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No Mundo Novo, encontro a “rapaziada”

No documento marizaconceicaograssanolattari (páginas 56-61)

Antes de conseguir acesso aos rapazes do bairro Mundo Novo, pensava novamente em como me encontrar com os que seriam os pesquisados. Buscar o que eu conhecia e via nas ruas, pelo contato com ex-alunos, pelas mídias e nas conversas realizadas nas tentativas de entrar em campo. Eu via que tinham um lugar no espaço urbano, enquanto categoria social que se mostra e é representada nas ruas de Juiz de Fora. Observo apenas os rapazes, não vejo meninas nos grupos. Dentre outras preferências, eles gostam de usar roupas e bonés de marcas famosas, possuem um “gingado” cadenciado no andar. Algumas vezes, acompanhei os grupos, não entre eles, mas não tão longe que eu não pudesse ouvir que, algumas vezes, cantavam funks enquanto caminhavam. Os rapazes gostam de tatuagens, colares e anéis de prata, usam brincos e, alguns, aparelhos nos dentes. Formam e mostram um jeito de ser preferido entre eles.

Refletia sobre a entrada em outro bairro e como fazer isso para iniciar o contato que eu precisava ter com os grupos juvenis, conhecidos como “gangues”, “bondes” ou “galeras”. Em algumas conversas posteriores, já em campo, vários rapazes disseram que fazem parte de “gangues”, que de tanto serem chamados assim, já incorporaram o nome. Depois de um tempo de convívio, me explicaram que há outro sentido construído e vivenciado por eles para o termo, que se encontra discutido no capítulo 4. Surgiram em campo outros termos, como “rapaziada”, “tropa”, “de montão” e “de galera”, que se aproximam por se referirem a grupos de jovens. Cada terminologia será tratada posteriormente em seus sentidos específicos, apresentados pela lógica dos jovens e refletidos a partir delas. Antes de discuti-los pelos dados que obtive com os pesquisados, observo que os termos possuem apropriações distintas e, para que tenham sentido, precisam ser vistos de acordo com as construções dos pesquisados na relação com os contextos sociais nos quais estão inseridos, pelas formas de interação em que se realizam e representações construídas. Saindo dessa articulação de dinamicidade que os

termos possuem, o que se vê são as apropriações descontextualizadas, que mostram o uso de um termo como “gangue”, a partir de representações deslocadas e distantes dos sujeitos.

O termo “gangue” tem surgimento em contextos sociais e históricos de épocas anteriores, que passa a ser usado, muitas vezes, por apropriações deslocadas para os jovens em momentos posteriores. Algumas vivências sociais de grupos juvenis já foram chamadas de “gangues” para explicar as ações de jovens envolvidos em dinâmicas sociais conflituosas em algumas cidades norte-americanas. “Foi no início do século 20 que as “gangues” apareceram no cenário urbano americano. Desde então, elas foram continuamente estigmatizadas como um ‘problema social’ maior” (SÁNCHES-JANKOWSKI, 1997, p. 180). Considero a palavra “gangue” esvaziada de sentidos quando se propõe a tratar da mesma forma grupos de jovens heterogêneos, em diferentes épocas. Nominar os jovens de maneira abstrata não é minha preocupação, saio da ideia de tratar os fenômenos sociais vinculados a grandes teorias generalizantes, mas não posso deixar de mencionar termos que aparecem de maneira recorrente no contexto proposto. Reflito que os jovens constroem e mostram vivências significativas em suas formas de vida, diferentes de visões preconcebidas.

A entrada no Mundo Novo foi facilitada por VI, um rapaz que encontrei na rua do bairro em que eu morava, o Alto dos Passos, e que também havia sido meu aluno. Tive muitas dúvidas quanto a apresentar ou não o nome dos rapazes dispostos a participar deste estudo. Escrevia os capítulos com seus nomes, em outros momentos retirava e passava a usar nomes fictícios. Não me parecia honesto com os pesquisados usar nomes que eu escolhesse. Foi um assunto recorrente nas orientações; eu insistia em usar seus nomes. Isso ocorreu porque eles diziam querer tê-los apresentados, estarem associados ao estudo e aos seus relatos. Possuíam fortes identificações com seus nomes, se preocupavam para que eu não fosse confundi-los. Alguns soletravam para eu escrever certo, havia alguns jovens com nomes iguais e eles diziam que eu poderia usar o segundo nome para diferenciá-los. Um dos jovens me pediu para identificá-lo com precisão. Além de escrever seu nome, pediu que dissesse que ele possui um anel de ouro com suas iniciais e, quando se apresenta, mostra o anel. Conversei sobre isso com eles inúmeras vezes. Explicava que me relatavam experiências particulares deles, de familiares e amigos, e talvez fosse melhor utilizarmos outros nomes. Considerei, com eles, as outras possíveis leituras e apropriações do texto antropológico e, por isso, não seria interessante ter suas identidades reveladas. Ainda, que eles poderiam mudar de ideia e, em outro momento de suas vidas, não querer ter suas identidades expostas. Depois de muito pensar, sozinha, nas orientações, e negociar com os rapazes, decidi usar as iniciais de seus

nomes, que os mantém identificados ao estudo, sem que estejam completamente revelados. Quando os nomes são iguais, para diferenciá-los, uso a letra seguinte.

Quando encontrei VI, o jovem que me facilitou a entrada no Mundo Novo, procurei ser mais “direta” com ele. Não esqueci os cuidados que sempre tive ao abordar os jovens, como ouvi-los com calma, responder as suas perguntas. Falei o que eu estava fazendo e tratei de contar sobre a minha pesquisa, sem pressa, mas com entusiasmo e, desta vez, procurei me voltar mais especificamente para o contexto desta investigação. Depois da experiência em Santa Luzia, passei a me preocupar mais em esclarecer ao jovem o que eu pretendia e a forma como queria desenvolver o estudo, sem detalhar demais. Disse que fazia algum tempo que eu observava os grupos numerosos de jovens que andavam pela cidade e sentia vontade de saber mais sobre esses eventos, só que por eles, distanciada do que eu via de fora ou lia nos jornais. Interessava-me, dentre outros aspectos, pela maneira como se organizavam para as saídas em grupos, se seriam todos do mesmo bairro, como se davam as preferências pelas roupas e pelos bonés de marcas famosas que os via exibirem. Queria saber mais sobre os cortes de cabelos que mostravam ou como aconteciam os envolvimentos em brigas que ocorriam, algumas vezes, entre os grupos nas ruas da cidade.

Disse a ele que queria fazer um estudo sobre esses rapazes que eu via em uma movimentação interessante e particular pela cidade e caso ele conhecesse alguém que fizesse parte desses grupos e pudesse me apresentar seria, para mim, muito importante. VI me disse que fazia parte de um grupo como o que eu procurava, que eram rapazes do bairro Mundo Novo. E se mostrou interessado em participar do estudo, dizendo que ia conversar com os amigos. Obviamente, eu havia percebido que VI se encaixava no grupo de pesquisados que procurava, mas tive que deixá-lo à vontade e esperar se decidir. Eu lhe disse que gostaria de frequentar o bairro, conhecer seus amigos, estar por perto um tempo maior, que não seriam poucas visitas.

Além de explicitar meu interesse de estudo, disse a forma como pensava em construí- lo, que essa seria de maneira próxima à realidade vivida pelos pesquisados, a partir, principalmente, do que me dissessem. Queria ouvir sobre suas vidas, experiências, que eu tinha a impressão pelo que via nos grupos nas ruas de existir muita coisa interessante para conversarmos e discutirmos e que me possibilitasse, posteriormente, escrever sobre eles. Claro que mediante suas aprovações. Eu mostraria todo o material que eu obtivesse. VI se mostrou interessado, percebo pela atenção e curiosidade dele, que me aproximo, como pesquisadora, do momento em que “(...) todos descobrem rapidamente que para ‘descobrir o outro’ é preciso ‘seduzi-lo’” (GROSSI, 1992, p. 15). Percebi que o jovem não era só um

acesso a outros jovens, mas era um deles, fazia parte de um grupo de amigos que se aproximava dos sujeitos que eu queria particularmente cuidar nesta investigação. Ele se sentiu valorizado; pareceu-me, logo de início, que sentiu vontade de participar, disse que gostou de me encontrar, fazia tempo que não nos víamos e gostaria de fazer um trabalho como o que eu propunha.

O jovem me sugeriu adicioná-lo no Facebook, disse que aceitaria minha solicitação de amizade, e que, através desse contato, poderíamos combinar os próximos passos para um encontro com ele e com seus amigos. Essa forma de contato me permitiu mais do que agendar os encontros. O Facebook permitia-me ver o que ele compartilhava através de suas fotos, sozinho, com a namorada, com os amigos, com os familiares. Essa rede social me revelava os lugares por onde ele andava, os jogos de futebol, as saídas em grupo, os bailes funks, os vídeos preferidos. Pelas fotos, postagens e comentários eu podia conhecê-lo um pouco mais e também conhecer seus amigos. Eu observava como se relacionava, principalmente, com os seus pares, quais suas preferências, seus problemas, suas alegrias, suas tristezas etc. Havia diversas publicações compartilhadas, curtidas e comentadas entre eles.

Na atualidade, diversos sujeitos de todas as categorias sociais expõem aspectos tanto gerais quanto particulares de suas existências nas redes sociais. Através delas, expõem suas preferências, sentimentos, ideias, comportamentos, ou seja, mostram, dependendo de suas escolhas, pouco ou muito daquilo que são, tratando suas formas de vida de maneira pública. Interagem, pelas mídias, com sujeitos próximos a eles e com outros que possam estar mais afastados. Por esse caminho de exposição nas redes sociais, passei a conhecer VI e alguns de seus amigos, e a nos comunicar por mensagens de textos no Facebook. Também utilizávamos o Whatsapp, onde podíamos conversar pela voz e também por mensagens de textos, via celular, sem custo telefônico. Na maioria das vezes, nossos encontros eram marcados ou confirmados dessa forma.

Depois desses contatos com o jovem, passei a ir algumas vezes, sozinha, ao Mundo Novo. Queria conhecer, pela observação direta, seus moradores, espaços, possibilidades e a dinâmica diária, como fiz anteriormente em Santa Luzia. Vi que é um local de aclive acentuado, em relação a locais próximos como o Alto dos Passos e o São Mateus. Nas áreas de divisa com o Mundo Novo, esses bairros possuem a maior parte das ruas bem mais planas. Há pouco comércio onde vivem os pesquisados, apenas alguns bares pequenos, mercadinhos, que os jovens me disseram depois chamar de venda ou vendinha. Há também duas padarias, uma delas é ponto de encontro dos rapazes, chamada por eles de “padoca”, e há uma loja pequena de roupas. Um dos informantes me falou do Zé Carlos, um bar conhecido no local

pela costela no bafo que prepara e atrai clientes de outros locais. A igreja católica encontra-se em uma parte mais alta e central. Notei que esse é outro ponto de encontro dos jovens para conversas, principalmente, à tarde.

Nas idas ao Mundo Novo, observava os espaços do bairro, interagia com os rapazes marcando minha presença, me tornando conhecida, desenvolver a confiança no local, conhecendo-os; junto a essas relações tentava encontrar um lugar em que eu pudesse realizar o primeiro encontro para conversar com os jovens, para ouvi-los em grupo e realizar o primeiro encontro para um grupo focal. Falo com mais detalhes sobre a realização dos grupos focais mais a frente. A partir dessa decisão, conversei com VI, o informante que me levou ao Mundo Novo, com quem eu mantinha contato frequente e vinha me apresentando a seus amigos. A interferência e a influência dele foram fundamentais para o tipo de relação que passei a ter com os jovens. Eu percebia que, quando era apresentada como amiga dele, tinha um tratamento de amizade e confiança.

O jovem é muito querido no morro, os rapazes dizem que ele sabe chegar, tem muito respeito por lá, é “amigo fechado”, termo para se referir aos fortes laços de amizade construídos pelo grupo. Tal dado se mostrou relevante e discuto melhor no capítulo seguinte quando trato das amizades. Posteriormente, disse a VI que eu queria conversar com os rapazes em uma discussão em grupo, para que pudéssemos pensar as questões da pesquisa, que eu já vinha apresentando aos rapazes de maneira mais informal em nossos encontros na porta da igreja, na porta da casa do K ou do N. Ele disse que reforçaria o meu convite aos amigos. Propus-me a ir com ele e dar as explicações de como seria. Mas eu não tinha um local para que o encontro pudesse acontecer. O jovem novamente me ajudou e me deu a sugestão de uma casa que era usada por pessoas da igreja, segundo ele. Eu pensava em um local que fosse de alguma forma “neutro” para realizar os grupos focais. Mesmo acreditando que essa neutralidade não é pura, a ideia era de que não fosse um local muito preenchido de sentidos e representações para os jovens, talvez a ponto de constrangê-los ou incomodá-los. Por exemplo, eu não queria que fosse uma escola ou uma igreja, por serem locais que nos remetem a uma série de normas, condutas e valores específicos construídos por cada uma dessas instituições ao longo de séculos.

Como disse anteriormente, soube por VI que havia um espaço que poderia ser interessante para realizarmos nossos encontros. É uma casa, no bairro Mundo Novo, cedida por um dos membros, já falecido, da igreja próxima, para atender às demandas locais. Fui diversas vezes ao bairro para conhecer o local e a pessoa responsável, sem encontrar ninguém lá, a casa costumava estar vazia. Descobri, perguntando aos moradores que via pelo bairro,

que a pessoa responsável morava duas casas à frente do local. Quando a encontrei, expliquei meu trabalho, ela foi solícita e disse que me emprestaria a chave para os encontros com o grupo nos dias combinados antecipadamente. Ela me explicou que a intenção de uso da casa é para atender aos pedidos dos moradores locais, não a qualquer pedido, nem a qualquer morador. Segundo ela, não é destinado a “grandes festas”, mas a algumas comemorações e reuniões que como as nossas poderiam acontecer. Quando falou de grandes “festas”, referiu- se ao barulho e à confusão que essas podem trazer. Ela reclamou do bairro, me disse que já foi mais calmo e hoje está muito barulhento e complicado de se viver. O local emprestado para o encontro com os jovens não lembrava um espaço religioso. Era uma casa simples, com poucos móveis, e aparentava ser um local propício para reuniões, pelo tipo e disposição das cadeiras e da mesa em frente a elas. Na copa e na cozinha, as pessoas armazenam e separam alimentos e outras doações para melhor organizarem cestas para as distribuições a quem se cadastre ou as requisitem. Com o local acertado, procurei os jovens e marcamos o primeiro grupo focal para um sábado no mês de agosto de 2014. A foto da casa utilizada para os encontros em grupo, apresentada abaixo, evidencia um tipo de moradia comum no bairro.

Figura 8 – Casa usada para os encontros em grupo com os rapazes.

Fonte: Mariza Conceição Grassano Lattari

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