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Dimensão simbólica e identidade regional

A modernização, em suas múltiplas escalas de interação, permite a ativação concomitante de múltiplas identidades, numa relação às vezes confusa entre o indivíduo e seus “múltiplos territórios”. Como a identidade territorial é entremeada por várias outras, e seu conteúdo simbólico pode às vezes mudar rapidamente no tempo, a identidade social nunca pode ser vista como unitária e monolítica. Como disse Penna (1992, p. 97), num sentido geral: “(...) não se pode pensar em a identidade social – enquanto única e central – senão de um modo extremamente efêmero, e como resultante das diversas identidades sociais (...) movimentadas pelo indivíduo. Por isso, preferimos pensar sempre em as identidades sociais”. O mundo “moderno” das territorialidades contínuas/contíguas regidas pelo princípio da exclusividade (cada Estado com seu espaço e suas fronteiras bem delimitadas frente ao território do outro) estaria cedendo lugar hoje ao mundo das múltiplas territorialidades ativadas de acordo com os interesses, o momento e o lugar em que nos encontramos. Percebe-se aí ao mesmo tempo um ângulo posi- tivo (a vivência concomitante de múltiplos “territórios” e identidades) e negativo (a fragilidade e a instabilidade de nossas relações com os outros e com o meio). Num mundo globalizado, a territorialidade na perspectiva da manifestação da diferença, da identidade do efetivamente outro, parece exceção e, como tal, minoria. Paradoxalmente, contudo, justamente por serem minoritárias, essas alteridades freqüentemente adquirem caráter defensivo, transformando-se em vítimas, marginais ao sistema, partidárias, muitas vezes por força das circunstâncias, de uma interpretação maniqueísta de mundo, adotando uma definição exclusivista de suas identidades, separando nós e os outros em fronteiras rígidas, como em vários momentos de crise, e fazendo uso de sua marginalização para fortalecer a condição de vítima (real e imaginária).

Castoriadis (1990) analisa as três possibilidades que se abrem no encontro com a diferença cultural, com o outro: as instituições dos outros “podem ser conside- radas como superiores [às ‘nossas’], como inferiores, ou como ‘equivalentes’”. O primeiro caso representará “uma contradição lógica e um suicídio real”. Restam então duas possibilidades: “os outros são inferiores” ou “os outros são iguais a nós”. Considerar o outro como inferior, historicamente, é o que quase sempre tem prevalecido, pois “dizer que os outros são ‘iguais a nós’ não poderia significar iguais

na indiferenciação” (p. 30), mas na incomparabilidade. O que em hipótese alguma significa que se trata de uma “fatalidade” ou de uma “necessidade lógica”, mas de uma simples “probabilidade”, uma “vertente natural” das instituições humanas, que sempre se pretendem superiores e mais “verdadeiras” que as demais. Dumont (1985) afirma que “os defensores da diferença reclamam para ela, ao mesmo tempo, igualdade e reconhecimento; eles estão reclamando o impossível” (p. 276). Penna (1992), citando Dumont, afirma que “‘reconhecer o outro como outro’ (ou seja, como diferente) implica necessariamente pensá-lo como inferior ou superior – e, por conseguinte, pensar simultaneamente a sua relação com ele” (p. 65). “Os outros são simplesmente os outros” é, no dizer de Castoriadis (1990), “uma criação histórica que vai de encontro às tendências ‘espontâneas’ da instituição da sociedade”, pois coloca em questão a própria verdade de suas instituições. No caso extremo, a diferença do outro é erigida como “inconvertível”, completamente inassimilável, e deve ser rejeitada: “surge assim o racismo” (p. 34). Em seu texto clássico Raça e história, escrito em 1952, Lévi-Strauss afirma que o homem moderno, em suas inúmeras “especulações filosóficas e sociológicas”, não chegou senão a “uma única receita”, que ele caracterizou como “falso evo- lucionismo”: “uma tentativa de suprimir a diversidade das culturas, fingindo conhecê-la plenamente”, tratando as diferentes sociedades humanas em “estágios ou etapas de um desenvolvimento único”. A diversificação de culturas traria apenas “os momentos de um processo que dissimula uma realidade mais profunda ou atrasa sua manifestação” (LÉVI-STRAUSS, 1987, p. 336).

O autor ressalta que mesmo a posição universalista dos grandes sistemas filosóficos e religiosos, em defesa da noção de “humanidade” sem distinção de raça ou cultura, “tem algo de decepcionante para o espírito, pois negligencia uma diversidade de fato que se impõe à observação”. Assim:

As grandes declarações dos direitos do homem têm também elas esta força e esta fraqueza: enunciar um ideal que raramente atenta para o fato de que o homem não realiza sua natureza numa humanidade abstrata, mas em culturas tradicio- nais, cujas mudanças as mais revolucionárias deixam subsistir aspectos intactos e se explicam a si mesmas em função de uma situação estritamente definida no tempo e no espaço (LÉVI-STRAUSS, 1987, p. 335).

Nossa pesquisa junto a nordestinos e sulistas corroborou, em parte, essa cons- tatação: em pleno boom modernizante e desterritorializador, ainda há ampla margem para a diferenciação e o reapresentar de aspectos culturais que muitos julgavam desaparecidos. A realidade, assim, neste final de século, aproxima-se bem mais da des-ordem e da ambigüidade, do paradoxo e da contradição, do que

da ordem, das certezas e das simples contraposições. Por isso, partir do espaço em sua complexidade é, ao nosso ver, a única saída plausível para a compreensão da geografia contemporânea. Para isso, uma abordagem multi(ou trans)disciplinar, reclamada já há muito tempo por geógrafos como Milton Santos (1978), torna-se indispensável.

É tomando emprestadas reflexões de outras disciplinas que enveredamos agora, mais detidamente, pelos caminhos da afirmação de diferenças pela geografia, ou melhor, da construção das identidades sociais através do território e, mais especi- ficamente, da identidade regional, no caráter simbólico de sua constituição. Isto porque, para entendermos a contenda em curso nos cerrados nordestinos a partir do recorte aqui priorizado, ou seja, aquele entre “nativos” nordestinos e migrantes “gaúchos”, é imprescindível discutir a construção simbólica de suas respectivas identidades socioterritoriais, “regionais”: o gauchismo e a nordestinidade. É praticamente consenso entre os antropólogos que as identidades sociais, pura- mente simbólicas (LÉVI-STRAUSS, 1976), instrumentos de classificação ou pres- supostos metodológicos (CUNHA, 1985), são produzidas como representações da realidade, visando a “um reconhecimento social da diferença” (BRANDÃO, 1986, p. 42). Se definirmos essa representação como simbólica, é preciso esclarecer me- lhor de que “símbolo” estamos falando, pois no senso comum símbolo, tal como o “signo” dos semiólogos, corresponde muitas vezes a qualquer representação da realidade, aquilo que substitui ou que está no lugar de uma outra coisa.

Sem entrar na grande controvérsia que envolve as distinções entre signo e símbolo, tomaremos o símbolo como um tipo específico de signo. Os símbolos que compõem uma identidade social não são construções totalmente arbitrárias ou aleatórias, mantendo sempre determinados vínculos com a realidade concreta: “as marcas da identidade não estão inscritas no real, embora os elementos sobre os quais as representações de identidade são construídas sejam dele selecionadas” (PENNA, 1992, p. 167). Eles também não têm um significado literal e uno, como naqueles signos cujo significado resulta de uma convenção mais rígida e consensualmente estabelecida.

Como bem expressa Castoriadis (1982), ao mesmo tempo que “determina aspec- tos da vida em sociedade”, o simbolismo está “cheio de interstícios e de graus de liberdade”:

A “escolha” de um símbolo não é nunca nem absolutamente inevitável, nem puramente aleatória. Um símbolo nem se impõe como uma necessidade natural, nem pode privar-se em seu teor de toda referência ao real (somente em alguns ramos da matemática se poderia tentar encontrar símbolos totalmente “conven-

cionais” – mas uma convenção que valeu durante algum tempo deixa de ser pura convenção). Enfim, nada permite determinar as fronteiras do simbólico (p. 144).

Embora não utilizemos exatamente a mesma definição de símbolo defendida pelo autor (os “símbolos totalmente ‘convencionais’“ da matemática na nossa opinião são signos de outro tipo, “signos stricto sensu”, e não símbolos), fica claro a partir de sua posição que o símbolo:

• é sempre ambíguo, ou seja, “seu significante ultrapassa sempre a ligação a um significado preciso, podendo conduzir a lugares totalmente inesperados” (p. 147).

• participa ao mesmo tempo de uma lógica, ou seja, tem “um componente ‘racio nal-real’” (p. 155), e do “imaginário último ou radical”:

O simbolismo pressupõe a capacidade imaginária, pois pressupõe a capacidade de ver em uma coisa o que ela não é, de vê-la diferente do que é. (...) na medida em que o imaginário se reduz finalmente à faculdade originária de pôr ou de dar-se, sob a forma de representação, uma coisa e uma relação que não são (que não são dadas na percepção ou nunca o foram), falaremos de um imaginário último ou radical, como raíz comum do imaginário efetivo e do simbólico (CAS- TORIADIS, 1982, p. 154).

Como se observa, o autor trata de forma mais geral a concepção de simbólico, mui- tas vezes tomando-a como sinônimo de sígnico, e em outras restringindo a noção de símbolo à de significante. Outras definições refletem nossas proposições, como aquelas expressas pelos pensadores Carl Jung e Paul Ricœur. Para Jung (1987):

uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem tem um aspecto “inconsciente” mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de todo explicado. E nem podemos ter esperanças de defini-la. Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a idéias que estão fora do alcance da nossa razão (p. 20-21).

Já para Ricœur (1978), símbolo é uma estrutura de significação em que um sen- tido direto, primário, literal, designa por acréscimo outro indireto, secundário, figurado, que não pode ser entendido senão através do primeiro. Todos eles acabam apontando como base para o processo de simbolização a substituição, o “deslo- camento” de significado ou a “metáfora”. DaMatta (1983) ressalta como parte fundamental desse processo as condições pelas quais um objeto é transmudado num símbolo, “pois se a sociedade classifica, ela também opera e manipula suas classificações. Além disso, as sociedades não classificam o nada, mas, ao contrário, coisas, pessoas, relações, objetos, idéias” (p. 76).

Nas sociedades modernas ou complexas, “deslocamentos de objetos (...) criam símbolos que devem ser dominantes, servindo como pontos de referência para a

contaminação de todo o sistema” (DAMATTA, 1983, p. 78). Assim, por exemplo, a bandeira é o substituto do território e da sociedade nacionais, devendo ser reco- nhecida por todos e às vezes quase sacralizada em seu papel de manutenção de uma identidade.

Como toda realidade socialmente apropriada é concomitantemente material e simbólica, o espaço geográfico também pode ser encarado como representação, como signo. Podemos ter tanto uma leitura da espacialidade que se pretende a mais fiel/objetiva possível em relação ao objeto que é representado, como nos signos da cartografia mais tradicional que, por uma série de convenções, pretende fazer uma representação fidedigna do mundo, quanto uma leitura do espaço não enquanto signo objetivamente construído, mas no potencial ilimitado de interpretações subjetivas e que indicam a ambigüidade dos símbolos, como demonstram muitos estudos da chamada geografia humanista.

Embora se enfatizem tanto, hoje, os processos de desterritorialização, onde a au- sência de uma identificação com o “espaço vivido” é um dos traços fundamentais, não há dúvida de que os vários conflitos pela defesa de fronteiras, por exemplo, demonstram que permanecem relevantes as referências espaciais para a definição ou o fortalecimento de identidades (sejam elas nacionais, regionais ou locais). Afinal, a própria memória de uma cultura,”para ser vivificada, necessita de uma referência territorial”, pois “ela se atualiza no espaço envolvente” (ORTIZ, 1994, p. 75).

Como afirmou Harvey (1992), a mudança social “é em parte apreendida pela história das concepções de espaço e de tempo, bem como dos usos ideológicos que podem ser dados a essas concepções. Além disso, todo projeto de transformação da sociedade deve apreender a complexa estrutura da transformação das concepções e práticas espaciais e temporais” (p. 201). A complexidade das práticas espaço- -temporais para Harvey, pelo menos em parte, pode ser apreendida por meio de uma “‘grade’ de práticas espaciais”, que ele propõe tomando por base a distin- ção feita por Lefèbvre (1986, p. 42-43) entre prática espacial, representações do espaço e espaços de representação. Embora Lefèbvre (1986, p. 48-49) associe-as, respectivamente, aos espaços percebido, concebido e vivido, Harvey (1992, p. 203) vincula-as ao vivido, ao percebido e ao imaginado, uma mudança de sentido à qual ele não faz referência (pelo contrário, dá a entender que se trata da mesma distinção feita por Lefèbvre).

De qualquer forma, trata-se, nos dois autores, de uma tentativa de apreender as múltiplas dimensões do espaço, passando da prática concreta (para Harvey, o “vivido”, para Lefèbvre o “percebido”) às representações espaciais (signos verbais

elaborados intelectualmente, o “percebido” de Harvey e o “concebido” de Lefèbvre) e aos símbolos e imagens do “espaço dos ‘habitantes’, dos ‘usuários’“ e “também de alguns artistas” que recobrem “o espaço físico ao utilizar simbolicamente seus objetos” (LEFÈBVRE, 1986, p. 49).

A concepção distinta que os dois autores revelam ter do “espaço vivido” – Harvey caracterizando-o por suas propriedades mais materiais (as “práticas espaciais”), Lefèbvre definindo-o por suas características mais simbólicas (abertas a múltiplos significados) –, revela bem a complexidade do termo. De toda maneira, seja qual for a concepção que tivermos do vivido, do concebido e do percebido, o que devemos destacar é a ênfase dos autores na relação dialética (e não de causalidade simples) entre estas dimensões. Como afirma Harvey (1992), “os espaços de representação (...) têm o potencial não somente de afetar a representação do espaço, mas também de agir como força produtiva material com respeito às práticas espaciais” (p. 201). Encarar o espaço geográfico em sentido amplo (o que inclui o papel da chamada primeira natureza) dentro de um processo de simbolização significa então concebê- -lo num processo de apropriação social não apenas enquanto objeto material, instrumento concreto de controle e ação, mas também como símbolo que tem

sua própria eficácia, ou seja, um “poder simbólico”que, em parte, acaba forjando

as identidades territoriais.

Bourdieu (1989) define o poder simbólico como “esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (p. 7-8). Para o autor, “os sistemas simbólicos devem a sua força ao fato de as relações de força que neles se expri- mem só se manifestarem neles em forma irreconhecível de relações de sentido (deslocamentos)”. O poder simbólico é um “poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização” e que “só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário” (p. 14, grifo do autor).

Esse poder simbólico, ao se manifestar, pode fazer uso de elementos espaciais, re- presentações ou símbolos, constituindo assim uma identidade territorial, ou seja, um conjunto concatenado de representações socioespaciais que dão ou reconhecem uma certa homogeneidade em relação ao espaço ao qual se referem, atribuindo coesão e força (simbólica) ao grupo que ali vive e que com ele se identifica. Territó-

rios e fronteiras são referenciais concretos fundamentais para a construção dessas

identidades, onde a alteridade fica muitas vezes condicionada a um determinado limite físico de reprodução dos grupos sociais. Conforme afirmação do próprio

Bourdieu (1989), “a fronteira, esse produto de um ato jurídico de delimitação, produz a diferença cultural do mesmo modo que é produto desta” (p. 115). Uma de nossas primeiras identificações, aquela que se refere ao local de nas- cimento, é de natureza geográfica, territorial. “Ser gaúcho” e “ser nordestino” não são, a princípio, identidades que resultam de uma escolha – pois ninguém escolhe o lugar onde nasce; nem por isso são “naturais”, pois, ao serem tomadas como relevantes para a identificação do indivíduo, são eleitas entre várias outras referências possíveis de identidade. Se o fato de ter nascido neste ou naquele espa- ço tem implicações indiscutíveis, não é propriamente o espaço que vai “fundar” uma identidade, mas a força política e cultural dos grupos sociais que nele se reproduzem e sua capacidade de produzir/estimular uma determinada escala de identidade, territorialmente mediada.

Só podemos admitir que existam identidades de algum modo “fundadas” pelo território se partirmos da concepção de espaço produzido (LEFÈBVRE, 1986), de territorialização como um processo de re-produção social que incorpora tanto uma dimensão concreta quanto simbólica, uma série de características social- mente produzidas/vividas e/ou inventadas/manipuladas pelo interesse de grupos econômicos e políticos que conseguem tornar mais eficazes esses símbolos em suas estratégias de controle e acumulação. Gauchismo e nordestinidade encontram-se entre essas múltiplas formas com que podem ser concebidas as identidades sociais, consideradas neste caso como identidades territoriais. Territoriais e regionais ao mesmo tempo, pois se referem a uma escala geográfica determinada, distinta, por exemplo, das escalas nacional e mundial.

Mesmo considerando a diferença substancial entre escala geográfica e escala cartográfica (RACINE et al., 1983 ; HAESBAERT, 1993a), reconhecemos que o con- ceito de região, tão carregado de ambigüidade, precisa ser mais rigoroso e ir além da simples associação com uma determinada escala de análise, quando muitas vezes se confunde a região enquanto recorte espacial, produto de um processo de

regionalização (recurso metodológico muito amplo que autores como Grataloup

[1991] associam ao de periodização para os historiadores), e a região enquanto conceito para apreender processos socioespaciais muito melhor definidos. A complexidade com que o espaço regional geralmente é encarado tem sido um dos maiores entraves para um conceito mais rigoroso, como fica patente nesta definição recente, feita por Markusen (1987):

Uma região é uma sociedade territorial contígua, historicamente produzida, que possui um ambiente físico, um milieu [meio] socioeconômico, político e cultural

distinto de outras regiões e em relação a outras unidades territoriais básicas, a cidade e a nação (p. 16-17).

Embora sua linha de interpretação seja o marxismo, na qual o regionalismo é uma das bases fundamentais para a construção do conceito, a autora não deixa

isto explícito na conceituação acima reproduzida.10 Nossa concepção de região,

embora não considere explicitamente a dimensão físico-natural do espaço, enfatiza a vinculação entre região, regionalismo e identidade regional:

Um espaço (não institucionalizado como Estado-nação) de identidade cultural e representatividade política, articulado em função de interesses específicos, geralmente econômicos, por uma fração ou bloco “regional” de classe que nele reconhece sua base territorial de reprodução (HAESBAERT, 1988, p. 26).

Substituindo “interesses” por “reivindicações” e entendendo “fração ou bloco ‘regional’ de classe” como um bloco hegemônico (tal como definido por Gramsci) que se articula frente ou dentro do bloco hegemônico “nacional”, temos expli- citamente colocada neste conceito a questão do regionalismo tal como definido por Markusen. Base concomitantemente de uma organização política e de uma identidade cultural, a região assim definida é, ao mesmo tempo:

• um recorte espacial que manifesta a diferenciação do espaço geográfico enquanto território, apropriado/controlado de forma concreta (por meio de relações políticas, geralmente representativas de uma determinada divisão territorial do trabalho) e simbólica (por meio de uma identidade territorial);

• uma escala geográfica, intermediária entre o nível local ou cotidiano de relações e o nacional; e

• produto da conjugação entre, pelo menos, dois processos sociais específicos, o regionalismo político que organiza suas reivindicações fundamentado numa base territorial (“regional”, colocada diretamente frente ao Estado- -nação), e a identidade territorial (igualmente numa escala intermediária entre as escalas local e nacional).

Região, portanto, não é um recorte geográfico qualquer, não é um território em sentido amplo (mas sim um determinado tipo de território) e também não é uma escala intranacional qualquer, pois para que a região exista é necessário que o território que a constitui seja a base concreta, produto e condicionante de uma desigualdade econômica (com um papel distinto na divisão inter-regional

10 Ao contrário, em trabalho anterior, onde define regionalismo como “uma reivindicação política de um

grupo de pessoas identificado territorialmente contra um ou muitos mecanismos do Estado” (MARKUSEN, 1981, p. 83), a autora questiona a possibilidade de um conceito marxista de região, vendo esta mais como “a base ou a arena para o conflito” e reduzindo seu significado às “lutas que se dão nela” (ou seja, os regionalismos), e não à “entidade per se” (p. 63).

do trabalho) e uma especificidade político-cultural fundamentada em fenômenos concretos, muito variáveis em intensidade, mas em geral estreitamente associados:

o regionalismo político e a identidade regio nal.11

Desse modo, nem todo espaço intranacional compõe, obrigatoriamente, uma região, como reconhecia a Geografia mais tradicional e mesmo aquela que trata a região essencialmente como um produto da divisão territorial do trabalho. O Brasil, grosso modo, exibe hoje, através de nossa concepção, duas regiões melhor definidas, justamente aquelas construídas por gaúchos e nordestinos: o Sul e o Nordeste (com todas as controvérsias que suas respectivas delimitações implicam). Como os territórios neste final de século são predominantemente, em diferentes