pessoa só usa droga, entendeu? Ou às vezes a pessoa usa droga e se identifica com a gente.

Eu: Você disse: “Entrando no nosso mundo.” Por quê? Tem mundos diferentes?

R: O nosso mundo é esse. É diferente. É. É diferente. Compara uma festa daqui com uma festa de lá... É. É diferente. É diferente. Igual assim, a gente tem muito amigo “playboy”, “playboy” mesmo, entendeu? É gente boa e tudo, mas é “playboy”, entendeu? É outro mundo, é outra coisa.

Eu: Como é que é? Porque você acha que é outro mundo? Como é que é? É um mundo de grana? É isso que você está falando?

R: É.

Eu: Diferença social, de dinheiro?

R: É. Exatamente, diferença de dinheiro. É muito diferente. A gente vai dar uma festa, fazer uma festa pequena, bem menor que a deles lá, mas aqui a curtição é maior. É, bem maior. É, aqui a curtição é mais pesada. É exatamente isso, “véio”, a gente às vezes, com menos coisas, se diverte muito mais do que eles. Entendeu?

Eu: O que é uma festa mais pesada? É mais legal, é isso? A deles seria diferente?

R: É. É mais maneira. Mais pesada para mim é mais maneira. Eu: A festa de lá não é legal?

R: É legal. Mas não é como as nossas festas. É mais liberal aqui, né? É. Mais liberal. Pode fazer o que quiser. É. Rola de tudo rola de tudo. Lá não. Lá é mais...

Eu: O quê? É mais formal? R: É. Aqui é mais sem regras.

(risos) É outra coisa. É outro mundo.

Nas observações no bairro, percebi que as conversas sobre o “playboy” variavam, tornando a categoria múltipla. Não falavam da existência de só um tipo de “playboy”; ele não fazia parte de uma categoria única, nem visto de uma única maneira. Evidências que traziam aos pesquisados reflexões quanto à existência de “mundos diferentes”, a partir das práticas que os “playboys” e a “molecada” do Mundo Novo realizam.

A diferença econômica é apontada pelos jovens como o principal aspecto definidor para marcar as diferenças entre eles. O dado comum a todos os tipos de “playboys” é o fato de fazerem parte das camadas mais privilegiadas da população. Os “playboys” de dentro são os jovens que moram no bairro desde pequenos, mas têm outra condição de vida, tem alguns contatos com o grupo, mas são “playboys”. Vivem outras experiências, não fazem parte das relações próximas de amizade que o grupo mantém. Algumas vezes me apontavam na rua os “playboys” do bairro, passando de carro ou os cumprimentando. Momentos em que os rapazes diziam que eles são amigos, mas é diferente. Durante o tempo que estive no bairro não observei experiências próximas entre eles. Não vi esses jovens entre os rapazes, no período que estive em campo, vi comentários sobre eles. Os rapazes dizem que já foram na casa de “playboys” que moram no morro; eles têm casas melhores, comem a comida toda “separadinha”, a mãe chama toda hora se eles estão na rua com eles, que têm videogames e computadores em casa, por exemplo. São os “playboys” de dentro, que eles conhecem por proximidade de moradia.

Há os “playboys” de fora que gostam do jeito da rapaziada do morro e querem andar com eles, querem participar de suas experiências, fazer as coisas que eles fazem. Mas o jeito do “playboy” é outro, o que faz com que essas diferenças sejam para os pesquisados motivos de “zoação”. Os rapazes costumam achar engraçado quando os “playboys” querem imitá-los, quando querem ficar parecidos com o jeito dos rapazes do morro. E passam a usar as roupas e os cabelos como os deles. Os pesquisados dizem que fica estranho por que eles não têm o mesmo jeito de falar e a mesma atitude. Fazem reflexões que envolvem questões sociais e culturais, como o fato de os “playboys” não terem culpa, porque o afastamento visto é questão de “condição”.

Mesmo antes de investigar mais especificamente o “playboy”, eu já havia obtido diversos relatos dos jovens nos grupos focais e nas entrevistas falando deles. O trecho que escolhi e apresentei anteriormente trata de detalhes das importantes relações entre os pesquisados e das diversas considerações que costumam realizar sobre os “playboys”, suas formas de vida pela convivência que o grupo tem com eles. Essas experiências constroem entendimentos significativos.

As relações que os pesquisados têm com os “playboys” estão hierarquicamente constituídas, são demarcadas de antemão pelas diferentes posições econômicas e sociais existentes entre eles. Existem análises do grupo com o reconhecimento do lugar social diferente em que estão em relação aos “playboys” que, como diz o jovem no trecho citado, é outro mundo. O dado sobre a festa no morro era recorrente. Ouvi diversas vezes falarem sobre as festas deles e as dos “playboys” como marca dessa diferença, onde, segundo o grupo, o divertimento no morro é mais livre e mais maneiro.

Há os “playboys” de fora que gostam de subir o morro pela droga ou pelo estilo de vida dos rapazes, que lhes agrada. Nesse caso, buscam proximidade por imitação ou admiração a um estilo de vida, segundo os pesquisados. Dizem que mesmo que esse “playboy” queira ficar parecido com eles, “ser um deles”, fica diferente, porque não conhece as práticas de quem vive no morro. O estilo faz parte das vivências, é mais do que roupas ou cabelos; é um jeito de ser que eles não têm, nasceram do “outro lado”, não têm culpa disso e não dá para fazer sentido para eles do mesmo jeito de quem nasceu na comunidade. Ainda segundo os rapazes, ser “playboy” e querer estar próximo da rapaziada pode ou não estar associado ao consumo de drogas. O rapaz pode ser “playboy” e se aproximar dos rapazes do morro por achar bacana ou maneiro o jeito deles. Há ainda os “playboys” que não querem interagir por proximidades, sobem ao morro pelos envolvimentos com a droga e querem se manter distanciados de outras relações.

Pode haver mudanças nessa categoria, que é quando o playboy passa a ser “funkeirão” ou “tchum-tchá”. Segundo o grupo, é quando a relação com a droga passa a ter uma maior importância em sua vida e estilo. Quando o “playboy” passa a se mostrar mais envolvido com o uso de drogas, o estilo começa a mudar; usa roupas mais chamativas, podendo se envolver em atividades ilícitas. Não é só o “playboy” que pode passar a ser assim, um dos jovens do grupo, e que se identificou como “funkeirão”, me explicou que é alguém que usa drogas com mais frequência, curte muito funk pesado e tem um estilo de roupas característico de “tchum- tchá”, que é quando ele escolhe roupas, tatuagens e adereços mais chamativos. A categoria

será vista de maneira mais aprofundada no capítulo seguinte, quando tratarei das questões de estilos.

O playboy pode virar “tchum-tchá”, mas ele continua sendo “playboy”, ou melhor, “playboyzão”, como dizem quando o “playboy” passa a ser “tchum-tchá”. O “moleque” do morro também pode vir a ser “tchum-tchá”, como vi acontecer. Mas há diferenças que se mantém, evidenciando que existem realidades simbólicas de acordo com as vivências sociais, econômicas e culturais que “playboys” e “moleques” experimentam. No morro, vejo que elas, algumas vezes, se tocam.

4 CAPÍTULO 3 – ACONTECIMENTOS NOS ESTILOS

No documento marizaconceicaograssanolattari (páginas 125-131)