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Desterritorialização e “aglomerados” humanos: a exclusão no campo e na cidade

Quando os gaúchos chegaram nesses vales tinha gente em todo o canto morando. Então, eles foram desapropriando o povo, tirando a terra do povo, jogando o pessoal pra cidade. (...) 70% desse pessoal foi expulso de lá e foi pra cidade (...). Mas não jogou todo mundo, aqui e acolá ficou um grupo de gente. (...) Mas esse pessoalzinho que ficou, esses posseirozinhos, eles se concentram na atividade deles, plantando aquela mandioca, ele não mudou a atividade dele. Primeiro, porque o cerrado é problemático, precisa de muito dinheiro, tem que ter mais investimento, (...) mas o banco não é para pequeno, é um caso sério. (Francisco Joaquim de Lima, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Barreiras) O baiano acabou aqui nos Gerais, a não ser algum que voltou pra ser empre- gado. E havia muito? Tinha muito. Na beira do rio era tudo, né? Teve muito conflito de terra? Teve muito. (...) A gente via pegar gente assim, encher dentro do carro e botar em Barreiras, pra não voltar mais pra área lá, tudo aconteceu. (...) Agora aquietou, porque eles queriam é pegar terra do outro, mas agora já está tudo nas mãos deles. Agora o baiano tá voltando a trabalhar pra eles, dar o valor pra eles, aí aquietou, né? (Seu Claudino, morador da comunidade do Km 30 da BR-242, Barreiras)

Embora simplificando o processo como uma relação entre “gaúchos” e “baianos”, essas declarações demonstram bem o dilema dos antigos posseiros dos Gerais nordestinos diante da “moderna” desterritorialização que só lhes dá como opção dobrar-se à grilagem e migrar para as cidades ou servir de mão-de-obra tempo- rária e sujeitar-se aos mandos do “gato”, intermediário na organização da força de trabalho rural não qualificada.

Diante de uma territorialização ordenada a partir do cotidiano e da vivência dos grupos sociais relativamente isolados que viviam nos Gerais, cujos laços com a terra eram muito mais intuitivos e “a-legais” do que formais e “legais”, a des- -reterritorialização implementada a partir da modernização agrícola e a chegada dos sulistas desencadeou um complicado processo de legalização de terras, com a conseqüente construção de novas fronteiras no sentido de formalização do domínio da terra. Mesmo os grandes latifundiários nordestinos não tinham preocupação em formalizar os limites de suas propriedades, num mercado de terras extrema- mente débil e dado o ônus que isso acarretava em termos de impostos territoriais. Com a valorização das terras e a maior circulação de mercadorias, gerando mais ICM, o próprio território à escala estadual, com fronteiras até então pouco pre- cisas, passou a ser objeto de disputa e redefinição. Até mesmo conflitos armados e “invasões” se verificaram (e ainda se verificam) nos limites estaduais. A linha limítrofe entre a Bahia, Tocantins e Goiás, correspondendo em sua maioria ao

divisor de águas, era encarada pelos baianos como a escarpa oeste, que começa justamente nas áreas mais elevadas do planalto. Entretanto, além da dificuldade de definir o divisor de águas em áreas de imensos chapadões sem muitos cursos d’água e onde ocorre o fenômeno das “águas emendadas” (charcos ou pequenas lagoas nas veredas), os pontos mais altos nem sempre coincidem com a linha de encosta, justamente nas áreas agrícolas mais valorizadas, constituídas por campos limpos e com elevados índices de precipitação. Muitas dessas fronteiras ainda hoje continuam em situação de litígio, como a da Chapada da Mangabeira entre Bahia, Maranhão e Piauí.

Após o período mais intenso de grilagens e com a definitiva incorporação da maioria das terras ao mercado capitalista, o processo de desterritorialização pas- sou a manifestar-se no próprio interior das novas relações sociais, especialmente nas formas de inserção do trabalhador nos circuitos capitalistas dos complexos agroindustriais. Mas mesmo entre os trabalhadores rurais a diferenciação sulista x nordestino adquire sua relevância, especialmente devido ao estereótipo que passou a ser difundido do sulista como trabalhador mais qualificado e disciplinado e do nordestino como trabalhador indisciplinado e sem qualificação.

Nas palavras de um empresário sulista de Mimoso do Oeste, os nordestinos “não estão acostumados com trabalho em trator, em colheitadeira, só entendem de enxada”. Além disso, “não se dedicam ao trabalho como os gaúchos, às vezes rece- bem o pagamento e sem mais nem menos desaparecem, vão torrar o dinheiro em festas na cidade”. Os empregados sulistas, por sua vez, apesar de em geral serem mais qualificados, têm o inconveniente de receberem salários mais altos, serem mais organizados e, assim, “exigirem mais vantagens”. Esse estigma do sulista “trabalhador” e do nordestino “preguiçoso”, pelo importante papel que joga na (re)construção cotidiana de suas respectivas identidades, será tratado com mais detalhe no próximo capítulo.

Numa economia que integra agricultura, indústria e serviços, mais do que uma especialização por setor – primário, secundário, terciário –, numa divisão do trabalho tradicional que autores como Lipietz (1988) denominam de horizontal, importa agora a qualificação técnica (uma “divisão do trabalho vertical” ou “fordista”, de acordo com a qualificação da mão-de-obra). Esta foi imposta de forma dramática para os trabalhadores nordestinos, na medida em que a grande massa de migrantes dos sertões ficou marginalizada, num mercado de trabalho voltado essencialmente para atividades que exigem maior qualificação técnica. Assim, a maioria dos trabalhadores permanentes, mais qualificados, veio dire- tamente do Sul. Uma das maiores cooperativas, a COACERAL, do Paraná, nos

primeiros anos de atuação chegou a manter uma linha de ônibus que a cada seis meses renovava o grupo de trabalhadores trazidos do Sul. Como muitos não se adaptavam, dado o isolamento e o caráter de semi-reclusão a que eram relegados, retornavam ao Sul e eram substituídos por outra leva de trabalhadores relativa- mente especializados, ao mesmo tempo em que, aos poucos, ocorria a “adaptação” (treinamento) de trabalhadores nordestinos.

Além de exigir mão-de-obra mais qualificada, o que exclui a maior parte dos trabalhadores migrantes nordestinos, a agricultura moderna, principalmente a da soja, altamente mecanizada, incorpora no seu conjunto poucos trabalhadores. A diversificação recente, porém, com a introdução de culturas como as de feijão, algodão e hortifrutigranjeiros, está representando um aumento na incorporação da força de trabalho nordestina, especialmente na condição de trabalhadores temporários. Além da diferenciação pela especialização exigida do trabalhador, variável de acordo com o tipo de cultivo, há também uma divisão do trabalho que apresenta uma correspondência não estritamente espacial, mas predominan- temente temporal, por se diferenciar conforme os estágios da produção na área ocupada por um mesmo cultivo. É desse modo que etapas como as de limpeza do terreno (“catação de tocos”) e a colheita (no caso do feijão, por exemplo) exigem maior quantidade de trabalhadores não-qualificados.

Como acontece hoje em setores cada vez mais amplos da indústria e do terciá- rio, no chamado padrão capitalista “pós-fordista” ou de acumulação flexível, instalam-se também aqui a terceirização dos contratos e uma espécie de flexi- bilidade do trabalho que muito favorecem o empresário e agravam a condição desterritorializada do trabalhador. Coexistindo com uma minoria de trabalhadores permanentes, em condições materiais relativamente privilegiadas, aparece essa massa de trabalhadores temporários em condições de reprodução extremamente precárias. Além disso, denúncias recentes acusam a expansão do trabalho escravo nas fazendas da região. Ver por exemplo os artigos “Barelli examina queixa de escravidão na Bahia” (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 06.09.1993) e a defesa do principal empresário acusado feita por um jornal local em “Escravidão branca ou demagogia pura?” e “Rieger, um pioneiro da agroindústria” (jornal Nova

Fronteira, Barreiras, 20 de agosto 1993).

A incrível mobilidade desses trabalhadores (o trabalho escravo denunciado na fazenda Flor da Esperança envolvia migrantes trazidos por gatos desde a Paraíba) e a freqüente desagregação social e espacial das famílias, faz deles ao mesmo tempo indivíduos temporariamente inseridos em redes de exploração e uma massa de

desenraizados, vistos por muitos sulistas como “nômades”, em meio ao oceano de terras sem produzir que é o interior do Brasil.

No oeste baiano a margem de ampliação do campesinato é mínima, como se tivesse sido congelada uma estrutura agrária perversa, a dos grandes latifundi- ários do semi-árido, frente à “moderna” concentração da terra promovida pelos novos empresários sulistas nos cerrados. Para Kraychete e Comenford (1990) “...é visível o cercamento e o ‘congelamento na miséria’ do setor camponês. A resis- tência heróica deste setor na luta pela terra, nos anos 70, contribuiu para impor limites ao processo de destruição desencadeado pela grilagem”. Poucos foram integrados “à nova ordem” por meio “da pecuária melhorada ou sob a forma de colonos-irrigantes”. A grande maioria “foi mantida numa espécie de limbo social, sobrevivendo em condições de miséria e sem maiores opções, a não ser o assalariamento ou outras ocupações temporárias e, em alguns poucos casos, de ‘ascensão’ através do ‘negócio’” (p. 62).

O “campo social fluidificado” a que se referem Kraychete e Comenford, onde se mesclam proletários rurais, pequenos camponeses e trabalhadores urbanos em atividades instáveis não repercute numa “afirmação de ‘interesses comuns’“, numa rede de solidariedade capaz de fortalecer movimentos de resistência. A coesão pro- porcionada pelo combate à grilagem e a luta pela reforma agrária (brutalmente abalada pela Constituição de 1988) desaparece e com ela o poder dos sindicatos rurais como forma de pressão social. A igreja progressista, por exemplo, através da Comissão Pastoral da Terra, que fora tão atuante no início do processo, viu-se destituída também dessas bandeiras de luta e infelizmente não soube recolocar com a mesma ênfase suas propostas.

Essa massa de despossuídos que se acumula no campo é ainda mais expressiva nas periferias urbanas, onde vem se somar à miséria já existente na região antes da modernização dos anos 80. Os migrantes do interior do Nordeste, iludidos com o emprego fácil no “Eldorado da soja”, acabam mesmo é alimentando as periferias miseráveis de cidades como Barreiras, principal centro regional que estende hoje sua influência do oeste da Bahia para o sul do Piauí, leste do Tocantins e algumas áreas de Goiás.

Antes um simples espaço-passagem, escala em direção ao Centro-Sul, Barreiras transformou-se subitamente num grande núcleo de atração de migrantes. Além da praça central da cidade, onde muitos caminhões patrocinados por prefeituras do interior simplesmente “despejam” migrantes, um dos pontos de acampamento mais utilizado por esses “novos nômades” é a margem do rio Grande, ao lado da ponte da BR-242 que atravessa a cidade: famílias inteiras acampam junto ao rio

em rudimentares barracas de plástico, que ganham dos motoristas de caminhão com quem conseguem carona (Figura 5).

Uma das famílias acampadas que entrevistei vivia em condições extremamente precárias, numa barraca improvisada com caixotes de papelão. Era originária de Parelhas, no interior do Rio Grande do Norte, e estava viajando há 20 dias, a pé ou em carona de caminhão. Em Parelhas, afirmaram, passavam até três dias sem comer, e quando comiam era só feijão com farinha (“um caroço aqui, outro acolá...”). Passaram por Juazeiro, onde a seca era ainda mais grave, e Morro do Chapéu, uma das cidades mais altas da Bahia, onde afirmam ter passado muito frio. O chefe da família já havia morado três vezes em Brasília, e o período mais prolongado de residência não durou dois anos. Morou também em São Paulo, Belo Horizonte, no interior de Goiás e de Tocantins. Dizia com certo orgulho que conhecia “esse Brasilzão todo”... O filho mais velho, de 17 anos (mas parecendo muito mais), morou sozinho em São Paulo durante 6 meses, quando trabalhou em uma empresa de construção civil. Teve uma filha e, por motivos de saúde, segundo ele, foi obrigado a voltar para o Nordeste, pois não tinha condições de cuidar da menina. Quando vi a grande quantidade de crianças na barraca ao lado perguntei quantos eram: “moço, é tanta criança que só se conta direito dormindo...”, ironizou ele.

Um caminhoneiro informou-lhes que “no posto de Mimoso ninguém fica parado, vem logo um caminhão pegando gente pra trabalhar na lavoura”. Se não der certo, seguem para Brasília, ou então para Quirinópolis, no interior de Goiás, onde têm certeza que encontram “uma fazenda pra cuidar”. Sobrevivem fazendo brinquedos de barro que vendem nas feiras. Um pequeno buraco no chão serve de fogão. Depois de esquentar água começam a assar dois peixes muito pequenos que pescaram com as próprias mãos: “esse rio é um presente de Deus”, concluem. Um caminhoneiro prometeu-lhes carona até Mimoso, sob a lona, como se fossem fugitivos: “o calor é do diabo, mas se a gente conseguir trabalho tudo vai mudar”. Eterna ilusão para esses “fugitivos” ou “refugiados”, dependendo do ponto-de-vista, numa estrutura social cruel em que perderam até mesmo a função de “massa de manobra”. Nas fazendas cada vez mais modernizadas dos Gerais, assim como podem ser contratados num dia, podem ser jogados na estrada no outro, quando uma nova máquina representar mais lucros e menos encargos sociais para o pa- trão. Por isso, o destino da grande maioria são mesmo as periferias das cidades, o que não significa, contudo, maior estabilidade. Entrevistas que fizemos em bairros periféricos de Barreiras comprovam que a instabilidade continua, retratada não

só pelos altos índices de desemprego mas também pelas constantes mudanças de residência, em circuitos de deslocamento envolvendo toda a periferia da cidade. Isso faz imaginar um “índice de mobilidade” que seria também uma espécie de “índice de desterritorialização”, marcado pela insegurança sócio-territorial e pela precariedade dos laços entre esses grupos sociais, muitas vezes totalmente à margem da sociedade formalmente instituída. O tempo de residência das famílias num mesmo local (VIRILIO [1993, p. 9] utiliza o termo “taxa de rotatividade” para caracterizar o tempo de residência – um ano, em média – em um grande conjunto habitacional de Lyon) e o período de manutenção em um mesmo emprego (ou, ao contrário, de permanência na condição de desempregado, subempregado ou em- pregado temporário) revelar-se-iam alguns dos indicadores objetivos da condição de exclusão (conjuntural ou estrutural) desses grupos. Famílias acampadas, como a que comentamos acima, e as que participam de “invasões” em áreas urbanas ou de beira de estrada estão entre os grupos sociais mais desterritorializados. Eles constituem um dos melhores exemplos dessa mobilidade atroz e da insegu- rança que se expande cada vez mais como produto da dinâmica socioeconômica excludente deste final de século, totalmente à margem de qualquer espaço social mais ordenado ou imersos confusa e aleatoriamente entre redes e territórios de várias naturezas. Propusemos denominar essas formas mais desterritorializadas/ desterritorializantes de des-ordenação do espaço de aglomerados humanos (HAESBAERT, 1993b, 1995), no sentido de “amontoados” humanos, instáveis, inseguros e geralmente imprevisíveis em sua dinâmica de exclusão.

Kurz (1992) não vê na massa de despossuídos nem mesmo um “exército industrial de reserva”, pois o desemprego é estrutural e exclui efetivamente um contingente cada vez maior de trabalhadores e mesmo de consumidores. Estaria se desenhan- do uma nova “dualidade radical” entre o mundo dos excluídos na corrida da competitividade capitalista e a elite cada vez mais enclausurada (inclusive pela ameaça à sua segurança), dominando o aparato tecnológico e informacional que lhe assegura a manutenção do poder econômico. Virilio (1994), referindo-se à realidade européia, afirma que “depois da oposição campo-cidade do século XIX e a oposição centro-periferia do século XX, assistiremos dentro em breve, se não nos prevenirmos, à oposição entre aqueles que contam com um domicílio e um emprego permanente e os que vivem à deriva, à procura de uma subsistência precária e de um alojamento provisório” (p. 6-3).

Kurz (1993) denomina a desordem, produto da crise atual, de “barbárie pós- -moderna”, incapaz de qualquer “formação ou organização ampla, nacional, social ou de qualquer outro tipo” (p. 196). Para o autor, a “desindustrialização

endividada” da América Latina fez com que suas economias fossem em grande parte “expelidas da circulação global”, através de uma concorrência mundial (pautada na geração de novas tecnologias) que exclui ou “desativa” as antigas vantagens comparativas do Terceiro Mundo, como recursos naturais e força de trabalho abundante. Uma parcela cada vez maior da população mundial passa então a depender exclusivamente da assistência internacional para sobreviver, “pessoas que não se encaixam em nenhuma forma de organização social (...), forçadas a viver num leprosário social que já compreende a maior parte do pla- neta” (1992, p. 195).

Embora se refiram a uma escala mais estrita, podemos associar os aglomerados de exclusão à leitura de uma das perspectivas das ciências sociais nos anos 90, aquela que, não atribuindo tanta relevância aos movimentos sociais (como ocorria nos anos 80), volta “sua atenção para os processos de desorganização social que vêm ocorrendo sobretudo devido ao crescimento urbano acelerado e desordenado e aos processos de exclusão que acompanham as crises de crescimento” (SCHERER- -WARREN, 1993, p. 20).

Um dos representantes desta corrente é Zermeño (1990), que ao analisar a crise do progresso dos anos 80 e as perspectivas para os anos 90, no México e também na América Latina, constatou o aumento da pobreza, da insegurança, da violên- cia desorganizada e organizada e a anomia defensiva. A massa constituindo-se num agregado inorgânico de individualidades e manifestações atomizadas. Neste cenário, a relação líder-massa efetua-se sem intermediação e a relação Estado- -massa parece adquirir uma centralidade relativa. Sem a busca de intermediação, os organismos da sociedade civil tendem a desaparecer, dando lugar às condutas de crise, tais como bandos de jovens, grupos de delinqüentes ou outros grupos de violência organizada (SCHERER-WARREN, 1993, p. 20-21).

Enfatizam-se assim as “condutas de crise”, os “antimovimentos”, a fim de com- preender “como, nos interstícios da modernização (e, para alguns, às vezes até da pós-modernização) de países latino-americanos, ocorre a desmodernização, a exclusão, a pobreza crescente, a desordem e a escalada da violência organizada. Em outras palavras, o “desmovimento” (seja desmobilização, imobilismo ou antimovimento)” (p. 21).

Uma cidade como Barreiras, que praticamente explodiu na última década, aumen- tando de maneira assustadora as desigualdades sociais, exibe de forma modelar os extremos a que pode chegar a desterritorialização no entrecruzamento confuso de múltiplos territórios e redes e nos aglomerados humanos de exclusão, com o surgimento de uma verdadeira cidade clandestina e excluída ou imersa em redes e territórios ilegais de sobrevivência. Jornais locais, numa visão não apenas sen-

sacionalista, já denominaram Barreiras “a Baixada Fluminense do oeste baiano”, a “capital dos crimes insolúveis”.

Em relação às classes subalternas, essa periferização envolve a reprodução social em grandes conjuntos habitacionais financiados pelo Estado. Trata-se aqui, como é bem conhecido, de uma tentativa de reterritorializar uma força de trabalho “instável”, fixando-a – ainda que sob condições muito precárias, e inserindo-a nos circuitos da urbanização formal (redes de luz e água, cobrança de impostos). Criados no início dos anos 90, os conjuntos Barreiras I, Rio Grande e Buritis I perfazem um total de 1826 domicílios. No caso do conjunto Buritis I, localizado a cerca de 8 quilômetros do centro, um dos objetivos da construção foi claramente o de forçar o crescimento da cidade na direção leste, valorizando assim áreas desocupadas entre o conjunto residencial e a cidade.

Esses conjuntos habitacionais surgem como gigantescos “desertos” cuja homoge- neidade linear e frieza (Figura 6) lembram os “espaços lisos” de Guattari (1985), regidos por um desenho que, neste caso, não alcança sequer as raias da funciona-

lidade, pois enclausurar uma família numa única peça de 21 a 28 m2 lembra mais

a “disfunção” de uma prisão do que a “função” de uma morada. Como ironizou um morador, as casas são “tão pequenas que não cabe nem pensamento”, onde “pra dormir tem de se deixar os pés pra fora de casa”. É claro que os moradores, como sempre, dentro dos limites que sua condição social impõe, tratam de quebrar a falta de imaginação e a crueza irracional que esses espaços evocam, criando novos desenhos e novos espaços onde um mínimo de convivência e distinção (no seu duplo sentido) é admitido.

Nesses novos conjuntos habitacionais se repete o mesmo vício “moderno” de tentar estabilizar, fixar a força de trabalho fazendo apelo à ideologia da casa própria, da pequena propriedade. A violência, a solidão, o abandono e o isolamento que esses locais acabam secretando colocam em xeque o pretenso reenraizamento ou reterritorialização que eles deveriam promover. Pode-se temer que, como nos subúrbios pobres das grandes metrópoles, fruto de uma marginalização dos grupos sociais, agora não mais “classes trabalhadoras” mas sim efetivamente excluídos de uma funcionalidade social mais ampla, repita-se também ali um processo de