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DESIGN PARA COZINHAR

No documento Design bites (páginas 73-78)

CAPÍTULO 1 – DO DESIGN E DA ALIMENTAÇÃO AO FOOD DESIGN

46 TLA: “The most sweeping changes, however, came with the onset of indus-

1.3 DESIGN PARA COZINHAR

Para caracterizarmos a evolução da cozinha e dos objetos que a com- põem para produzir, processar e confecionar os alimentos, é importante contextualizar os hábitos alimentares do ser humano e o modo como ele os transforma numa refeição. Na perspetiva do design, é fundamen- tal rever esta evolução, que depende não só do desenvolvimento do es- paço cozinha, mas também da tecnologia e da industrialização, como tivemos já oportunidade de referir (Heskett, 1995; Salvador, 2016; Tekmen, 2007; Wilson, 2013).

Comer, cozinhar, produzir, armazenar e servir os alimentos foram ativi- dades constantes ao longo do tempo, e para todas elas é necessário um espaço – a cozinha.

As cozinhas e as ferramentas são desenvolvidas para a cultura a que pertencem. Em diferentes partes do mundo a cultura alimentar é di- ferente, o que se reflete na culinária, nas ferramentas desenvolvidas e nas cozinhas, que variam entre si. Cada território diferente tem as suas crenças e tradições específicas quanto à ingestão de alimentos, o que molda a sua maneira de cozinhar e comer.52(Tekmen, 2007:9)

Em cada cultura e sociedade existem diferentes regras e códigos, e estes têm um forte impacto no modo como ingerimos o alimento. À medida que o tempo foi passando, o papel da cozinha alterou-se de acordo com as necessidades e os estilos de vida (Tekmen, 2007; Salvador, 2016; Wilson, 2013). Consequentemente, os objetos associados ao ato de cozinhar

também se transformaram. 52 TLA: “Kitchens and the tools are devel-

oped for the culture they belong to. In dif- ferent parts of the world, food culture is different, which reflects on the cuisines, the tools developed and the kitchens in varying from each other. Every different territory has its special beliefs and tra- ditions on food taking, which constructs their way of cooking and eating.”

A cozinha é o espaço onde os alimentos são preparados, cozinhados e armazenados, sendo normalmente o lugar central no que diz respeito ao ato alimentar. O desenvolvimento deste espaço acompanha o desen- volvimento do ato de cozinhar. Historicamente o conceito de cozinha começa sobretudo à volta do fogo, essencial para o processo de transfor- mação dos alimentos e para o modo como nos relacionamos com eles

(Capella, 2013; Wilson, 2013; Montarani e Flandrin, 2008; Pérles, 1989; Salvador, 2016; Tekmen, 2007). A casa (i.e., espaço doméstico) e a civilização foram construídas à

volta do fogo e do espaço culinário, sendo talvez este o primeiro mo- mento de transformação da cozinha.

A evolução da cozinha moderna começa após a descoberta e domesti- cação do fogo e as fontes de calor afetaram de modo profundo o design e a organização das cozinhas e dos seus utensílios para cozinhar. Inicialmente concebida apenas para cozinhar, e relegada para segundo plano dentro do espaço doméstico, só posteriormente se transforma no lugar onde também são realizadas as refeições (Salvador, 2016; Espinet, 1984; Wilson, 2013). Tudo se centrava à volta do fogo. Na Europa, durante a Ida-

de Média, cozinhava-se sobre o fogo, junto da chaminé, e só no século xiii surgem as primeiras cozinhas com fornos e mesas.

Posteriormente, a burguesia estabelece este espaço como uma divisão separada do resto da casa, principalmente a partir do século xv. Uma profunda renovação na arquitetura rural começa a ocorrer durante os séculos xvi e xvii, levando a que o fogo se afaste cada vez mais do centro da casa. Só no século xviii surge a chaminé, que introduz alterações na distribuição da casa. A cozinha começa a ganhar forma como espaço próprio e torna-se, deste modo, uma zona independente do resto da casa. Embora ventilada, continua a estar separada da casa e afastada das zonas sociais. A cozinha como a conhecemos hoje é, acima de tudo, dependente das fontes de calor e do desenvolvimento que ocorreu com a sua manipu- lação, crucial para o ato de cozinhar (Tekmen, 2007; Wilson, 2013; Giedion, 1948).

Um dos grandes contributos foi o de Benjamin Thompson, Conde Rumford, em Inglaterra que permitiu

transformar a configuração e natureza do espaço culinário: de um espa- ço dominado pela chaminé e pelas chamas abrasadoras, para um onde o fogo estava encerrado e controlado, o que, por sua vez, possibilitou a transformação dos hábitos culinários da humanidade. Com o controlo da chama, era possível fazer fervuras curtas, grelhados, cozedura lenta, co- zedura viva e banho-maria, permitindo introduzir novos molhos, purés, caldos, etc., além de que a versatilidade e aumento do número de bicos de fogão permitia que o cozinheiro realizasse múltiplas receitas, ou fases encadeadas de uma mesma receita, em simultâneo. (Salvador, 2016:208)

Os avanços tecnológicos que ocorreram durante a industrialização vie- ram também alterar o modo como as cozinhas se configuravam. O de- senvolvimento da maior parte dos utensílios culinários ocorre durante esta época, e a mudança de uma economia predominantemente agríco- la para uma economia urbana começa assim a transformar os hábitos alimentares e a forma como se cozinhava.

Entre 1880 e 1900, Frederick W. Taylor tenta criar uma estandardiza- ção dos métodos de trabalho para otimizar a produção. O que Taylor tentou fazer foi um melhoramento da eficiência e da produção, que, consequentemente, levaria ao conceito de padronização. Sendo um conceito de design na produção industrial moderna, a padronização é também incorporada nos sistemas de trabalho dos operários.

Os conceitos de estandardização e de racionalização iriam encontrar maior expressão a partir dos anos 20 do século xx, estando relacionados com a eficiência comercial e industrial. Foram igualmente aplicados ao trabalho doméstico, especialmente a partir do livro53 de Catherine Bee- cher, que sugeria alterações na organização e disposição das cozinhas.

(Heskett, 1995; Salvador, 2016; Wilson, 2013)

Em 1926 surge a chamada Frankfurt Kitchen, desenvolvida por Margare- te Schütte-Lihotzky, a primeira estudante feminista de arquitetura da Escola de Artes e Ofícios de Viena. O seu layout standard foi otimizado

53 A “Treatise on Domestic Economy”, publicado em 1841.

com base nos estudos já efetuados à época e, principalmente, no traba- lho de Catherine Beecher. Esta cozinha foi criada com dois propósitos: otimizar o trabalho de modo a reduzir o tempo de confeção e diminuir o custo com os equipamentos associados.

Sendo que o processo de adaptação é sempre lento e relutante ao que é novo (Wilson, 2008), este modelo incorporava um conceito de cozinha

que se expandiu durante praticamente todo o século xx, a cozinha de trabalho. Embora tenha recebido inúmeras críticas por reter a mulher na cozinha, a verdade é que estava relacionado com razões económicas. O conceito de que a cozinha deve estar separada do resto da casa, por questões práticas, continua a existir na atualidade (Tekmen, 2007; Espinet, 1984; Salvador, 2016; Wilson, 2013).

O equipamento utilizado foi padronizado: água quente e fria na tornei- ra, lava-loiças na cozinha, fogão elétrico ou a gás e forno. O frigorífico foi adicionado como um item padronizado posteriormente. Por último, as máquinas de lavar loiça e o forno de micro-ondas ocuparam o seu lugar na cozinha.54(Tekmen, 2007:12)

A evolução da cozinha manteve-se bastante tempo associada ao con- ceito de que esta divisão apenas servia para preparar as refeições. Só mais tarde começou a existir uma alteração na cozinha, quando passou de um espaço exclusivamente destinado à preparação e confeção dos alimentos, para um espaço que possui também uma dimensão social e constitui uma parte integrante de toda a casa.

O desaparecimento gradual dos criados da casa, e das classes sociais mais altas centra de certo modo as tarefas na dona de casa, o que in- fluencia de forma direta uma nova organização da cozinha. As soluções atuais dependem, acima de tudo, do estilo de vida.

No final do século xix a cozinha deixa de estar isolada. Este novo espaço surge a partir da solução proposta por Frank Lloyd Wright, segundo a qual o lugar para cozinhar não deveria ser fechado, escondido da família e dos convidados (Giedion, 1948). A emancipação da mulher leva a

que ela também trabalhe fora de casa. Quando está em casa, a família

54 TLA: “The equipment used was stand- ardized: hot and cold water on tap, a kitchen sink, an electrical or gas stove and oven. The refrigerator was added as a standard item afterwards. Lastly, dish- washers and the microwave oven took their place in the kitchen.”

deverá poder reunir-se e, deste modo, a cozinha passa a ser um espaço aberto para a sala de refeições. É uma cozinha com vida, onde a famí- lia está reunida, e o foco se encontra na atividade e interação entre os vários elementos. Este novo conceito de cozinha também influencia o modo como se confecionam os alimentos, e transforma o ato de cozi- nhar, que passa a ser um ato criativo e social.

A cozinha sofreu uma transformação radical ao longo dos anos, pois tem sido um espaço vital e central, o local de socialização dentro da casa. Durante o último século, as nossas cozinhas mudaram mais do que nunca. As mudanças importantes foram sobretudo no uso de gás e eletricidade, técnicas de refrigeração e congelamento, controlo termos- tático para a refrigeração e confecção.55(TEKMEN, 2007:14)

Esta evolução do espaço culinário adaptou-se às necessidades e cir- cunstâncias da vida social. E, por isso, são visíveis as diferenças cul- turais e sociais em diversas cozinhas, em diversas partes do mundo. Qualquer alteração no espaço culinário é sempre resultado das neces- sidades e do estilo de vida adotado num tempo e cultura específicos. Wilson (2013) refere que ao entrarmos nas nossas cozinhas continua-

mos a cortar os alimentos com facas, a mexer a comida com colheres e a cozinhar em panelas. Por mais modernas que as nossas cozinhas sejam, os utensílios que utilizamos continuam a manter a mesma for- ma e muitos dos processos culinários continuam a ser os mesmos. Segundo Hervé This (2006), considerado o pai da cozinha molecular, o

processo de cozinhar está estagnado, parece que continuamos a fazê- -lo como se estivéssemos na Idade Média. Uma das razões que Wilson

(2013) aponta para a resistência à evolução do modo como cozinhamos,

está relacionada com o perigo de experimentar novos alimentos pro- venientes da natureza, devido à conotação negativa desse ato. Na na- tureza, experimentar algumas bagas que pareçam novas, traz uma co- notação com a morte. No entanto, a nossa ligação a certos modos de processar os alimentos é muito mais do que uma preservação. Muitos utensílios mantiveram-se ao longo de séculos porque funcionam bem. 55 TLA: “The kitchen underwent a radi-

cal transformation through the years as it has been the central living space or socializing place within home. During the last century, our kitchens changed more than ever. The important changes were the use of gas and electricity, cooling and freezing techniques, thermostatic control for cooling and cooking.”

Há também o facto de, quando utilizamos um determinado utensílio para cozinhar um determinado prato de uma maneira tradicional, esta- mos a encenar um ritual que nos liga ao lugar em que vivemos e à nossa família, tanto aos vivos quanto aos mortos.56(Wilson, 2013:328)

Na verdade, a autora refere que, sempre que surge um novo utensílio ou aparelho eletrónico que facilite o trabalho na cozinha, por mais fun- cional que seja, é muitas vezes hostilizado durante bastante tempo, com protestos associados de que o modo anterior é melhor e mais seguro. “Novos utensílios parecem mais seguros quando nos lembram outros objetos que já conhecemos bem.”57(Wilson, 2013)

No documento Design bites (páginas 73-78)