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A etnografia na busca por visões contextualizadas das vivências juvenis

No documento marizaconceicaograssanolattari (páginas 75-80)

Retirei-me de um cenário que mostrava um fenômeno de grupos juvenis nas ruas da cidade por visões deslocadas. Eu ouvia sobre os tais jovens das “gangues”, em um sentido que envolvia práticas juvenis de desordem e fui à busca de visões que se aproximassem de suas realidades. Em campo, tive a oportunidade de ver práticas com sentidos reais na vida dos jovens, vividas e refletidas por eles. Neste capítulo, procurei mostrar como se deu essa inserção em campo, junto ao processo de construção metodológica desta pesquisa, na intenção de compartilhar as experiências que a envolvem e abrangem a mim e aos informantes.

São escolhas individuais que fiz e mostram retomadas, afastamentos, reinícios, muitas estratégias pensadas, nem sempre usadas. Não quero somente tratar dos processos técnicos e intelectuais, que são importantes, mas junto com eles, acontece a história desta pesquisa, com acertos, erros, medos, coragens, tendo sempre a vontade de seguir. Seguir em frente, com os rapazes é o nosso compromisso de pesquisa. Eu os envolvi e me lembrava sempre disso, nos momentos mais difíceis, em campo e na escrita da tese. Partilhei, desde o início, minha ideia e este caminho, e percebo que estamos juntos nele. Alguns jovens me dizem como é diferente para eles o que faço, mas que acham que é bem importante. Algumas vezes, me cobram o trabalho e dizem que vão estar presentes na defesa desta tese. Alguns pesquisados perguntam: “Quem sabe a nossa história vira um filme?”.

Nas fotos a seguir, apresento a experiência de levar o material de pesquisa para que olhasssem, nas ruas do bairro onde a realizei. Nas imagens, levei o material que vinha escrevendo, mostrando as correções que precisava fazer a partir das orientações e que, algumas vezes, eram muitas. Eles liam algumas partes, sentados em grupos. Gostavam de ver as fotos dos cortes de cabelos, riam, tentando identificar os amigos, que eu havia descaracterizado ao manipular as fotos, e me pediam que colocasse mais, que queriam aparecer nelas.

Figura 11 – Leitura de trechos da pesquisa, na porta da “padoca”.

Figura 12 – Leitura de trechos da pesquisa nas ruas do bairro Mundo Novo.

Fonte: Mariza ConceiçãoGrassano Lattari

Noto a presença ativa dos pesquisados, nos muitos momentos de participação nesta investigação, como nas entrevistas e grupos focais, mas alguns me chamaram a atenção, em especial. Os rapazes queriam, desde o início, manter os seus nomes na pesquisa, não concordavam quando apresentei a possibilidade de serem mudados; disseram-me que queriam mantê-los, como disse anteriormente, quando revelei que optei por apresentá-los por suas iniciais. Em outros momentos, quando pedem para colocar as fotos e me perguntam sobre o andamento do trabalho, vejo suas presenças e envolvimento se repetindo.

Nossos encontros formam o material empírico deste estudo, obtido pelas nossas conversas, pelas observações nas ruas do bairro, pelos grupos focais, pelas entrevistas e pelo que algumas vezes não precisava ser dito, mas compreendido. Alguns dados fornecidos pareciam incompletos ou modificados, com um propósito definido, como se naquele momento fosse suficiente e interessante agir assim. A brincadeira com o apelido de um amigo foi uma delas. Contaram-me uma história baseada no personagem do filme Cidade dos Homens. Disseram que o jovem do Mundo Novo tinha feito o mesmo que o rapaz do filme, dado tiros para o alto em um baile funk e, por isso, ganhou o apelido do jovem do filme. Estávamos em um de nossos encontros em grupo, todos riram, confirmaram a história e contavam detalhes do evento. Não questionei a história, ouvi, participei; não estou preocupada com as verdades, mas com os sentidos que os dados possam se desdobrar.

O amigo era apontado pelos jovens com alguém que “sabia das coisas”, também como um cara que gosta de se vestir como um “playboy” ou “chamativo”, pelo uso exagerado das marcas. Eu observava, desde o início, que os rapazes queriam me mostrar algo mais sobre o amigo, sem que fossem muito explícitos. Acredito que uma história, como a contada pelo grupo, repleta de detalhes, e que coloca um amigo como protagonista de uma cena dessas no baile funk traz o jovem para a discussão de maneira especial. Eles chamavam a minha atenção para o colega constantemente. Não foi o único amigo a ser tratado assim. Algumas vezes usavam essa estratégia de tratar de maneira especial algum amigo na minha frente, chamando a atenção sobre ele, sem dizer muito, deixando indícios. Transportar, em uma de nossas discussões, o colega para a Cidade dos Homens atendeu à proposta dos jovens naquele momento entre nós. Penso que, além de se divertirem, queriam ver a minha reação com a história, se eu os questionava, se teria medo, percebi que esse era um dado que me importava, e interagia com eles.

Em outro dia, em uma entrevista na casa do K, sozinha com o jovem que disseram ter feito o mesmo que o personagem do filme, eu pergunto se ele prefere que eu o chame pelo nome ou pelo apelido. Ele me diz que gosta de ser chamado pelo apelido. Sem se referir à história contada pelos amigos, no momento em que ele estava presente e não negou, me diz na entrevista, sozinho, que o apelido foi dado por uma menina, que não tem nada a ver com o cara do filme, mas gosta de usar o nome.

O uso de técnicas diversas nesta pesquisa, além de trazer mais dados, outros olhares e sentidos, trouxe mudanças em nossas relações. Nas ruas do bairro, pude conhecer o campo, observar os lugares e os seus usos pelos jovens; iniciar meu contato, mostrar quem eu era e o que eu queria fazer. Nos grupos focais, a dinâmica me possibilitou interações próximas ao grupo, pude conhecer as experiências e as memórias apresentadas e refletidas por eles, coletivamente. No momento dos grupos focais, aconteciam trocas imediatas, como se os dados precisassem ser compartilhados entre eles, pelas experiências. As entrevistas trouxeram outras proximidades, coisas que percebi que os jovens preferiam contar individualmente. Eram particularidades deles que não eram para o grupo todo discutir.

Uma perspectiva analítica distante para cuidar desses e de outros dados não acolhe toda essa diversidade que há no grupo de jovens que analiso. Não abrange o que há de detalhes e de particularidades entre os rapazes. Por isso, a aproximação com a etnografia acontece, nas estratégias em campo, na análise dos dados e na redação, me ajudando a pensar e trazer materialmente essa diversidade na pesquisa. Isso está ligado às socialidades que

acontecem entre os jovens, aos usos e às apropriações simbólicas que realizam; às maneiras e aos sentidos dos seus acontecimentos, dentre outros dados que continuam se revelando.

O meu esforço é por uma escrita contextualizada, social e historicamente incluída, mas também atravessada pelos sujeitos envolvidos como informantes, pelas suas experiências e vivências, e ainda pelo meu lugar social. Os jovens são vistos por suas falas diretas, pelas análises e comentários que realizam. Os dados podem ser considerados diretos, mas com eles caminha a presença do meu olhar constante, que escolhe, fala junto e também torna suas experiências visíveis.

Ora a escrita etnográfica, longe de reduzir esta diferença observadora, contribui a amplificá-la. Por um lado é uma escrita que vem sempre depois do olhar do pesquisador e da palavra dos seus interlocutores. É um discurso que memoriza este olhar e esta palavra, para conservar a traça e guardar a memória (LAPLANTINE, 2004, p. 42).

A relação que aqui se constrói é única, a partir de vivências particulares, marcando e expondo pesquisados e pesquisador. Escolhi estudar a juventude e, particularmente, os jovens pobres pela forma como escolho olhar para eles, atenta às construções significativas que realizam. Observo que nelas estão inseridas uma força criativa e dinâmica repletas de sentidos que via acontecer, na pesquisa de mestrado, em suas práticas cotidianas. Na pesquisa atual, essa é a busca que continua me importando para a compreensão das experiências juvenis. Interesso-me pela existência e pela manifestação de práticas plurais e mutáveis que os jovens manifestam, como as que vejo se realizarem nas ruas pelos grupos de rapazes, mostrando disposição e energia em suas formas de vida a partir de realizações e de preferências.

São práticas juvenis que escolho, saindo das interpretações que se baseiam unicamente nas dimensões da pobreza, do preconceito e da resistência à exclusão, sem negar que fazem parte de análises de fenômenos compreendidos de forma entrelaçada, no entanto, sem que sejam vistas como únicas. São visões que estão presentes no dia a dia da categoria, pelas evidências contidas nos dados, conforme pude observar nos relatos e nas reflexões dos jovens na pesquisa que realizei no mestrado e, posteriormente, pelos dados que obtive neste estudo e estão refletidos nos capítulos seguintes.

3 CAPÍTULO 2 – OS ACONTECIMENTOS NA AMIZADE

No documento marizaconceicaograssanolattari (páginas 75-80)